domingo, 31 de outubro de 2021

VERSO E REVERSO DA ALMA LUSITANA

 LIRISMO, TRAGÉDIA E REALISMO

     «Contrariamente à crença geral, a verdade não se impõe por si mesma. O erro que entra no domínio público permanece nele para sempre. As opiniões transmitem-se, hereditariamente, como as terras. Constrói-se nelas. As construções acabam por formar uma cidade - e ditar a história.» Henri Bergson (1859-1941) 

      Voltemos, agora, ao lirismo trágico que perdura na literatura e nas crenças populares. Até porque, para além de todo o contexto, aquilo que perdurou através do tempo foi a história/lenda de amor e não os meandros da intriga política ou os traços patológicos do carácter de D. Pedro. E esta memória faz sentido, porque provavelmente não há histórias mais intemporais e universais do que as histórias de amor ou aquelas que são tomadas como puras histórias de amor. Mas para que estas histórias se tornem verdadeiramente belas, às vezes, é preciso depurá-las, arrancá-las à própria realidade e aproximá-las de um ideal intangível e, ainda assim, intrinsecamente humano. Através destas histórias trágicas, não é apenas um sentimento individual que perdura, é o próprio amor, enquanto arquétipo eterno capaz de sublimar todo o mal, toda a dor e todos os erros, que ultrapassa as barreiras do tempo e das vivências individuais.

     Há algumas décadas, Jacinto do Prado Coelho (Originalidade da Literatura Portuguesa, ICALP, 1977) apontava o lirismo e a sátira como dois dos principais traços distintivos da Literatura Portuguesa e lamentava a escassez de narrativas de grande fôlego, embora considere que Portugal tem “bons autores de ficção”. O lirismo cruza-se com o saudosismo e cria uma ambiência mental inclinada para o subjectivismo e avessa à acção (o sentir que se sobrepõe ao agir). A acção é de facto o elemento estruturante da narrativa, tal como o subjectivismo e as emoções são a força vital do lirismo. Esta tendência para o lirismo e o subjectivismo seria um reflexo do próprio “ser português”. Cada literatura reflecte o povo que a cria. Mas a par da “literatura lacrimejante”, surge a sátira e a comédia, como contraponto ao carácter depressivo e também como tendência natural do temperamento português. Vista deste modo, a Literatura Portuguesa quase parece bipolar: o autor / leitor chora a beleza triste de um episódio amoroso e / ou trágico e, logo a seguir, tem de contar uma anedota para equilibrar as emoções. Hoje a comédia e o humor estão por todo o lado, no stand up, nos programas televisivos, mesmo nos de comentário e crítica, e em qualquer mesa de café. Quem não sabe contar uma anedota, às vezes absurda e até ofensiva, é enfadonho e pessimista, não tem sentido de humor. Quem não se comove com um belo poema de amor é um insensível sem coração. Estas são dicotomias radicais mas não distantes da realidade.

D. Pedro I - Feira Medieval em Santa Maria da Feira, 2018.

     Jacinto do Prado Coelho nota também a “escassez do trágico” na Literatura Portuguesa. Como verdadeiramente trágicas, e seguindo Ruben A., aponta apenas três obras: Inês de Castro (sem nomear explicitamente a Castro de António Ferreira ou outra), Frei Luís de Sousa (Almeida Garrett) e algumas “páginas da História Trágico-Marítima” (Bernardo Gomes de Brito). Mais adiante, seguindo Miguel de Unamuno, acrescenta Camilo Castelo Branco, que “exalta aquele sentido trágico da existência”. O trágico genuíno tende a esbater-se e o que fica é apenas uma aproximação à tragédia: «(…) as arestas do trágico tendem a esbater-se, na literatura portuguesa, em cambiantes do sentimental ou do elegíaco ― para não falar no melodrama».

     A lenda dos amores de Pedro e Inês é em si mesma genuinamente trágica, lírica e subjectiva; bebe a inspiração na História mas afasta-se dela. E, no entanto, quase todos os que apreciam a tragédia de Pedro e Inês tomam a lenda como história completamente factual. A História autêntica é muito mais trágica e, por isso mesmo, incompatível com o lirismo intimista que pode dilacerar a alma mas deixa o corpo vivo para continuar a experimentar a dor. A tragédia não recorre a subterfúgios, apresenta a crueza da dor e da morte que nenhuma “justiça” pode redimir. Talvez por isso, a lenda continua tão viva, como forma de tentar fazer “justiça” ao longo do tempo. Quem não se comove com os amores trágicos de Pedro e Inês, tal como a Literatura os apresenta, deve ser de facto insensível. Neles há vida autêntica, lirismo e tragédia. Apesar do apego persistente a esta tragédia específica, que já conta 665 anos, Jorge Dias, citado por J.P. Coelho, afirma: «O Português não gosta de ver sofrer e desagradam-lhe fins demasiado trágicos». Os criadores da lenda e os leitores que solicitaram a introdução da cena da coroação do cadáver de D.ª Inês na Nova Castro, de João Baptista Gomes, contrariam esta visão.

