quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA VIII

 RE-INVENÇÕES DE PEDRO & INÊS

     Mas regressemos a D.ª Inês e ao modo como terá sido morta e ressuscitada infinitas vezes pela lenda, pela literatura e pelo infindável reconto que vai acrescentando sempre mais um ponto…

     No opúsculo, Souvenirs de Coimbre (1843) o Marquês de Resende (citado por Sousa Viterbo), quando se refere à exumação do cadáver de D. Inês, não só diz que estava intacto, como acrescenta que até as tranças longas e louras estavam em bom estado e perfeitamente compostas. É também o Marquês de Resende que menciona outra “Ignez” ou “Agnes” da Baviera que terá sido morta (afogada no rio Danúbio), em 1435, por motivos idênticos aos de D.ª Inês. Sousa Viterbo, acrescenta que para a história ser igual só lhe faltou a coroação:

     «O auctor accrescentou preliminarmente um Avis aux lecteurs e nas duas paginas finaes uma nota histórica sobre uma dama allemã, chamada Ignez, por quem se apaixonou loucamente o duque Albrecht, filho unico de Capeto de Baviera. Ignez foi morta tyrannicamente a 12 de outubro de 1435, tendo sido mandada afogar no Danúbio. É uma tragédia idêntica á de D. Ignez de Castro; só lhe faltou a scena da coroação

     (In Artes e artistas em Portugal; contribuições para a historia das artes e industrias portuguezas, Francisco de Sousa Viterbo, Lisboa, 1892, págs. 20-26)

Agnes Bernauer, c. 1410 - 12 de Outubro de 1435), 
copy of a 16th-century work by an anonymous 18th century Augsburg painter.
A Inês da Baviera a quem se referem o Marquês de Resende e Sousa Viterbo.
Sobre ela voltarei a falar noutro post.

     Mesmo que D.ª Inês não tenha sido decapitada, a decapitação é um uso bárbaro milenar que persiste até hoje. Há evidências de que a decapitação já era usada há cerca de 9000 anos. Sobre este modo de execução, Paulo Mendes Pinto, director do curso de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, diz o seguinte:

     «Ao separar o órgão que se julgava do pensamento, o coração, do órgão de expressão, a boca, decreta-se ao defunto a incapacidade de proferir e realizar no Além ritos e afirmações que lhe dariam acesso à eternidade. O corpo deixa de ser uno e coeso. Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo é condição para que num dia de Juízo Final possa haver um novo tempo

     O que é indiscutível é que D. Pedro promoveu um sumptuoso cortejo (provavelmente em Abril de 1361 ou 1362) para acompanhar os restos mortais de D.ª Inês e a fez sepultar no Mosteiro de Alcobaça, coroada pela filigrana da pedra, rodeada pelas insígnias reais, e fê-lo com grande pompa e solenidade como se de facto fosse uma rainha. Ele próprio seria sepultado também aí seis anos mais tarde (1367), reforçando tudo o que a Lenda quis acrescentar à História.

Túmulo de Inês de Castro, no Mosteiro de Alcobaça.

Túmulo de D. Pedro I, no Mosteiro de Alcobaça.

     Ambos os túmulos são de extrema beleza, esculpidos com toda a perfeição em pedra calcária branca (“mármores brancos” dizem alguns). Consta que D. Pedro terá ido ao Porto encomendar estes túmulos por volta de 1360. No entanto, alguns autores consideram que os túmulos serão obra de artífices estrangeiros (franceses ou italianos). Manuel Vieira Natividade (Ignez de Castro e Pedro o Cru - Perante a iconographia dos seus túmulos, Lisboa, 1910, págs. 23 e 150, figuras 29 e 35), apresenta uma fotografia de uma “sigla” (assinatura ou marca) do autor no túmulo de D. Pedro. No início do século XX, este autor ainda não tinha conseguido decifrar aquela “sigla”, mas esperava vir a decifrá-la um dia e a identificar o rosto do próprio escultor entre as muitas figuras humanas que decoram ambos os túmulos: «E esperamos descobrir, um dia, entre as muitas figuras dos túmulos, o retrato do seu grande creador.» (idem, ibidem, pág. 107). Que eu saiba, ainda ninguém conseguiu decifrar a “sigla” do autor ou autores. Por minha parte, prefiro acreditar que foram de facto artífices portugueses, porque há outras obras escultóricas de semelhante beleza e perfeição saídas das mãos de artífices portugueses; e também porque não era fácil, naquele tempo, contratar no estrangeiro artífices que chegassem a Portugal a tempo de concluir os dois túmulos entre 1360 e 1361, quando muito até Abril de 1362 (entre a declaração de Cantanhede e a cerimónia de trasladação). 

