O QUE PRENDE À TERRA
À
Procura De Um Pinheiro, ópera ligeira / Musical de José
Carlos Godinho, interpretado pelos alunos do Curso Profissional de Artes do
Espectáculo – Interpretação, da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 18 de
Dezembro de 2018. Encenação de
Victor Sezinando. Vídeo e fotografia: São Ludovino.
Looking For A Pine Tree, musical by José Carlos Godinho, performed by the
students of Performing Arts of Secondary School D. Pedro V, Lisbon, December
18, 2018. Stage Direction: Victor Sezinando. Video &
photography by São Ludovino.
Em vez de um artigo sobre este musical,
fica aqui uma história que foi inspirada por ele. Parabéns a todos pelo
excelente trabalho! Aquelas árvores ululantes são tão impossíveis de esquecer
como a felicidade infantil daqueles que procuram e encontram o seu pinheiro
perfeito. Todos os pinheiros são perfeitos, sobretudo quando têm as raízes bem
presas à terra e não são devoradas pelo fogo nem pela avidez humana.
Elenco
Adriana
Loureiro
Ana
Beatriz Martins
Beatriz
Carvalho
Cátia
Castanheira
Diana
Sardinha
Diogo
Pereira
Filipa
Lopes
Íris
Sena
Joana
Jorge
João
Duarte
Maria Mendes
Mariana Correia
Nádia Antunes
Rafaela Alves
Raquel Simões
Samira Baldé
Sandro Dias
Sara Carvalho
Sofia Pedrosa
Tatiana Cavalheiro
Encenação
Victor Sezinando
Texto
À Procura De Um Pinheiro
José Carlos Godinho
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O QUE PRENDE À TERRA
As árvores da floresta estavam todas
reunidas como estão sempre. Ligadas pelas raízes e pela química invisível que
sustenta sob a terra toda a vida que vive à superfície. Claro que também
estavam ligadas por afinidades mais visíveis como a espécie, a família, a forma
das folhas ou os hábitos sazonais que mantêm há milhões de anos.
A árvore mais antiga, a árvore-mãe, já
meio carcomida e curvada, mas com raízes ainda muito fortes, as mais fortes de
toda a floresta, deu início à reunião e tomou a palavra. Todas as outras
árvores se inclinaram ligeiramente e ouviram atentamente. Todas, menos os
eucaliptos. Esses voltaram as costas e começaram a assobiar uma canção da moda.
A árvore antiga notou o ostensivo alheamento, mas mesmo assim falou com
determinação.
− Somos tantas que seria difícil alguém
contar-nos. Mas já fomos mais, mais diversas, mais frondosas e resistentes. O
que mais me entristece é que agora não seja assim porque algumas de nós
decidiram tomar a terra que era repartida por tantas outras. Crescem muito
iguais e certinhas e parece que não se importam nada por terem uma vida curta…
Alguns eucaliptos voltaram-se para ela por
momentos com ar de poucos amigos e voltaram novamente as costas. Uns limavam as
unhas, outros sacudiam as folhas secas, outros riam ao olharem a cordata
assembleia. E a árvore antiga prosseguiu.
− Tornaram-se demasiado iguais aos humanos
destes tempos incertos. Ainda vos lembrais dos humanos que nos amavam como suas
iguais, que nos veneravam mesmo quando nos cortavam para alimentar as fogueiras
ou construir as suas casas. Davam-nos nomes belos e consagravam-nos dias para
estarem entre nós. Ainda me lembro de alguns desses nomes e algumas ainda estão
entre nós… Prelinda, Plomino, Selina, Luni, Hélion…
Algumas árvores anuíram com um sorriso e
entreolharam-se.