Nova Castro, tragedia de João Baptista Gomes Junior. 
Nova ed. cor. de muitos erros, e augmentada com a brilhante scena da coroação, 
João Baptista Gomes, Typographia de Sebastião José Ferreira, Porto, 1857.

     Cada leitor ou espectador é, antes de mais, um ser humano que sente e busca emoções. O amor transcendente e sem barreiras de Pedro e Inês é muito mais mito e utopia do que História e, por isso mesmo, é também mais um reino de emoções do que uma sucessão de actos. Na vida real, poucos seriam os que aplaudiriam a morte de Inês, mesmo que ela fosse uma conspiradora maquiavélica e dissimulada. Na vida real, poucos seriam os que defenderiam o frio homicida que arranca corações. Na vida real, poucos seriam os que fariam a apologia da traição e dos traidores, pois toda a história de Pedro e Inês é fundada neste alicerce decadente e destrutivo. Na vida real, poucos seriam os que defenderiam a felicidade individual em detrimento do bem e soberania do próprio país. Mas perante a imagem idealizada de um amor maior do que o poder político, do que o interesse nacional e do que a própria vida, os factos tornam-se irrelevantes ou são interpretados com outros olhos. As emoções íntimas e subjectivas têm estas nuances contraditórias; são capazes de tolerar e justificar a cobardia, a traição, o horror, o ódio, se eles forem meios para atingir um “fim maior”: o amor, humano e divino, terreno e imortal. E nenhum espectador se sente culpado por sentir empatia, mais ou menos profunda, com os amantes trágicos; nem aqueles que jamais agiriam como eles, nem os que os consideram apenas um símbolo do excessivo sentimentalismo nacional, nem os que vêem neles sublimes heróis trágicos, nem aqueles que simplesmente sentem, interiorizam e partilham tudo o que vêem, lêem ou ouvem.

     A maior parte dos receptores e transmissores populares ao longo dos séculos tem muito deste último grupo, o dos que sentem tudo e tornam suas todas as histórias. Se não fossem estes, a lenda nunca se construiria, toda a poesia amorosa seria uma coisa árida e os escritores eruditos veriam a sua fantasia e inspiração sistematicamente destruída pela racionalidade, pela História e pelas exigências dos leitores de cada época. Mas nenhum autor passa incólume pelo seu tempo; cada vez que a história de Pedro e Inês foi reescrita, apesar de manter uma dose mais ou menos elevada e intemporal de lirismo trágico, assimilou o espírito de cada época, foi metamorfoseando a Lenda e a História.

D. Inês de Castro, António da Costa Pinheiro.

     Enquanto, até meados do século XIX, a figura principal continuou a ser D.ª Inês, vista como vítima indefesa e heroína trágica, a partir de meados desse século, D. Pedro assumiu muitas vezes o protagonismo (ex. António Patrício, Pedro o Cru, drama em 4 actos, 1918; Pierre de Portugal, tragédie en cinq actes par Lucien Émile Arnault, 1827), em grande medida devido ao avanço nos estudos historiográficos que já não permitia aos mais eruditos alimentar a lenda de forma tão ingénua. A História não mostra um D. Pedro imaculado e justo, mostra um ser humano com uma personalidade forte, com muitos excessos e máculas; vícios e virtudes passaram a coexistir na personagem e as abordagens tornaram-se menos ingénuas e facciosas. Já no século XX, houve até quem, finalmente, tenha feito de D.ª Constança (ex. Eugénio de Castro, Constança, 1900; A Morte de Constança, poema, 1902), a heroína trágica, porque de facto foi ela a primeira vítima real desta tragédia. Mais recentemente, Isabel Machado publicou Constança – A Princesa Traída por Pedro e Inês (A Esfera dos Livros, 2015).

     Até ao presente, foram escritas centenas de obras sobre a lenda de Pedro e Inês, em vários lugares, tempos e línguas. A história ficou lá atrás, a lenda não morre, não morre Pedro e Inês nem acabam os amores trágicos. Na bibliografia indico algumas dessas obras (literárias, teatrais, musicais, iconográficas) com alguns comentários, notas ou meras interpretações pessoais.