     A fisionomia de D.ª Inês, gravada na pedra, será muito próxima do real, pois D. Pedro terá mandado fazer “um retrato ao natural”, a partir do qual os artífices terão esculpido a pedra. Quem fez esse retrato e como não se sabe. Se, de facto, esse retrato foi feito “ao natural” a partir do cadáver de D.ª Inês, então é pouco provável que o corpo tivesse sido decapitado. Sabe-se que era dotada de uma rara beleza, com cabelos louros muito longos e linhas elegantes. A beleza do pescoço e peito (“colo”) levou alguns a chamar-lhe “colo de garça”. D. Pedro seria de elevada estatura, teria cabelos ruivos ou louros escuros, olhos negros, “boca não pequena” e era extremamente gago desde a nascença. No domínio médico e psíquico, alguns encontram nele traços psicóticos, mudanças súbitas de humor, ataques incontroláveis de raiva, sadismo, insónias recorrentes e prováveis sinais de epilepsia.

     Diogo Barbosa Machado descreve-o assim, no Tomo III da Bibliotheca Lusitana, Lisboa, 1762, p. 539:

      «Teve estatura grande, aspecto gentil, testa dilatada, olhos fermosos, e pretos, cabelo da cabeça, e barba compridos de cor castanha que mais declinava a loura, que negra, boca larga, e engraçada, rosto corado, e tão balbuciente nas palavras como maduro nas respostas

D. Pedro I, o Justiceiro por Roque Gameiro.

      São-lhe atribuídos diversos textos poéticos. Tal atribuição é completamente negada por Carolina Michaëlis de Vasconcellos (cf. A Saudade Portuguesa, Porto, 1914). Barbosa Machado transcreve um excerto de um deles que teria surgido no Cancioneiro do P.e Pedro Ribeiro, 1577, conservado na biblioteca do Duque de Lafões (Bibliotheca Lusitana, Tomo III, p.540):


A dò hallarà holgança
Mis amores:
Adò mis graves temores
Segurança:
Pues mi suerte
De una en outra cumbre llevantado
legome a ver d’elado tu hermosura
Despues la frente para frente a frente
Vi en blando acidente amortecido:
Passome el sentido tan a dentro
Que hà llegado al centro dò amor vive:
Mas como nò recibe mi razon
Tu fiera condicion entre las manos
Desechos mis deseos
De un sobresaltado
El alma hás arrazada;
Los montes echos llamos
Dò toda mi esperança era fundada:
Si esto das por vida, que por muerte
Dar Señora podrà pecho tan fuerte.

     Afonso Sanches, filho bastardo e predilecto de D. Dinis, também teve inclinação para a poesia, tal como seu pai, o Rei Trovador. Nos Cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Vaticana surge uma cantiga de amigo que lhe é atribuída: “Dizia la fremozinha”

Poesia trovadoresca de Afonso Sanches.

Dizia la fremozinha:
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
Dizia la ben talhada:
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor coitada!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Como estou d’amor ferida!
— Ai Deus, val!
Não vem o que ben queria!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Como estou d’amor coitada!
— Ai Deus, val!
Não vem o que muit’amava!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!


Afonso Sanches
Cancioneiro da Biblioteca Nacional – N.º 784
Cancioneiro da Vaticana – N.º 368


segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA VII

NOITES DE INSÓNIA

     Nas suas profícuas Noites de Insónia (N.º 4, Abril de 1874), Camilo Castelo Branco escreveu um capítulo dedicado a Frei Bernardo de Brito, na sua qualidade de pretendente a poeta. Aparentemente, Frei Bernardo era mais inclinado a versejar com a língua bem afiada do que a produzir composições poéticas dignas de nota. Mas foi precisamente a veia satírica e sarcástica de Frei Bernardo que chamou a atenção do incansável Camilo; ele que raramente perdia a oportunidade de procurar e revelar a história por trás da lenda, das metáforas, dos mitos e da sátira. Neste capítulo (Inédito do Poeta Frei Bernardo de Brito, págs. 37-42), Camilo refere uma curiosa altercação poética com o autor (João Soares de Alarcão) da Infanta Coroada, obra já mencionada no post Lenda & História IV. A inimizade entre Frei Bernardo e João Soares de Alarcão prende-se indirectamente com a história de Pedro e Inês. Frei Bernardo era um venerador de ambos e João Soares de Alarcão seria… descendente de Pero Coelho, um dos supostos assassinos de Inês de Castro. Para além disso, João Soares Alarcão (1580-1618) inclinara-se para a União Ibérica e o domínio dos Filipes e o cisterciense empenhou-se em abrir caminho à Restauração e a D. João IV.  

     Tão ou mais interessante do que os poemas satíricos deste cisterciense são as informações que Camilo dá sobre João Soares de Alarcão. Sem elas. Grande parte do significado jocoso dos dois sonetos apresentados perder-se-ia, como acontece tantas vezes com a sátira. Por isso, o fragmento citado é longo mas deveras instrutivo: (foi mantida a grafia original, os sublinhados a vermelho são uma opção)

Camilo Castelo Branco, 1825-1890.

