DIAS SINGULARES: junho 2014

A Escola de Maridos / L’École des Maris / The School For Husbands (1661), de Moliére. Representação pelos alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo (Interpretação), 11.º ano – turma 13, da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, no dia 5 de Junho de 2014. Encenação de Victor Sezinando. Apoio a Voz a Movimento de Joana Sapinho.

Sensivelmente a meio da sua formação inicial em teatro (interpretação), este grupo de alunos desempenhou exemplarmente o desafio de representar mais uma peça de Molière, A Escola de Maridos.

É uma comédia e, por isso, um teatro menos sério, mais fácil de levar à cena, dirão alguns. De forma alguma! Foi isso que demonstrou a encenação (Victor Sezinando) e o desempenho dos jovens intérpretes. Obrigados a regredir no tempo até ao século XVII, ajudados por uma indumentária de época muito verosímil e adequada, interiorizaram, cada um a seu modo e todos de forma convincente, os comportamentos e as personalidades de personagens que se afirmam permanentemente como pessoas. Alguns dos padrões de comportamento poderão até ser intemporais, mas os jovens intérpretes souberam fundir num todo coerente aquilo que é a marca de uma época com aquilo que faz parte da natureza humana.

N’ A Escola de Maridos, não estamos perante o cómico de situação, teoricamente mais acessível; estamos perante o cómico de carácter, muito mais exigente do ponto de vista psicológico e com outras intenções para além do puro entretenimento. Esta foi a primeira de várias peças de Molière cujo título contém a palavra “escola”. O próprio título indicia uma intenção pedagógica e crítica que ultrapassa a suposta superficialidade das comédias.

O amor é o assunto e o ingrediente fundamental de múltiplas comédias, tragédias e tragicomédias. Mas aqui, mais do que o amor, o que sobressai é a abordagem dos comportamentos humanos no meio familiar, na esfera do casamento e entre homens e mulheres em geral. Não é uma defesa das mulheres, até porque a deuteragonista (Isabel), pupila do protagonista (Sganarello) não tem ela própria um comportamento inteiramente honesto e exemplar. Mas Isabel é parcialmente absolvida da sua dissimulação e estratagemas. A vontade ditatorial que Sganarello lhe impõe surge como causa natural das suas mentiras e truques. Possuir e / ou ser possuído é uma ideia latente que percorre a peça. É o desejo de possuir, sem mútuo acordo e vontade, que conduz ao desenlace e lição final. A posse implica sempre a perda parcial ou total da liberdade de alguém. No universo dos afectos e das emoções, a noção de posse e liberdade ganha um novo significado. Amar é possuir e ser possuído livremente. Para Sganarello “amar” é sobretudo possuir, mas sem liberdade, sem reciprocidade. Essa é afinal a maldição do seu carácter que o torna cego perante os outros e o mundo em redor. Por isso mesmo, Sganarello é ludibriado e preterido pela sua pupila e pretensa futura mulher, Isabel; e Valério, o amante e amado de Isabel, é recompensado com o casamento.

Ariste, irmão de Sganarello, vinte anos mais velho e tutor de Leonor (irmã de Isabel), é o contraponto inesperado da inflexibilidade e obsessão egomaníaca do seu irmão. Ariste ama Leonor, anseia casar com ela, mas deixa-a viver livremente e permite-lhe que faça escolhas com a cabeça e o coração. Prefere o celibato a um casamento forçado e necessariamente infeliz. Seria de esperar que Sganarello, por ser muito mais novo, fosse mais tolerante e aberto a outros horizontes. Não o é e isso torna a sua personagem mais odiosa e algo ridícula, uma vez que a sua inflexibilidade e todos os muros que construiu em torno de Isabel acabaram por ser a sua própria prisão. Leonor acaba por declarar o seu amor por Ariste, que respeita a sua dignidade e vontade. Isabel, depois de usar a vaidade e cegueira do seu tutor a seu favor, casa com Valério. Leonor e Lisete (amigas) declaram no final que aqueles que não desejam acabar sós e infelizes como Sganarello devem ir à sua “escola de maridos”.

Não existem, porém, escolas que possam moldar verdadeiramente o carácter e as idiossincrasias da mente; apenas se podem educar e moldar os comportamentos, os modos de agir em determinados contextos. Esta “educação” não altera os quadros mentais nem a matriz do espírito; mais cedo ou mais tarde, a verdade de cada “eu” emerge e faz ruir essa “educação” superficial e transitória feita de comportamentos e modos de estar adquiridos e não espontâneos. Se a educação pudesse moldar verdadeiramente as mentes, das duas uma: ou o mundo era todo ele uma engrenagem mecânica com uma lisura monótona, vegetativa e previsível ou então seria uma utopia feita realidade, um mundo ideal sem falhas nem surpresas. Nenhuma das hipóteses é mais aliciante do que o próprio mundo, tal como é, com toda a sua diversidade, conflitos, imperfeições e inesperadas surpresas. Em suma, só a “escola” da vida, só o percurso das experiências pessoais pode realmente educar e reeducar o “eu”. Afinal, a vida é ela mesma uma sequência de aprendizagens e reaprendizagens, às vezes milimétricas e imperceptíveis, outras vezes verdadeiramente colossais e transformadoras.

