quarta-feira, 8 de maio de 2019

TEATRO NA ESCOLA XXVII


O QUE PRENDE À TERRA

À Procura De Um Pinheiro, ópera ligeira / Musical de José Carlos Godinho, interpretado pelos alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo – Interpretação, da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 18 de Dezembro de 2018. Encenação de Victor Sezinando. Vídeo e fotografia: São Ludovino.
Looking For A Pine Tree, musical by José Carlos Godinho, performed by the students of Performing Arts of Secondary School D. Pedro V, Lisbon, December 18, 2018. Stage Direction: Victor Sezinando. Video & photography by São Ludovino.
     Em vez de um artigo sobre este musical, fica aqui uma história que foi inspirada por ele. Parabéns a todos pelo excelente trabalho! Aquelas árvores ululantes são tão impossíveis de esquecer como a felicidade infantil daqueles que procuram e encontram o seu pinheiro perfeito. Todos os pinheiros são perfeitos, sobretudo quando têm as raízes bem presas à terra e não são devoradas pelo fogo nem pela avidez humana.

Elenco
Adriana Loureiro
Ana Beatriz Martins
Beatriz Carvalho
Cátia Castanheira
Diana Sardinha
Diogo Pereira
Filipa Lopes
Íris Sena
Joana Jorge
João Duarte
Maria Mendes
Mariana Correia
Nádia Antunes
Rafaela Alves
Raquel Simões
Samira Baldé
Sandro Dias
Sara Carvalho
Sofia Pedrosa
Tatiana Cavalheiro