Pierre de Portugal, tragédie en cinq actes par Lucien Émile Arnault, 1787-1863. 
Chez J.N. Barba, Libraire, Paris, 1823.

Poesias escolhidas, 1889-1940, Eugénio de Castro, 1869-1944, Livraria Aillaud & C.ª, Paris-Lisboa, 1902 - A Morte de Constança.

Eugénio de Castro in Poesias Escolhidas, 1889-1940, Eugénio de Castro, 1869-1944, 
Livraria Aillaud & C.ª, Paris-Lisboa, 1902.

Pedro, o Cru - Drama em 4 actos, de António Patrício, Atlântida, Lisboa, 1918.


Sinde Filipe em Pedro, O Cru, de António Patrício, RTP, 1966.

D. Pedro I, o Cru - Esboço de estudo nosographico, Jayme Moreira. Lisboa, 
Typographia do Annuario Commercial, 1914.


Noites de Inês-Constança, Fiama Hasse Pais Brandão, Assírio & Alvim, 2005.



LENDA & HISTÓRIA XIII

 INTERROGAR FAZ BEM

     Leia-se a História e a Lenda com a mesma dedicação e o mesmo bom senso. Quem quiser, pode também colocar interrogações e tentar responder-lhes de diversos modos, conforme a face ou faces do prisma por onde olhar. E se D.ª Inês nunca tivesse vindo para Portugal, acompanhada pelos seus ambiciosos irmãos? E se D. Pedro tivesse colocado a soberania do reino acima dos seus sentimentos, interesses e ambições? E se D.ª Inês tivesse respeitado e amado a princesa (D.ª Constança) que a incluiu no seu séquito e tivesse respeitado a nação que a acolheu? E se as rivalidades entre Castros, Pachecos, Teles de Meneses, Pereiras e outros tivessem seguido um rumo diferente e tivessem colocado sempre Portugal e o Povo, uno e diverso, à frente das suas ambições? E se D.ª Inês não tivesse sido assassinada ou se um dos seus filhos tivesse, de facto, subido ao trono de Portugal? O mais provável é que Portugal deixasse mesmo de existir e fosse engolido por Castela e Leão. Portugal seria uma outra Catalunha, uma Galiza, um País Basco, uma Andaluzia, um território sempre em busca de mais autonomia ou da independência há muito perdida. A Língua Portuguesa desapareceria; quando muito assemelhar-se-ia ao que é hoje o galego. D. João I, Mestre de Avis, nunca teria sido rei, nunca teria casado com D.ª Filipa de Lencastre e a Ínclita Geração nunca teria nascido. Não teria havido um Infante D. Henrique, uma Escola Náutica de Sagres, viagens até aos quatro cantos do mundo, excepto nas caravelas castelhanas. Talvez o genocídio dos povos nativos dos territórios conquistados tivesse sido menor ou maior, talvez tivesse havido menos ou mais tráfico de escravos, menos ou mais “cobiça e glória de mandar” (Camões, Os Lusíadas, Canto IV). Não teria havido um Brasil ou nações africanas que falam Português. Provavelmente, a colonização de todos os territórios conquistados teria sido idêntica, mas muito mais ampla e destrutiva, sem o Tratado de Tordesilhas… e um dia, sabe-se lá quando, uma geração de jovens perguntaria “Por que morreu Portugal quando era ainda tão jovem?”. Ou então, não. A maioria esqueceria quem era e quem tinham sido os seus antepassados ou ficaria simplesmente feliz com a abolição de fronteiras e a ilusão de pertencer a uma nação maior e “melhor”, embora a Espanha só tenha sido realmente unificada e assumido o nome que tem hoje no século XVIII. Certos sectores da nobreza, sempre ambiciosa, comodista e parasitária, com o tácito e estratégico apoio de grande parte do clero, rejubilariam com a União Ibérica, a Monarquia Dual ou Única. E se as elites ficassem felizes, pouco importaria a voz do Povo. O Povo não é português, castelhano, francês, inglês… é o Povo. 


Ilustração de Cândido Portinari (1903-1962).

Ilustração de Manuel Ribeiro Pavia (1907-1957) in Fanga de Alves Redol.

     Seja qual for a perspectiva que se adopte, o efeito do tempo acaba por vencer, pelo menos parcialmente. O tempo, que transforma a História em lenda e mito, há muito que transformou os amores de Pedro e Inês num dos mais queridos mitos nacionais. Para isso contribuiu a Literatura, mas também certos traços do ser lusitano, o lirismo, o saudosismo e a tragédia. Camões já conhecia bem esses traços colectivos, que também faziam parte do seu próprio carácter individual, ou não teria incluído o episódio lírico-trágico dos amores de Pedro e Inês (Canto III) na maior epopeia nacional (Os Lusíadas).