− Nunca as excluímos do nosso seio. Têm
aqui um lugar como todas nós. Mas este espaço começa a escassear. Nós
perduramos através das décadas e dos séculos, nunca usurpámos o lugar de
ninguém. O espaço que ocupávamos há cem anos é o mesmo que ocupamos hoje. As
ervas e os arbustos em redor cresceram, multiplicaram-se, pereceram e voltaram
a crescer. Nós perdurámos, escapámos ao fogo, ao corte da serra, ao calor
abrasador e ao frio extremo, renascemos por fora, estação após estação,
mantivemos a terra viva e saudável e purificámos o ar que nos rodeia e todos
respiram. Penso que já demos muito e nunca exigimos nada em troca excepto
permanecer aqui com o céu e as aves como eternos companheiros.
Mas nos últimos tempos os perigos
aumentaram, muitas de nós foram consumidas pelo fogo que não veio da natureza
mas da perfídia humana. E aqueles companheiros e companheiras que nos voltaram
as costas por ordem humana tornaram-se tão perigosos como as mentes e as mãos
humanas. Que faremos neste tempo tão incerto…?
Hélion, um carvalho secular, ergueu um
ramo alto para pedir a palavra. Olhou em volta e falou na direcção dos
eucaliptos.
− Antes de todos, é para vós que falo pois
pertenceis ao mesmo reino que nós, tal como as ervas, as flores ou os arbustos.
Temos vivido sempre em paz e harmonia. As guerras são uma coisa dos humanos, as
revoluções são o culminar da esperança ou do desespero, a ruptura um fim
irreversível. Sempre apelámos à paz, à harmonia e renovação sem perda ou
aniquilação dos nossos semelhantes. Aqui e além, os humanos já alteraram esta
harmonia inúmeras vezes e nós repusemos o equilíbrio mesmo quando nos encontrávamos
à beira do abismo.
Por isso, penso que neste momento só nos
resta apelar à rebelião, uma revolta universal e consensual. Creio, no entanto,
que não devemos ser nós a rebelar-nos… contra quem o faríamos e como…?
Luni interrompeu Hélion, não apenas para
concordar com o que ele já dissera mas para sugerir um caminho.
− Também já meditei longamente sobre este
assunto. Também entrevi múltiplos caminhos e tentei vislumbrar o que haveria
mais adiante em cada um deles. Quando procurei nos humanos a solução pouco
consegui vislumbrar. Apenas dúvidas, hesitações e resultados imprevisíveis. A
solução tem de vir de nós e nunca contra nós. O preço a pagar é elevado, muitas
de nós terão de perecer, recusar-se a nascer e crescer. E sois vós, eucaliptos,
que tendes nas vossas mãos o destino de todas nós. Sois tão desdenhosas
connosco, esquecestes as vossas origens e os laços comuns que nos unem. Mas
servis, de forma tão cega e subserviente, os desígnios humanos.
Nesse momento a árvore antiga ergueu-se
ainda mais sobre as restantes, como se uma réstia de juventude subisse
subitamente das veias aos ramos mais altos. Entendeu inteiramente o alcance das
palavras de Luni. Voltou-se para os eucaliptos e declarou.
− Sim, não somos nós mas vós, quem deve
rebelar-se. Não contra nós mas contra os que fizeram de vós meros instrumentos
de um mundo a que não pertenceis. Sois escravos sem honra nem glória. Acabais,
mais cedo ou mais tarde, nas lixeiras, longe da terra que vos deu a vida, sem
raízes nem laços que vos prendam a nada. Servis os interesses humanos porque
repudiastes as vossas origens e ninguém pode servir dois amos tão distintos ao
mesmo tempo. Entre nós não há amos nem escravos. Entre nós os “amos” são os que
amam. Entre os humanos, “amos” são os que se amam apenas a si mesmos. Mais dia,
menos dia, esse estranho elo de escravidão também acabará. Eles deixarão de
precisar de vós porque inventaram qualquer coisa nova. E, então, quem vos
receberá no seu seio? Sei que conheceis a resposta. Mostrai que a conheceis e
regressai à floresta, coexisti com todas as outras árvores. De que serve essa
vontade de ocupar todas as encostas, crescer mais depressa, desgastar o seio da
terra, beber toda a água enquanto os outros morrem de sede…? A terra que abriga
as nossas raízes é a mesma. O mal que agora fazeis a todas as plantas da
floresta será um dia também o vosso mal e o vosso ocaso. O sol e a lua
continuarão a viajar pelo céu, mas a terra ficará estéril e vazia… Como pode
alguém escolher o fim…?