     «Escreveu o famoso cisterciense a Sylvia de Lizardo, e ninguém o trata de poeta quando o louva ou moteja. Chamam-lhe o chronista, o classico, o douto, o mentiroso, o massador, o milagreiro; poeta é que não; e houve até um frade da ordem d'elle, Fortunato de S. Boaventura, o author do Punhal dos Corcundas que positivamente desbalisou de poeta e de author da Sylvia de Lizardo o vernáculo author da Chronica de Cister.

     Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo, aquelle Balthazar de Brito de Andrade, que por amor do patriarcha se crismou em Bernardo.

     Teve elle o ruim sestro de desfazer na prosápia dos outros. Raro fidalgo lhe sahiu incólume do crisol em que por obrigação do officio de historiador, elle acendrava o fino ouro dos Trocozendos, dos Romarigues, dos Egas Bufas e outros condes das raças romana e goda.

     Nos descendentes do Espadeiro, que eram a geração dos Coelhos, beliscava elle, á conta do assassínio de Ignez de Castro. De si, dizia o frade, que os Britos em Portugal, derivavam dos Brutos de Roma.

     Um descendente de Egas Moniz, chamado João Soares de Alarcão, como era poeta, satyrisou a maledicência de fr. Bernardo de Brito com este soneto:


Aos profundos impérios d’el-rei Pluto
Irás, Bernardo, pelo que has escripto.
Pois dizes que de Bruto vem teu Brito,
Ficando tu só n'isso Brito e bruto.

Tu vens d’aquelles que a pé enxuto
Passaram, com Moysés, o mar do Egypto,
Ou vens do que com sangue do cabrito
Tantos guizados fez sem nenhum fructo.

Chamastes ao teu livro Monarchia,
Sendo Mona que cria monstros vários,
E tornastes de ferro a idade de ouro.

Não te metias em casos temerários;
Pasta nas hervas, bebe da agua fria,
Ou na velha escudela o caldo louro.

O monge de Cistér responde pelas mesmas rimas:

Maçarico dos charcos de el-rei Pluto,
Que taes marmanjarias has escripto.
Que ao douto frei Bernardo ou Bruto ou Brito
Picas com, bico infame, sujo e bruto;

Jamais será de Ignez o pranto enxuto.
Pois a fazes mais quartos que um cabrito,
Dizendo que nas mãos deu o espirito
De Coelho matador, sagaz e astuto.

Não vem da lusitana monarchia
Martinho mono, pai de cascos vários,
Sua mãi de Aguilar, águia, não de ouro.

Não te mettas em casos temerários:
Que louro não honra tua musa fria.
Mas de uma pouca de… o caldo louro.

Frei Bernardo de Brito, 1569-1617 por Roque Gameiro.
 

     As injurias do primeiro terceto entendem com os progenitores de João Soares de Alarcão. Martinho, se era mono, sobrava-lhe direito a ser da monarchia lusitana; mas também o outro se demasiára, vituperando de mona a Monarchia do frade. Tratavam-se de macacões um ao outro. Pai de cascos vários, invectiva o poeta de Alcobaça. Pela variedade da cascaria, entende-se que capitulava de cavalgadura o adversário: saldo bem ajustado com o outro que lhe chamara bruto.

     Entra no soneto a mãi do poeta, que devia ser da familia de Aguilares: e era com effeito, sem ser de raça desprimorosa. Chamava-se D. Cecília de Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe de Aguilar, mestre-sala de D. Sebastião, de D. Henrique, de D. Philippe, e tão amigo de Castella que chegou á mordomia-mór do rei intruso. Estes Aguilares e Aguiares foram sempre muito dos hespanhoes, e logo contarei um caso do mais notável.

     Martinho, mono, diz frei Bernardo. Que o pai do poeta era Martinho Soares de Alarcão e Mello, 6.º senhor da casa de Torres-Vedras, não ha duvida; que fosse mono, não o inculcam os genealogistas. Seu filho, o poeta, foi alcaide-mór de Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre esses, o jesuita Francisco Soares de Alarcão, letrado eminente e guerreiro, que morreu queimado em uma explosão de pólvora, quando guarnecia Juromenha, em tempo de D. João IV, capitaneando os noviços da companhia, cujo reitor era.

     Outro filho do poeta dos cascos vários, quando D. João IV o mandava governar Ceuta, passou-se para Philippe IV; e foi condemnado á morte *.

     Teve a mãi de João Soares um primo chamado Damião de Aguiar Ribeiro, que era corregedor em Lisboa, reinando o cardeal. Como sabem, andavam então divididas as opiniões entre D. António e Philippe II, acerca da successão do throno. Damião de Aguiar era dos mais façanhosos propugnadores por Castella. Succedeu então que um homem do serviço de D. António acutilasse na Padaria um vereador que fallava soltamente no senado contra o filho de Violante Gomes. Foi preso e summariamente condemnado á forca. Á hora em que o réo era levado, soube Damião de Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se ajuntava povo intencionado a tirar-lhe o padecente. Mandou O corregedor parar o préstito; fez lançar uma corda de uma janella, e alli mesmo ordenou que se enforcasse o homem, para evitar sensaborias. Tão grato lhe ficou por isto o rei de Castella que o nomeou desembargador do paço, e depois chanceller-mór do reino, comendador de S. Matheus de Soure e de S. Cosme de Gondomar, commendas que rendiam 3:500 cruzados.