Os Lusíadas, Luís Vaz de Camões, Lisboa, 1572 (1.ª edição).



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sábado, 23 de outubro de 2021

LENDA & HISTÓRIA XII

 MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES… E AS PRÁTICAS

      A História das sociedades e das instituições, que as suportam e moldam, mostra bem como o verdadeiro Humanismo levou muitos séculos a construir-se e continua inacabado e imperfeito. Também demonstra que a tortura física e as execuções mais bárbaras eram comuns, toleradas e até consideradas uma forma adequada de praticar a justiça. Seria necessário chegar ao século XIX para que a pena de morte fosse questionada e gradualmente abandonada. Em Portugal, seria abolida em 1867, no reinado de D. Luís.





D. Luís I (1838-1889).
Retrato do rei D. Luís (1865-68), por Michele Gordigiani. Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa.



Carta de Abolição da Pena de Morte em Portugal, 1867, reinado de D. Luís.



     Quanto aos casamentos de consanguinidade, por vezes com um grau de parentesco muito próximo, também só começaram a ser abandonados no século XIX, quando a Medicina e a Psiquiatria vieram demonstrar que a degenerescência, as taras e doenças hereditárias eram uma consequência inevitável dessa prática, sobretudo entre as famílias reais e aristocráticas.


A imbecilidade e degenerescencia nas familias reaes, Dr. Antão de Mello, 
Livraria Central de Gomes de Carvalho, Lisboa,1908.

A imbecilidade e degenerescencia nas familias reaes, Dr. Antão de Mello, Livraria Central de Gomes de Carvalho, Lisboa,1908.

     Segundo os padrões éticos actuais, D. Pedro seria considerado um déspota e ninguém sensato se atreveria sequer a associá-lo a uma bela história de amor. Aquilo a que se chamou justiça seria hoje classificado como extrema barbárie. Os conluios, conspirações e nepotismo (que continuam a existir e de forma ainda mais generalizada) seriam hoje alvo de exame e crítica, mesmo que passassem impunes pelo largo crivo da lei, como é demasiado frequente. Os casamentos de conveniência ou a proliferação da concubinagem e de filhos bastardos seriam hoje encarados como manifestações de uma moral hipócrita, de fragmentação e destruição das relações sociais, familiares e pessoais e como causa de inúmeros traumas e crimes. D. Pedro e D. Inês foram também um produto do seu tempo, um tempo em que a barbárie coexistia por vezes com laivos de humanidade imprescindíveis à construção e sobrevivência de todas as lendas.

D. Pedro I, ilustração de António Costa Pinheiro.



LENDA & HISTÓRIA XI

 A ESQUIVA INTRIGA POLÍTICA E OS CASAMENTOS DE CONVENIÊNCIA

 

     Com D.ª Inês, D. Pedro teve quatro filhos (Afonso, João, Dinis e Beatriz). De outras mulheres, algumas também servidoras de D.ª Constança e de D.ª Inês, teve outros filhos. Cerca de dois anos após a morte de D.ª Inês, teve, com Teresa Lourenço, D. João, também filho bastardo, que viria a tornar-se Mestre de Avis, D. João I, o pai da Ínclita Geração. D. João I nasceria em Lisboa a 11 de Abril de 1357 e morreria na mesma cidade a 14 de Agosto de 1433. António Luís de Sousa Henriques Secco (1822-1892), nos Novos elogios historicos dos reis de Portugal, afirma que D. Pedro teve, pelo menos mais uma filha de mãe não identificada, contemplada no seu testamento: «(…) e ultimamente uma outra filha, como se deprehende do testamento, que fez na véspera da sua morte, cujo nome e maternidade se ignora.» A história dos filhos de D. Inês é também interessante e comprova como eram perigosos para a soberania do reino, mas não cabe neste artigo já longo. Abaixo, afloro apenas alguns episódios mais marcantes da vida de D. João de Castro no que toca à pretensão ao trono de Portugal.

      A intriga política é intrincada e extensa, não cabe aqui nem possuo todos os dados necessários para a abordar de forma adequada. Nos posts finais sobre o tema “Pedro & Inês”, apresento uma longa bibliografia e links para quem estiver interessado. Ler apenas uma parte pode significar seguir apenas o caminho da Lenda ou da História; ler a totalidade pode destruir uma das mais belas histórias de amor da Literatura Portuguesa. É só uma advertência… Ou então lê-se, descobrem-se os meandros da verdade, olha-se pelas múltiplas faces do prisma e tenta-se separar as águas. Qualquer que seja a perspectiva que se adopte, o certo é que o contexto histórico-cultural é sempre essencial para compreender as pessoas de cada época.