Encenação
Victor Sezinando
Texto
À Procura De Um Pinheiro
José Carlos Godinho

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O QUE PRENDE À TERRA

     As árvores da floresta estavam todas reunidas como estão sempre. Ligadas pelas raízes e pela química invisível que sustenta sob a terra toda a vida que vive à superfície. Claro que também estavam ligadas por afinidades mais visíveis como a espécie, a família, a forma das folhas ou os hábitos sazonais que mantêm há milhões de anos.
     A árvore mais antiga, a árvore-mãe, já meio carcomida e curvada, mas com raízes ainda muito fortes, as mais fortes de toda a floresta, deu início à reunião e tomou a palavra. Todas as outras árvores se inclinaram ligeiramente e ouviram atentamente. Todas, menos os eucaliptos. Esses voltaram as costas e começaram a assobiar uma canção da moda. A árvore antiga notou o ostensivo alheamento, mas mesmo assim falou com determinação.
    − Somos tantas que seria difícil alguém contar-nos. Mas já fomos mais, mais diversas, mais frondosas e resistentes. O que mais me entristece é que agora não seja assim porque algumas de nós decidiram tomar a terra que era repartida por tantas outras. Crescem muito iguais e certinhas e parece que não se importam nada por terem uma vida curta…
     Alguns eucaliptos voltaram-se para ela por momentos com ar de poucos amigos e voltaram novamente as costas. Uns limavam as unhas, outros sacudiam as folhas secas, outros riam ao olharem a cordata assembleia. E a árvore antiga prosseguiu.
     − Tornaram-se demasiado iguais aos humanos destes tempos incertos. Ainda vos lembrais dos humanos que nos amavam como suas iguais, que nos veneravam mesmo quando nos cortavam para alimentar as fogueiras ou construir as suas casas. Davam-nos nomes belos e consagravam-nos dias para estarem entre nós. Ainda me lembro de alguns desses nomes e algumas ainda estão entre nós… Prelinda, Plomino, Selina, Luni, Hélion…
     Algumas árvores anuíram com um sorriso e entreolharam-se.
     − Nunca as excluímos do nosso seio. Têm aqui um lugar como todas nós. Mas este espaço começa a escassear. Nós perduramos através das décadas e dos séculos, nunca usurpámos o lugar de ninguém. O espaço que ocupávamos há cem anos é o mesmo que ocupamos hoje. As ervas e os arbustos em redor cresceram, multiplicaram-se, pereceram e voltaram a crescer. Nós perdurámos, escapámos ao fogo, ao corte da serra, ao calor abrasador e ao frio extremo, renascemos por fora, estação após estação, mantivemos a terra viva e saudável e purificámos o ar que nos rodeia e todos respiram. Penso que já demos muito e nunca exigimos nada em troca excepto permanecer aqui com o céu e as aves como eternos companheiros.
     Mas nos últimos tempos os perigos aumentaram, muitas de nós foram consumidas pelo fogo que não veio da natureza mas da perfídia humana. E aqueles companheiros e companheiras que nos voltaram as costas por ordem humana tornaram-se tão perigosos como as mentes e as mãos humanas. Que faremos neste tempo tão incerto…?
     Hélion, um carvalho secular, ergueu um ramo alto para pedir a palavra. Olhou em volta e falou na direcção dos eucaliptos.
     − Antes de todos, é para vós que falo pois pertenceis ao mesmo reino que nós, tal como as ervas, as flores ou os arbustos. Temos vivido sempre em paz e harmonia. As guerras são uma coisa dos humanos, as revoluções são o culminar da esperança ou do desespero, a ruptura um fim irreversível. Sempre apelámos à paz, à harmonia e renovação sem perda ou aniquilação dos nossos semelhantes. Aqui e além, os humanos já alteraram esta harmonia inúmeras vezes e nós repusemos o equilíbrio mesmo quando nos encontrávamos à beira do abismo. 
     Por isso, penso que neste momento só nos resta apelar à rebelião, uma revolta universal e consensual. Creio, no entanto, que não devemos ser nós a rebelar-nos… contra quem o faríamos e como…?
     Luni interrompeu Hélion, não apenas para concordar com o que ele já dissera mas para sugerir um caminho.
     − Também já meditei longamente sobre este assunto. Também entrevi múltiplos caminhos e tentei vislumbrar o que haveria mais adiante em cada um deles. Quando procurei nos humanos a solução pouco consegui vislumbrar. Apenas dúvidas, hesitações e resultados imprevisíveis. A solução tem de vir de nós e nunca contra nós. O preço a pagar é elevado, muitas de nós terão de perecer, recusar-se a nascer e crescer. E sois vós, eucaliptos, que tendes nas vossas mãos o destino de todas nós. Sois tão desdenhosas connosco, esquecestes as vossas origens e os laços comuns que nos unem. Mas servis, de forma tão cega e subserviente, os desígnios humanos. 
    Nesse momento a árvore antiga ergueu-se ainda mais sobre as restantes, como se uma réstia de juventude subisse subitamente das veias aos ramos mais altos. Entendeu inteiramente o alcance das palavras de Luni. Voltou-se para os eucaliptos e declarou.
     − Sim, não somos nós mas vós, quem deve rebelar-se. Não contra nós mas contra os que fizeram de vós meros instrumentos de um mundo a que não pertenceis. Sois escravos sem honra nem glória. Acabais, mais cedo ou mais tarde, nas lixeiras, longe da terra que vos deu a vida, sem raízes nem laços que vos prendam a nada. Servis os interesses humanos porque repudiastes as vossas origens e ninguém pode servir dois amos tão distintos ao mesmo tempo. Entre nós não há amos nem escravos. Entre nós os “amos” são os que amam. Entre os humanos, “amos” são os que se amam apenas a si mesmos. Mais dia, menos dia, esse estranho elo de escravidão também acabará. Eles deixarão de precisar de vós porque inventaram qualquer coisa nova. E, então, quem vos receberá no seu seio? Sei que conheceis a resposta. Mostrai que a conheceis e regressai à floresta, coexisti com todas as outras árvores. De que serve essa vontade de ocupar todas as encostas, crescer mais depressa, desgastar o seio da terra, beber toda a água enquanto os outros morrem de sede…? A terra que abriga as nossas raízes é a mesma. O mal que agora fazeis a todas as plantas da floresta será um dia também o vosso mal e o vosso ocaso. O sol e a lua continuarão a viajar pelo céu, mas a terra ficará estéril e vazia… Como pode alguém escolher o fim…?   
     Os eucaliptos foram-se voltando lentamente, um após o outro. Já nenhum assobiava nem escarnecia. Olharam a assembleia das árvores como se as vissem pela primeira vez, como se reconhecessem pela primeira vez que eram todas parte de um todo. Do tronco de um ou outro escorria um fino fio de resina. Curvaram-se como se um grande peso tivesse subitamente pousado sobre as copas, as folhas caíram quase por completo e os olhos voltavam-se para a terra toldados por uma névoa escura que nada deixava ver. No mesmo instante viram-se árvores altíssimas e detritos povoando as lixeiras. Viram o deserto avançar pelas montanhas na sua direcção e o sol ser devorado por densas camadas de fumo. Viram tudo o que existia e o que seria depois quando já não existisse. Viram uma floresta ausente, viram encostas escorrendo areia, viram-se não existindo. Nesse ponto lá adiante, não muito distante, não havia nada para ver.
     O que lhes pediam era muito, era mais do que um sacrifício passageiro, era a própria vida. A única forma de se rebelarem era deixar de nascer e crescer em todos os lugares, como os humanos lhes ordenavam.
     Um dos eucaliptos mais jovens tomou a palavra. Falou lentamente enquanto olhava a terra e depois o céu.
     − Já que estou aqui, hei-de ficar. Hei-de crescer e ser um eucalipto gigante. Hei-de tornar-me tão robusto como o aço. Nenhuma serra me cortará. Mas quando algum pobre aldeão me vier buscar para erguer a sua casa, irei com ele e serei a sua casa e nunca mais voltarei a nascer nem a multiplicar-me na terra. Não beberei a água das nascentes nem sugarei os minerais da poeira subterrânea. Serei apenas a casa e serei feliz.
     Outros eucaliptos entreolharam-se e viram-se pontes, passadiços, cancelas e casas, folhas de papel e livros. Todos queriam afinal ter uma finalidade mas não um fim. Mas para isso, muitos não poderiam voltar. Aquela seria a sua única vida.
     Desde esse dia, viveram mais do que nunca. Sendo apenas árvores, seres verdadeiros e generosos. Ano após ano, foram partindo. Transformaram-se em coisas úteis e amadas. Continuaram a viver de outro modo em muitos outros lugares.
     Só alguns regressaram para serem como eram antes, árvores entre árvores. E a floresta sorriu de novo e perdurou. Perdura em plena harmonia protegida pela ampla abóboda do céu.