     Foi, por tanto, riquíssimo, e tão bom homem que fundou o convento das Capuchinhas da Merciana. Instituiu morgadio, comprehendendo uma extensa quinta que ia desde as portas de Santo Antão pela travessa da Annunciada até á chamada calçada de Damião de Aguiar. Casou duas vezes; procreou-se, e fez-se representar entre nós pelos snrs. condes de Povolide, de Valladares, etc. Rebello da Silva não reza bem deste Damião na Historia de Portugal. Eu não rezo bem d'elle nem por elle; confesso, todavia, que era homem expedito n'isto de enforcar a gente na janella de qualquer cidadão, mediante seis varas de corda.»

Nota: «* D. João Soares morreu em 1618, com 33 annos de idade. Escreveu e imprimiu em língua castelhana: Archimusa de varias rimas y efetos, e La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro, etc. Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pêro Coelho, avoengo do poeta

Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir, Camilo Castelo Branco, 
N.º 4 - Abril, Livraria Internacional de Ernesto Chardron & Eugenio Chardron, Porto-Braga, 1874.

Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir, Camilo Castelo Branco, 
Livraria Internacional de Ernesto Chardron & Eugenio Chardron, Porto-Braga, 1874 (Volumes, 4, 5 e 8).

    A nota final de Camilo refere-se a D. João Soares de Alarcão (1580-1618), pai, não a D. João Soares de Alarcão e Melo (c. 1600-1669), filho do anterior. A inclinação para o partido de Castela vinha já do pai e avô destes, Martinho (ou Martim) Soares de Alarcão e Melo. Logo que Filipe II de Castela se apoderou da coroa portuguesa, Martinho coloca-se de imediato a seu lado. A sua prole manterá a mesma posição e será generosamente recompensada pelos sucessivos Filipes.

     No arquivo digital da Biblioteca Nacional encontrei a transcrição de dezenas de cartas de Filipe IV de Castela (III de Portugal) endereçadas a D. João Soares de Alarcão e Melo (filho homónimo do “poeta” citado por Camilo). Por essas cartas se vê a proximidade que este tinha da casa real castelhana e o reconhecimento de Filipe IV pela lealdade e serviços prestados a Castela. Recusou ser Governador-geral e Capitão-mor de Ceuta em nome de D. João IV mas logo em seguida começa a desempenhar estes mesmos cargos em nome do rei castelhano. Não esqueçamos que as guerras da Restauração se estendem de 1640 até 1668 e nem todos os territórios foram imediatamente recuperados pelos Portugueses.

     Como general de cavalaria ao serviço de Filipe IV, D. João Soares de Alarcão e Melo entrou em Portugal, pela região das Beiras, logo em 1642 para combater e matar os seus conterrâneos. Este lamentável feito militar valeu-lhe o título de Marquês de Turcifal (concelho de Torres Vedras), acumulando com o título de Conde de Torres Vedras, concedido por Filipe II a seu avô e herdado por seu pai. Até Novembro de 1652, Filipe IV dirige-se a D. João chamando-lhe “Conde de Torres Vedras amigo meu”; a partir de 24 de Dezembro de mesmo ano, começa a usar a saudação “Honrado Marquês amigo meu”. Estas cartas revelam também que muitos outros portugueses foram recompensados por Filipe IV (com tenças, rendas, títulos e hábitos da Ordem de Cristo), por recomendação ou pedido deste D. João, pela traição a Portugal. 

D. António, Prior do Crato (Lisboa, 20 de março de 1531 – Paris, 26 de agosto de 1595), 
cognominado o Prior do Crato, o Determinado, o Lutador ou o Independentista.

     Durante o curto reinado de D. António, Prior do Crato, após a morte de D. Sebastião em Alcácer Quibir, o título de Conde de Torres Vedras foi retirado a Martinho Soares de Alarcão, por se ter juntado à causa castelhana, e foi concedido a D. Manuel da Silva Coutinho (1541-1583), um indefectível apoiante de D. António que o acompanhou no exílio em França. No entanto, regressou e tentou enfrentar os invasores castelhanos nos Açores. D. Manuel da Silva Coutinho acabaria por ser preso e decapitado a 13 de Agosto de 1583, em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, por ordem do general castelhano D. Álvaro de Bazán, 1.º Marquês de Santa Cruz de Mudela, o principal responsável pela derrota da armada luso-francesa.

Batalha da Ilha Terceira - Desembarque das tropas espanholas na Baía das Mós 
(fresco de Niccolò Granello, Sala das Batalhas, Mosteiro de San Lorenzo de El Escorial). 
Esta batalha decorreu nos dias 26 e 27 de Julho de 1583.

Dom Álvaro de Bazán y Guzmán, 1º marquês de Santa Cruz de Mudela 
painted by Rafael Tegeo Díaz, 1828.