     É evidente, por exemplo, que o casamento enquanto laço contratual de benefício recíproco, como o que vigorava na época, não é comparável ao casamento fundado no amor, como supostamente acontece na maioria das sociedades actuais. No entanto, ao contrário do que se possa supor, para os cidadãos comuns, casar era fácil e acessível a qualquer um: bastava a presença de duas trestemunhas, nem sequer era preciso apresentar uma dispensa de consanguinidade ou registos notariais e também havia uniões consanguíneas entre as classes intermédias e mais baixas. A este tipo de casamento, à margem das burocracias civis e eclesiásticas, chamava-se casamento «por palavras de presente», isto é, bastavam as palavras dos nubentes declarando que desejavam casar um com o outro. Este tipo de casamento não era considerado completamente legítimo e era evitado, sobretudo para evitar dissabores futuros aos seus descendentes.

     Os casamentos complicados eram os dos membros da casa real e da nobreza, quer os das linhagens legítimas quer das ilegítimas. Estes dependiam de bulas, autorizações e perdões da Santa Sé, que deste modo controlava ainda mais a vida política das nações. Estes estabeleciam contratos pré-matrimoniais com muitas cláusulas com o objectivo de salvaguardar os direitos e privilégios das partes, tanto do ponto de vista material como político. No caso das princesas e príncipes herdeiros, as cautelas eram ainda maiores e os contratos eram redigidos por um conselho de peritos (juristas, eclesiásticos e políticos). Em teoria, quebrar um destes contratos tinha consequências sérias. Mas não parece tê-las tido quando D. Pedro quebrou o contrato matrimonial com D. Branca de Castela.

     D.ª Leonor Teles de Meneses também quebrou o contrato de casamento com o seu primeiro marido, para se casar com o herdeiro da coroa portuguesa, D. Fernando, filho de D. Pedro I. Primeiro abandonou o marido (João Lourenço da Cunha, de quem já tinha um filho), depois casou duas vezes com D. Fernando, primeiro “por palavras de presente” (1371) e depois através de um casamento público (1372), em Leça do Balio. Posteriormente, para ver reconhecido este último casamento e a legitimação da filha de ambos, D.ª Beatriz, herdeira da coroa portuguesa, conseguiu uma autorização da Santa Sé, alegando a existência de um laço consanguíneo com o seu primeiro marido que desconheceria na altura em que casou. Este pedido de dispensa foi pedido à Santa Sé pelo próprio D. Fernando. Para casar com D.ª Leonor Teles, D. Fernando quebrou o contrato matrimonial com D.ª Leonor de Trastâmara, filha de Henrique II de Castela.

D. Leonor Teles. Ilustração de Roque Gameiro.

     A infeliz irmã de D.ª Leonor Teles, D.ª Maria Teles de Meneses, casou secretamente, sem qualquer autorização ou documento específico, com D. João de Castro, filho de D.ª Inês, e meio-irmão de D. Fernando. Também ela já era casada com D. Álvaro Dias de Sousa, de quem tinha um filho. Passados sete anos de união, D. João de Castro (também designado D. João de Portugal por aqueles que consideravam ser ele o legítimo herdeiro da coroa durante a crise de 1383-1385), assassinou a mulher, D.ª Maria Teles, à punhalada. 

D. João de Castro, filho de Inês de Castro e de D. Pedro I mata a mulher, Maria Teles, irmã de Leonor Teles. Ilustração de Roque Gameiro in Leonor Telles de Marcelino Mesquita, Lisboa, 1904 (3 vols.).

     D. João de Castro, apoiado pela alta nobreza portuguesa, estaria mesmo decidido a ser rei de Portugal, casando com D.ª Beatriz (filha de D. Fernando e D.ª Leonor Teles). D.ª Leonor Teles terá sido conivente com o assassinato da irmã (segundo alguns foi a instigadora), inventando um adultério que não existia, pois desejaria ver D.ª Beatriz, sua filha, casada com o suposto herdeiro da coroa portuguesa. Segundo outros, a trama vem sobretudo de D. João de Castro que, não sendo jurado herdeiro da coroa portuguesa, poderia obtê-la casando com D.ª Beatriz. Contudo, o assassinato de D.ª Maria Teles teve graves consequências para D. João de Castro que se viu obrigado a fugir para Castela. Casa novamente, com D.ª Constança de Castela, la Rica Hembra, filha bastarda de D. Henrique II de Castela, e pega em armas contra Portugal e o Mestre de Avis, futuro D. João I de Portugal. Reclama para si o trono de Portugal em concorrência com a própria D.ª Beatriz, com quem não casou, com o Mestre de Avis (seu meio-irmão) e com o próprio D. João I de Castela. Este último, sabendo-o seu rival na pretensão ao trono português, prendeu-o em Salamanca onde acabou por morrer e foi sepultado no Mosteiro de Santo Estêvão. 