São Ludovino, 21/12/2018

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     A história acima − O que prende à terra − foi inspirada numa situação real, a proliferação do eucalipto na paisagem portuguesa e o seu efeito nocivo nos solos, que se vão desgastando e tornando cada vez mais secos e áridos, potenciando também a propagação de incêndios, quase sempre de origem criminosa. Mas foi também inspirada no próprio conteúdo do musical À Procura De Um Pinheiro, de José Carlos Godinho, especialmente na canção “Somos Pinheiros”.

Somos pinheiros
(Depois da tempestade inicial, os pinheiros apresentam, serenamente, o seu pedido de sobrevivência)

«Somos pinheiros queremos viver,
temos ainda tanto a fazer!
Não nos destruam nem tirem do chão,
pois é diferente a nossa função!
Do nosso tronco saem madeiras, para fazer
móveis, mesas, cadeiras
Portas estantes tacos para o chão,
bem como lenha para o fogão.
De oxigénio enchemos o ar,
para toda a gente poder respirar.
Damos resina, lápis pincéis, bem como pasta para papéis.
E muito mais podemos fazer, eis a razão de querermos viver!
Não nos destruam nem tirem do chão,
pois é diferente a nossa função!»

À Procura De Um Pinheiro de José Carlos Godinho (excerto)








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