ALGUMAS DAS CARTAS ENVIADAS POR FILIPE IV (III de Portugal) A D. JOÃO SOARES DE ALARCÃO E MELO

     Os documentos da Biblioteca Nacional apresentam a transcrição em Português das cartas originais. Um dos documentos contém cartas enviadas de Saragoça e Madrid, datadas de 1646 a 1653 (vide Cartas de Filipe IV de Espanha para o Conde de Torres Vedras, D. João Soares de Alarcão, governador e capitão-general da cidade de Ceutahttps://purl.pt/30107). O outro contém cartas e outros documentos provenientes de Madrid, referentes ao mesmo espaço temporal (vide Documentos vários de Filipe IV de Espanha para o Conde de Torres Vedras, D. João Soares de Alarcão, capitão Geral da Cidade de Ceutahttps://purl.pt/27692). 


Primeira carta do primeiro documento, datada de Saragoça, 24 de Junho de 1646.

Carta enviada de Saragoça em 7 de Julho de 1646.

Última carta em que ainda é usado apenas o título de Conde de Torres Vedras, 
datada de 19 de Novembro de 1652.

Primeira carta em que é usado o título de Marquês de Turcifal, datada de 24 de Dezembro de 1652,
embora no sobrescrito se mantenha o título de Conde de Torres Vedras e se omita o de Marquês de Turcifal.

Carta enviada de Madrid em 7 de Outubro de 1653.

Última carta do primeiro documento, datada de 28 de Outubro de 1653.

Brasão de Armas da família Alarcão.


 

domingo, 10 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA VI

 A SUPREMACIA DE CISTER

          D. Afonso IV foi dos poucos reis (anteriores à Revolução Liberal, séc. XIX) que tiveram a coragem de retirar bens e / ou privilégios às ordens religiosas que rivalizavam em riqueza e poder com a nobreza e a própria realeza. Contrariamente, a Ordem de Cister foi especialmente favorecida por D. Pedro I (ele e D.ª Inês estão sepultados no maior mosteiro da ordem, em Alcobaça, promovido a panteão régio por D. Pedro), não sendo, por isso, de admirar a lealdade ao seu protector e a sanha contra quem lhes retirou privilégios. A proeminência desta ordem e dos seus dirigentes fica desde logo evidente no rol de epítetos que se juntam ao nome do Abade Geral da Ordem de Cister:

     «Dom Fr. Paulo de Britto D. Abbade do Real do Mofteyro de Santa Maria de Alcobaça da Ordem de Cisfter, Senhor Donatário, & Capitão-mor das Villas de Alcobaça, Aljubarrota, Alfeyzaraõ, Alvorninha, Pederneyra, Santa Catharina, Paredes, Côs, S. Martinho, Selir do Mato, Mayorga, Évora, Cella, Turquel, & mais Lugares, & Povoaçoens de feus termos dos Coutos do dito Mofteyro, do Confelho de Sua Mageftade, & feu Efmoler môr, Geral, & Reformador da Congregação de S. Bernardo neftes Reynos, & Senhorios de Portugal, & Algarves, &c.» Veja-se, por exemplo, a Chronica de Cister, de Frei Bernardo de Brito (1602), ele próprio um cisterciense, co-autor da monumental obra Monarquia Lusitana.

Chronica de Cister - onde se contam as cousas principaes desta ordem, 
& muytas antiguidades do reyno de Portugal - primeyra parte
Bernardo de Brito, 1569-1617, Officina de Pascoal da Sylva, Lisboa, 1720.

          No segundo volume da História das Ordens Monásticas em Portugal, de Manuel Bernardes Branco, 1888, são enumerados alguns dos privilégios do Abade Geral da Ordem de Cister (vide págs. 460-461 e 463-467). Os excertos que se seguem comprovam bem como a Ordem de Cister era ambiciosa e ciosa dos privilégios conquistados. Como em quase todas as citações, foi mantida a grafia original, os destaques a vermelho são uma opção minha:

     «Em quanto esmoler mór tem os do abbade d'Alcobaça logar em cortes do mesmo posto dos outros officiaes mores da casa real.

     O mesmo nas mais funcções publicas, como são embaixadores de Príncipes, levantamentos do novo Rei, bautismo das pessoas reaes, e em outras similhantes, nos quaes assiste como creado da casa; e para isso é avisado pela secretaria do estado do dia e hora certa.

     Tem mais aposentadoria para si, e seus creados nas villas e cidades do Reino, por onde passa, pelo regimento do aposentador mór.

     Por esmoler mór se costuma dar senhoria aos D. Abbades de Alcobaça, como aos mais creados da casa real.

     Tem d'elrei cincoenta e dois mil réis por anno; e o escrivão da Esmolaria de seu ordenado vinte mil réis.