Com A Escola de Maridos ou A Escola de Mulheres, Molière pode ter lançado algumas farpas bem afiadas contra a moral burguesa e certas convenções sociais, mas não mudou certamente o modo de ser e estar das gentes do seu tempo. Fez rir e reflectir e esse é já um pequeno-grande passo para as pequenas mudanças individuais. As grandes mudanças, as sociais e mentais, precisam mais do que uma plateia atenta, instruída e cúmplice. Mudem-se as consciências e mudar-se-ão as vontades e as formas de agir de toda uma sociedade. Tarefa hercúlea que muitos Molières já desempenharam, muitos outros virão… e serão sempre poucos.

O próprio Molière interpretou o papel de Sganarello, muito embora o seu comportamento enquanto pessoa se assemelhe mais ao de Ariste. O próprio Molière viria a casar em 1662 (um ano depois desta peça) com Armande, uma jovem vinte anos mais nova e, supostamente, filha de uma ex-amante. Com uma só “peça”, Molière dignifica o papel da comédia, conferindo-lhe uma dimensão pedagógica, absolve-se a si mesmo e condena a moral hipócrita da burguesia do seu tempo. Sganarello é avesso a toda a crítica que lhe fazem (sobretudo Ariste), mas critica tudo e todos aqueles que não seguem os seus padrões de comportamento.

A favor de Sganarello está apenas a fidelidade às suas convicções e aos seus princípios, certos ou errados, a favor ou contra a corrente. Esta característica do comportamento de Sganarello foi exemplarmente interpretada pelo jovem actor. Pelo seu rosto passou toda uma galeria de emoções que nos fazem dizer, ou pelo menos pensar cá para dentro: “Afinal, ele até é humano, tem um coração algures e sente as mesmas emoções que qualquer mortal… Só é pena que o egoísmo o torne tão cego e prepotente…” No final, a animosidade que gerou dá lugar a uma certa compaixão, sobretudo no momento em que se ajoelha em desespero e cai prostrado no chão. Afinal de contas, ele só acreditava nas coisas erradas, mas acreditava com toda a convicção.

Todos os jovens intérpretes representaram primorosamente os seus papéis e contracenaram com a coesão de uma equipa perfeita. Embora Sganarello esteja quase sempre presente, todos tiveram o seu momento de afirmação sob as luzes da ribalta. Uma grande vénia e ovação para todos eles. Bravo!

E o que dizer do cenário? Tinha a perfeição da simplicidade. Até a iluminação era perfeita. Aquela rede, que separava o espaço visível do espaço privado, para além de ser um elemento esteticamente belo, é a metáfora perfeita do desejo de posse e da prepotência (Isabel é mantida atrás da rede durante a maior parte do tempo). E é também um símbolo da hipocrisia da moral burguesa; o espaço privado é preservado, não em nome da dignidade e liberdade individual, mas como um território onde quem mais pode mais manda e abusa desse poder.

O grande responsável por mais um belíssimo momento de teatro na Escola D. Pedro V foi o professor / encenador Victor Sezinando. Todos os professores sabem que o trabalho de continuidade é fundamental, sobretudo quando há uma óptima relação entre o mestre e os discípulos, como é o caso. Seria quase um crime interromper este percurso tão profícuo para os alunos, para a escola em geral e para a própria comunidade. O bom senso aconselha, pois, que os contratos sejam renovados e o excelente trabalho desenvolvido possa ter continuidade. Se perguntassem aos alunos, sei bem qual seria a resposta. E eu estou inteiramente de acordo com eles.

Segue-se um vídeo, elaborado com algumas das muitas fotografias que tirei neste espectáculo. Desta vez, o vídeo é um pouco mais longo, porque houve um número maior de fotografias razoáveis e porque seria uma pena omitir alguns momentos. Infelizmente, a bateria acabou mesmo perto do final. Tive de usar uma câmara de bolso nos momentos finais… foi uma pena…

Segue-se também uma selecção de fotografias. Muitas outras ficarão disponíveis em dois álbuns do Picasa, sobretudo para os alunos e professores; eles são os únicos e verdadeiros protagonistas. A todos agradeço, mais uma vez, por me permitirem “deter com o olhar” alguns dos momentos do vosso excelente trabalho.

Nota: Os interessados em conhecer melhor a obra de Molière podem visitar, entre outros, o site MOLIÈRE.