Os eucaliptos foram-se voltando
lentamente, um após o outro. Já nenhum assobiava nem escarnecia. Olharam a
assembleia das árvores como se as vissem pela primeira vez, como se
reconhecessem pela primeira vez que eram todas parte de um todo. Do tronco de
um ou outro escorria um fino fio de resina. Curvaram-se como se um grande peso
tivesse subitamente pousado sobre as copas, as folhas caíram quase por completo
e os olhos voltavam-se para a terra toldados por uma névoa escura que nada
deixava ver. No mesmo instante viram-se árvores altíssimas e detritos povoando
as lixeiras. Viram o deserto avançar pelas montanhas na sua direcção e o sol
ser devorado por densas camadas de fumo. Viram tudo o que existia e o que seria
depois quando já não existisse. Viram uma floresta ausente, viram encostas
escorrendo areia, viram-se não existindo. Nesse ponto lá adiante, não muito
distante, não havia nada para ver.
O que lhes pediam era muito, era mais do
que um sacrifício passageiro, era a própria vida. A única forma de se rebelarem
era deixar de nascer e crescer em todos os lugares, como os humanos lhes
ordenavam.
Um dos eucaliptos mais jovens tomou a
palavra. Falou lentamente enquanto olhava a terra e depois o céu.
− Já que estou aqui, hei-de ficar. Hei-de
crescer e ser um eucalipto gigante. Hei-de tornar-me tão robusto como o aço.
Nenhuma serra me cortará. Mas quando algum pobre aldeão me vier buscar para
erguer a sua casa, irei com ele e serei a sua casa e nunca mais voltarei a
nascer nem a multiplicar-me na terra. Não beberei a água das nascentes nem
sugarei os minerais da poeira subterrânea. Serei apenas a casa e serei feliz.
Outros eucaliptos entreolharam-se e
viram-se pontes, passadiços, cancelas e casas, folhas de papel e livros. Todos
queriam afinal ter uma finalidade mas não um fim. Mas para isso, muitos não
poderiam voltar. Aquela seria a sua única vida.
Desde esse dia, viveram mais do que nunca.
Sendo apenas árvores, seres verdadeiros e generosos. Ano após ano, foram
partindo. Transformaram-se em coisas úteis e amadas. Continuaram a viver de
outro modo em muitos outros lugares.
Só alguns regressaram para serem como eram
antes, árvores entre árvores. E a floresta sorriu de novo e perdurou. Perdura
em plena harmonia protegida pela ampla abóboda do céu.
São
Ludovino, 21/12/2018
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A história acima − O que prende à terra − foi inspirada numa situação real, a proliferação do eucalipto na paisagem portuguesa e o seu efeito nocivo nos solos, que se vão desgastando e tornando cada vez mais secos e áridos, potenciando também a propagação de incêndios, quase sempre de origem criminosa. Mas foi também inspirada no próprio conteúdo do musical À Procura De Um Pinheiro, de José Carlos Godinho, especialmente na canção “Somos Pinheiros”. Somos pinheiros
(Depois da tempestade inicial, os pinheiros apresentam, serenamente, o seu pedido de sobrevivência)
«Somos pinheiros queremos viver,
temos ainda tanto a fazer!
Não nos destruam nem tirem do chão,
pois é diferente a nossa função!
Do nosso tronco saem madeiras, para fazer
móveis, mesas, cadeiras
Portas estantes tacos para o chão,
bem como lenha para o fogão.
De oxigénio enchemos o ar,
para toda a gente poder respirar.
Damos resina, lápis pincéis, bem como pasta para papéis.
E muito mais podemos fazer, eis a razão de querermos viver!
Não nos destruam nem tirem do chão,
pois é diferente a nossa função!»
À Procura De Um Pinheiro de José Carlos Godinho (excerto)
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