     E como o dom abbade esmoler mór deve fazar a residência pessoal no seu mosteiro de Alcobaça de que é prelado, e em razão do outro seu officio de geral tem muitos negócios e visitas da Congregação, a que é preciso assistir; por todas estas razões houveram por bem os Reis, que elles abbades apresentassem um monge da sua casa, honesto, e a aprazimento dos Reis, o qual, em nome e ausência somente dos ditos abbades, servisse por elles de esmoler mór, e seguisse sempre a corte. Apresenta-os o dom abbade por escripto, e el Rei lhes manda passar sua carta de confirmação em forma

(…)

     «No tempo dos abbades prepetuos sempre serviram em seu nome monges professos d'Alcobaça, e ora isto é cousa tão assentada entre todos, que no tempo do primeiro administrador D. George da Costa, por muito que desejou descompô-lo el-Rei D. João II, não levou ao fim despojar a real Abbadia d'esta sua preheminencia

(…)

     «Quando el-rei manda fazer por sua conta alguma gente de guerra nas terras do Mosteiro, primeiro por sua carta especial o faz saber ao dom abbade, e lhe insinua a razão motiva, porque manda fazer a tal gente.

     Doutra sorte, e sem vir primeiro esta carta não consentem os monges que se levante gente, nem que entre nas suas terras a paga-la ministro algum da milícia, por mais apertadas ordens que traga

(…)

     «El Rei D. João IV mandou restituir ao monge d' Alcobaça todas as terras e haveres que taes monges asseveravam terem-lhes sido doados por El Rei D. Affonso Henriques, embora taes doações para a critica dos nossos dias, seja mais que duvidosa. Mas o que é certo que os frades foram restituídos à posse das terras chamadas vulgarmente os Coutos d'Alcobaça, e em terras taes tinham os abbades mero e mixto império, isto é, no civel, e crime, e todo aquelle Senhorio, que antes da doação era da Coroa

(…)

     «A voz que se levantava nas pendências era d’elles; porque se não appellidava nas terras dos Coutos a voz d'El rei; mas a voz do abbade; e não se dizia nos arroidos aqui del rei, como hoje uzamos; mas diziam: Aqui do Abbade ou do Mosteiro.

     Podiam tambem os D. abbades ir em hoste; isto é, que levantavam gente de guerra nas suas terras por authoridade próprias quando e como queriam, e pela mesma sua authoridade mandavam prender e soltar em todas as villas; punham os tabelliâes em seu nome e não d'elrei: e os removiam, quando queriam porque não eram confirmados pelo príncipe, mas sómente pelo abbade.

     Da mesma sorte os juizes e mais justiças também eram postos e confirmados pelos abbades.

     Passavam alvarás de privilégios a seus creados, ou a quem queriam, pelos quaes os faziam isentos dos encargos dos concelhos e das fintas e talhas: não davam appellação nem aggravos para el rei, senão nos casos de morte: mas dos juizes se appellava para o Ouvidor e d'este para o dom abbade; e a sentença que elle dava era a final e suprema.

     Não entravam nas villas dos Coutos ministro d'elrei, mas em logar dos corregedores punham os D. abbades seu ouvidor e quando lhes parecia era um monge, o qual e o mesmo abbade faziam audiência á porta do Mosteiro

(…)

     «Conservaram-se os D. abbades de Alcobaça n'esta sua grandeza inteiramente até o tempo d'el-rei D Affonso IV.

     E do tempo d'este principe em diante é que se foi alterando lentamente toda esta soberania e grandeza.

     Pois este monarcha (D. Afonso IV) tomou aos monges o senhorio real do mosteiro, ainda que, ao depois, o tornou a restituir seu filho el-rei D. Pedro I, com tudo na carta da restituição começou já a coartar a jurisdicção aos abbades, porque mandou que dessem appelação para el-rei; e que os corregedores da Estremadura entrassem nas villas dos coutos a fazer correição.

     «Hoje por força das palavras da nova doação e confirmação do rei D. João IV teem os D. abbades de Alcobaça o mesmo Senhorio Real que se contém na primeira doação d'el-rei D. Affonso Henriques; porém modificado na praxe pelas ordenações do reino; e muito mais pela razão próxima de serem os dois abbades triennaes».

Carta de confirmação pela qual o rei D. Pedro I revalidou a Alcobaça os coutos e jurisdições, e restituiu as que seu pai, 
D. Afonso IV, tinha tirado ao mosteiro, c. 8 de Setembro de 1358. ANTT.

Cluny Y El Cister - Las Ordenes Mendicantes, 1 a 20 - 
Historia Del Mundo, Pijoan Salvat, Tomo 6, 1970.
A Ordem de Cister resulta da reforma da Ordem de Cluny.
Embora a ordem tenha sido criada por dissidentes de Cluny (Roberto de Champagne e outros monges), foi Bernardo de Claraval o grande reformador e impulsionador da Ordem de Cister, tanto em França como noutros países da Europa. A Ordem de Cister continuará a ser influente nos domínios cultural, educacional e artístico até às Revoluções Liberais do início do século XIX que vão abolir todas as ordens religiosas. O primeiro mosteiro da Ordem de Cister em Portugal (S. Cristóvão de Lafões) foi fundado em 1138, ainda antes da independência. O Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, que se tornaria o centro da ordem, seria fundado em 1153. 