     D. João de Castro teve, pelo menos, onze filhos de cinco mulheres diferentes (4 legítimos e 7 ilegítimos). D.ª Beatriz de Portugal, filha de D. Fernando, acaba por casar com D. João I de Castela. O Mestre de Avis acaba por ascender ao trono como D. João I de Portugal e D.ª Leonor Teles, depois de ter mandado prender o Mestre de Avis em Évora, vê-se obrigada a refugiar-se em Castela e a recolher-se no Mosteiro de Tordesilhas (por ordem do seu genro, D. João I de Castela) onde viria a morrer.

Prisão do Mestre de Avis por ordem de Leonor Teles. Ilustração de Alfredo Roque Gameiro 
in História de Portugal, popular e ilustrada, por Manuel Pinheiro Chagas, (1899-1905).

     Os meandros desta intrincada história de ambição, traição e morte tem ainda muitas lacunas por preencher, mas também muitas inquietantes certezas. O contexto histórico-cultural e político ajuda a compor o puzzle e a discernir o essencial sobre os actos, as causas e as consequências.


sexta-feira, 22 de outubro de 2021

LENDA & HISTÓRIA X

 AS LENDAS PRECISAM DE SÍMBOLOS, FÁBULAS… E COINCIDÊNCIAS

     Outro erro propagado pela lenda refere-se à colocação dos túmulos, que mudaram de lugar e posição várias vezes. Inicialmente estavam colocados lado a lado e não frente a frente. Essa disposição terá sido adoptada apenas no século XVII ou até XVIII por uma mera questão de conveniência espacial, permitindo desse modo uma maior mobilidade durante as cerimónias religiosas. Este facto prova que esse detalhe só foi adicionado à lenda tardiamente. Segundo a lenda, D. Pedro terá escolhido esta disposição dos túmulos (frente a frente) para que no Dia do Juízo Final, quando ressuscitassem dos mortos, ele e D.ª Inês pudessem ver-se um ao outro desde o primeiro instante (cf. Manuel Vieira Natividade (Ignez de Castro e Pedro o Cru - Perante a iconographia dos seus túmulos, Lisboa, 1910). Os túmulos foram abertos no reinado de D. João III e no de D. Sebastião, mas não mudados de lugar nem danificados. Como já foi referido acima, os danos começaram a surgir mais tarde com as Invasões Francesas.

     Citando Ferdinand Denis, Vieira Natividade refere o suposto roubo dos cabelos de D. Inês pelos soldados franceses quando passaram por Alcobaça em 1811. Mesmo assim, algumas madeixas teriam sido salvas para depois se perderem no Brasil, quando uma rajada de vento tudo levou:

     «Ferdinand Denis dá testemunho de que vira uma carta em que o marquez de Rezende dizia que uma grande porção dos cabellos de D. Ignez fora levada á corte do Rio de Janeiro, e que, na occasião em que o conde de Linhares a estava offerecendo a D. João VI, foram arrebatados por uma forte ventania, sem que jamais fosse possível encontra-los.

     O mesmo auctor igualmente da noticia de que uma pequena madeixa de cabellos de D. Ignez de Castro, que vira n'outro tempo no gabinete de Denon, se conservava ultimamente num relicário da collecção do conde de Pourtales.

     O sr. Miguel Osório Cabral de Castro, actual proprietário da quinta das Lagrimas, possue alguns fios dos cabellos de D. Ignez de Castro em um lindo relicário.

     Em Alcobaça uma única pessoa possuía cabellos de D. Ignez. Era o sr. Bernardino Lopes d'Oliveira. Foram-lhe offerecidos, segundo nos declarou, por um velho de Alcobaça, que se dizia o próprio que collocara os restos de D. Ignez dentro do tumulo, logo que os francezes sahiram de Alcobaça.

     E temos que accrescentar á curiosa galanteria dos cabellos, pretendidos anneis, que correm como authenticos, relíquias do seu vestuário, e... um próprio seio mumificado!»