Mosteiros da Ordem de Cister em Portugal.

Em 1989, o Mosteiro de Alcobaça passou a integrar o Património Mundial da Humanidade da UNESCO. (Fot. via Expresso).
Para a Fraternidade Rosacruz de Portugal, o Mosteiro de Alcobaça é um "signo artístico-simbólico",
encontrando um significado esotérico em toda a estrutura do conjunto de edifícios e nos detalhes decorativos. Sobre a rosácea que se vê na fachada principal, um artigo (Viagem Filosófica) da página da Fraternidade Rosacruz de Portugal diz o seguinte: 
«rosácea que vemos na fachada tem simbolismo solar. Embora em contradição aparente com o gosto do estilo gótico, enquadra-se perfeitamente na simbólica do estilo adoptada pelos construtores da época. Na arquitectura gótica, a rosácea associa o simbolismo da rosa (que no rosacrucianismo evoca o Graal e a redenção), com o da roda. A roda lembra a necessidade da libertação das condições impostas pelo lugar em que se nasce e pelo estado espiritual que lhe está associado por via da lei de causa-e-efeito. É, por isso, uma referência à necessidade de evolução do espírito.»


Mosteiro de Alcobaça - Refeitório, fot. de Stuart Litoff.

Mosteiro de Alcobaça - Claustro do Silêncio, fot. de C. Rozay.

Mosteiro de Alcobaça - Interior, lavatório, fot. de Manuel Alende Maceira.

Mosteiro Alcobaça - Rosácea do túmulo de D. Pedro.
Note-se que quase todas as figuras humanas foram decapitadas.
A maior parte dos actos de vandalismo contra o mosteiro e os túmulos de Pedro e Inês foram perpetrados durante as Invasões Francesas e, posteriormente durante a Revolução Liberal.

Planta do Mosteiro de Alcobaça - Portugal Monumental, via Correio da Manhã.

Planta da Sala dos Túmulos no Mosteiro de Alcobaça - Portugal Monumental, via Correio da Manhã.
Embora no presente, os túmulos de D. Pedro e D.ª Inês se encontrem frente a frente, tal como a lenda pretende, a disposição inicial era lado a lado. Segundo a lenda, D. Pedro teria mandado colocar os túmulos frente a frente para que no dia do Juízo Final, quando ambos ressuscitassem dos mortos (admitindo que ambos eram seres imaculados) o primeiro ser que cada um visse fosse o outro que estava à sua frente.

Mosteiro de Alcobaça, entre finais do século XVIII e início do século XIX.

Em 2018, Ano Europeu do Património Cultural, realizou-se o II Congresso Internacional
sobre os Mosteiros Cistercienses.





sábado, 9 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA V

EXECUÇÃO E EXECUTORES

     A própria degolação de D.ª Inês é contestada por muitos. Embora a degolação ou decapitação fosse considerada a forma de execução mais honrosa desde a Antiguidade, reservada habitualmente aos indivíduos de alta estirpe, raramente foi aplicada (na Europa) a mulheres até à Revolução Francesa. Ana Bolena, mulher de Henrique VIII foi uma das poucas excepções; mas exigiu ser executada por um carrasco francês, que usava espada, em vez de um carrasco inglês, que usava machado. Ana Bolena terá declarado que queria morrer de pé e não de joelhos.

     Em Portugal, essa não era uma forma de execução aplicada às mulheres no tempo de D. Afonso IV. O enforcamento era a pena mais comum. Aliás, a pena de morte aplicada a mulheres era raríssima, excepto nos casos de alta-traição e lesa-majestade, como seria de facto o caso de D.ª Inês, se considerarmos que era irmã de dois conspiradores. A traição dos seus irmãos era notória, tanto em relação ao reino de Portugal como ao de Castela, com a conivência do próprio D. Pedro I de Portugal. A decapitação era sim aplicada aos homens mas apenas reservada a “crimes políticos”, traição e conspiração. Segundo Paulo Jorge de Sousa Pinto, o enforcamento era a forma de execução mais comum prescrita pelas Ordenações Afonsinas (A pena de morte em Portugal e no mundo: debate na História, combate atual, 2017):

     «As Ordenações Afonsinas listam o conjunto de crimes puníveis com a morte por enforcamento: traição, moeda falsa, homicídio, adultério, sodomia, falsificação, feitiçaria ou roubo são alguns dos crimes sujeitos ao veredicto «morra porém» ou «morra por isso». Todavia, a sua aplicação na prática parece ter sido reduzida, substituída na esmagadora maioria dos casos por degredo, penas pecuniárias ou açoites públicos

The Death of Inês de Castro - O Assassínio de Inês de Castro by Karl Briullov, 1834.