(In Ignez de Castro e Pedro o Cru - Perante a iconographia dos seus túmulos, Manuel Vieira Natividade, Lisboa, 1910, págs. 114-116)


Túmulos de D. Pedro I e D. Inês de Castro, Mosteiro de Alcobaça.
(Ignez de Castro e Pedro o Cru - Perante a iconographia dos seus túmulos, Manuel Vieira Natividade, Lisboa, 1910)



Manuel Vieira Natividade, Lisboa, 1910

     A título de curiosidade, António Pereira de Figueiredo, nos Elogios dos Reis de Portugal, menciona umas “memórias antigas” em que se conta que D. Pedro ressuscitou temporariamente, porque se tinha esquecido de confessar um pecado. Confessou esse pecado inominado e voltou a morrer. 

          «Deste Rei se acha escrito em Memorias antigas, que quando já estava para ser sepultado, ressuscitára pelos merecimentos, e orações do Apostolo São Bartholomeo, de quem fora especial devoto; e que depois de se ter confessado de certo peccado, que antes lhe tinha esquecido, tornára a expirar.

     O mesmo estando próximo à morte declarou, que elle sabía, que Diogo Lopes Pacheco estava innocente na morte de D. Ignez de Castro; e por isso mandava, que lhe fossem restituídos todos os seus bens, e elle ao Reino, donde andava fugitivo. O que tudo cumprio depois El-Rei D. Fernando à risca.» 

     Também contam vários autores que D. Pedro teve um sonho em que via um filho seu, de nome João, subir ao trono de Portugal após a sua morte. Não se sabe se nesse sonho terá reparado em quem era a mãe: Inês de Castro ou Teresa Lourenço. Após a morte de D. Fernando, foi D. João, Mestre de Avis, filho natural de D. Pedro e de Teresa Lourenço, quem subiu ao trono. D. João, filho de Inês de Castro e de D. Pedro, conjuntamente com seu irmão, D. Dinis, aliou-se a um dos partidos de Castela e pegou em armas contra Portugal. D. João de Castro casou com D.ª Maria Teles, que era aia da infanta D. Beatriz (filha de Inês de Castro) e irmã de D.ª Leonor Teles que casou com D. Fernando. D.ª Maria Teles acabou assassinada à punhalada (uma no coração, outra nas virilhas) por D. João de Castro, seu marido. D. João foge depois para Castela, indo refugiar-se junto da irmã Beatriz, que entretanto casara com o Conde de Albuquerque (irmão de Henrique II de Trastâmara, rei de Castela, filho bastardo de Afonso XI), que vivia na zona de Salamanca. Parece que pelo menos este filho de Pedro e Inês herdou a propensão para aniquilar quem menos o merecia. Mais uma vez, a violência e os punhais…  

     Outra curiosidade, que nada acrescenta à História, excepto aquela sensação de haver coincidências estranhas, é o facto de três mulheres, ligadas pela genealogia, terem morrido todas no dia 7 de Janeiro: D.ª Inês foi assassinada a 7 de Janeiro de 1355; D.ª Catarina de Aragão (filha dos Reis Católicos, Isabel I de Castela e D. Fernando II de Aragão, além de uma das seis mulheres de Henrique VIII) morreu a 7 de Janeiro de 1536; D.ª Carlota Joaquina (mulher do rei D. João VI) morreu a 7 de Janeiro de 1830. Já agora, D. Dinis também morreu no dia 7 de Janeiro, em 1325.


Catherine of Aragon by Michel Sittow, 1468-1525, n.d.


LENDA & HISTÓRIA IX

 A NUNCA ESQUECIDA CONSTANÇA

 

     D.ª Constança, também descrita como muito “bela e discreta”, não foi sepultada num panteão real mas num túmulo singelo (“arca pétrea”) em Santarém. O facto de ter sido a mãe do futuro rei de Portugal, D. Fernando, não foi suficiente para que D. Pedro a honrasse ou homenageasse. Pelo contrário, a sua memória parece ter sido completamente apagada. D.ª Constança foi inicialmente (1345) sepultada no Convento de S. Domingos das Donas (ou Convento das Donas). Posteriormente, em 1376, D. Fernando, seu filho, ordenou que os seus restos mortais fossem trasladados para o Convento de São Francisco, também em Santarém, para serem sepultados numa zona nobre da igreja, o coro-alto. Foi, aliás, D. Fernando quem se preocupou em restaurar e ampliar este convento, construindo o coro-alto e o claustro. Além disso, elevou este convento à qualidade de “panteão régio”, recusando que sua mãe fosse sepultada em Alcobaça e fosse novamente humilhada, mesmo depois de morta. Por vontade sua, D. Fernando viria a ser sepultado ao lado da mãe, a mãe que ele nunca conheceu, pois D.ª Constança morreu duas semanas após o parto e o infante seria criado pelos avós, D. Afonso IV e D.ª Beatriz.

     No final do século XIX (1875), ambos os túmulos foram transferidos para o Museu Arqueológico do Convento do Carmo, em Lisboa. Motivo? Os sucessivos actos de vandalismo contra estes túmulos, quer durante as Invasões Francesas, quer durante a Revolução Liberal, quer durante o processo de extinção das ordens religiosas e, mais tarde, com a instalação do Regimento de Cavalaria n.º 4 que assentou arraiais no Convento de São Francisco (Santarém) em 1844. Os militares decidiram usar os túmulos de D. Fernando e D.ª Constança como “cavalete de selas”, um apoio para as selas dos seus cavalos quando não estavam a ser usadas!!! Almeida Garrett, ele próprio um liberal, lamenta, nas Viagens na Minha Terra, o estado de decadência em que se encontrava o Convento de São Francisco e os túmulos reais nessa mesma altura (1846): «O belo jazido do rei formoso e frívolo (D. Fernando), tão dado às delícias do prazer como foi seu pai às austeridades da justiça, em que estado ele está! Oh nação de bárbaros! Oh maldito povo de iconoclastas que é este

 

D. Fernando I - Portret van koning Ferdinand I van Portugal.


Túmulo gótico de Fernando I de Portugal - convento do Carmo, Lisboa. Fotografia de Stephan Classen.


A SEMPRE ESQUECIDA CONSTANÇA

 

     D. Pedro não humilhou apenas D.ª Constança, em vida e depois de morta; humilhou também a sua avó, a rainha D.ª Isabel, mulher de D. Dinis (1261-1325). D.ª Isabel (1271-1336) mandou erigir o paço real de Coimbra, junto ao Mosteiro de Santa Clara, para se proteger das constantes infidelidades e maus tratos de D. Dinis, que chegou a exilá-la em Alenquer e a retirar-lhe as terras e bens que lhe pertenciam. Pois foi precisamente nesse paço de Coimbra, onde a fiel (D.ª Isabel) se refugiava do infiel (D. Dinis), que D. Pedro, o eterno infiel, se instalou com D.ª Inês após a morte de D.ª Constança, e foi no cemitério desse mosteiro que, segundo alguns, D.ª Inês foi inicialmente sepultada, em campa rasa. D.ª Isabel, que falecera em Estremoz, foi sepultada precisamente no Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra. Não surpreende, portanto, que tal comportamento de D. Pedro tivesse suscitado tanta revolta, não apenas pela relação que mantinha com D.ª Inês, mas porque com cada acto parecia querer humilhar e ofender a memória dos que já tinham partido. Antes de Coimbra, D. Pedro e D.ª Inês viveram temporariamente em outros locais, como Moledo, Canidelo, Jarmelo (Guarda), entre outros, mas a escolha do paço real de Coimbra foi certamente um acto premeditado e intolerável.   

     D. Fernando mandou gravar no túmulo da mãe o brasão dos Manuel (família de D.ª Constança Manuel) e da casa real portuguesa (casa de Borgonha, dinastia Afonsina). Mandou ainda gravar diversas cenas da vida de S. Francisco, incluindo uma em que este fala com os animais como seus iguais.

     D. Pedro, entre outros motivos decorativos, mandou gravar no seu túmulo uma Roda da Fortuna e, no de D.ª Inês, uma representação do Juízo Final em que uma fila de mortais caminha para cima, em direcção ao Paraíso, e outra fila caminha para baixo, em direcção ao Inferno. Como é natural, depreende-se que D. Pedro se imagina, a si e a D.ª Inês, entre aqueles que caminham para o Paraíso. Uma estranha consciência dos próprios actos que o leva a pensar que merecia a recompensa celestial. Entre os motivos religiosos gravados, um parece estranhamente violento: o diabo abre o ventre a Judas para lhe roubar a alma. De entre os elementos profanos, é curiosa a presença de vários instrumentos musicais no túmulo de D.ª Inês; D. Pedro sempre gostara de música, danças e divertimentos. No túmulo de D. Pedro está também a inscrição “Até ao fim do mundo”, um epitáfio perfeito. O facto de o túmulo de D.ª Inês ser ligeiramente menos sumptuoso e ter menos detalhes gravados deve-se, provavelmente, à determinação de a sepultar em Alcobaça com a máxima brevidade, após a declaração de Cantanhede.


"D. Constança, primeira mulher de D. Pedro I" por Roque Gameiro.

Constança – A Princesa Traída por Pedro e Inês, Isabel Machado, A Esfera dos Livros, 2015

 

Visita Guiada às Ruínas do Carmo, em Lisboa – Portugal

(D. Fernando I, a partir dos 11:57 minutos)

 

OTúmulo de D. Fernando I é um documento político (apenas o excerto referente a D. Fernando I)