     Também não é crível que D. Inês tenha sido enforcada e não foi certamente esquartejada. É, na verdade, mais provável, que D.ª Inês tenha sido assassinada com um punhal ou pequena espada. Apesar de todos estes argumentos, no túmulo de D.ª Inês está gravada uma cena que representa a degolação de uma mulher e outra em que um carrasco abre o peito de um homem e lhe arranca o coração. Mas o que diz a pedra esculpida será História ou mera alegoria que alimentou a lenda? O que se constata é que uma parte das gravuras que poderão representar D. Pedro e D.ª Inês foram “decapitadas” actos de vandalismo, cometidos sobretudo no início do século XIX, aquando das Invasões Francesas.  

     Ainda não consegui averiguar se D. Pedro aplicou este modo de execução (decapitação) a mulheres, mas aplicou outros igualmente cruéis, como queimar mulheres vivas (cf. Crónica de D. Pedro I, Cap. IX, Fernão Lopes).

     As fontes literárias contradizem a ideia de decapitação, falando quase sempre da espada ou do punhal que trespassou o peito de D.ª Inês. Entre muitos outros textos, vejam-se, por exemplo, os sonetos dedicados À Morte de D. Ignez de Castro pelo poeta arcádico, António Ribeiro dos Santos (1745-1818, conhecido pelo pseudónimo arcádico Elpino Duriense; cf. Poesias de Elpino Duriense, Lisboa, 1812, págs. 290-298). Aí, o autor fala do “bárbaro punhal”, de “duros punhais” que “seus peitos trespassaram”, do “duro ferro” que “o peito lhe passava”, do “ferro homicida” que “seus peitos trespassou”.


Poesias de Elpino Duriense, pseudónimo arcádico de António Ribeiro dos Santos, 1745-1818, Na Impressão Regia, Lisboa, 1812. Três tomos. No tomo II, págs. 290-298, vêm oito sonetos dedicados à morte de D. Inês de Castro. Logo a seguir (p. 299) vem um soneto dedicado a D. João de Castro, o 4.º Vice-rei da Índia.

   O que era comum naquele tempo era o uso da espada, do punhal e dos venenos, que tiravam a vida sem deixar grandes marcas físicas; eram usados sobretudo quando o alvo era um nobre ou membro da realeza. Há suspeitas de que os irmãos Castro (irmãos de D.ª Inês) terão tentado envenenar o infante D. Fernando, filho legítimo de D. Pedro e D.ª Constança, para que o herdeiro do trono português pudesse ser um dos filhos bastardos de D.ª Inês (D. João ou D. Dinis). Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, e seu predilecto, terá tentado fazer o mesmo a D. Afonso IV; primeiro para o impedir de ascender ao trono e, depois, para o eliminar e usurpar o trono. Mais tarde, D. Leonor de Aragão, mulher do falecido rei D. Duarte, e bisneta de D.ª Inês de Castro, terá morrido por envenenamento por se temer que pusesse em perigo a independência nacional após a morte do rei. Nas notas à bibliografia refiro outros envenenamentos.

D. Leonor, Aragoneza, mulher de D. Duarte por Roque Gameiro.

     Edme-Théodore Bourg (1785-1852), mais conhecido pelo pseudónimo Saint-Edme, no tomo III do seu Dictionnaire de la pénalité dans toutes les parties du monde connu, (1824-1828) dedica várias páginas a este crime (envenamento), enumera dezenas de envenenamentos com motivações políticas, começando desde logo por afirmar o que referi acima:

     «EMPOISONNEMENT. Ce crime, le plus difficile à constater, et p'ar cela même le plus dangereux, a toujours été puni du dernier supplice. (…) Le poison fut l'arme de la politique; (…). (…)  En 1461, le comte de Charolais faillit à être empoisonné par un de ses premiers domestiques; ce scélérat, qui s'appelait Constain, avait fait apporter d'Italie, par un nommé Jean d'Ivy, un poison très-énergique. Les Italiens jouissaient alors de l'affreuse réputation d'être les plus habiles empoisonneurs de l'Europe. (…) En France, sous l'ancienne législation, l'empoisonnement, qu'on appelait le crime de poison, était puni de mort, conformément aux ordonnances du royaume, et notamment à l'édit du mois de juillet 1682; mais cette loi n'a point déterminé le genre de supplice auquel devaient être condamnés les empoisonneurs. Le législateur semblait avoir voulu laisser à l'arbitrage des juges la faculté d'en augmenter ou d'en diminuer la rigueur suivant les circonstances. (…) Un empoisonnement commis, il y a peu d'années, par un homme versé dans l'art de guérir, a révélé à la multitude une substance vénéneuse qui peut donner la mort sans laisser de traces visibles de ses effets meurtriers: c'est l'acétate de morphine. A l'époque de cet attentat longuement inédité et lentement exécuté par le médecin Castaing, on craignit avec raison que la publicité donnée à cette affaire et la révélation de la substance employée, ne fissent, éclore de nouveaux crimes. C'était un avertissement donné à l’autorité de redoubler de surveillance et d’activité envers ceux qui tentent de se soustraire aux mesures de police prises pour prévenir les dangers du commerce libre des poisons ou substances vénéneuses(Tomo III, págs. 465-475).

     Apesar de ser um crime e uma forma de tirar a vida muito comum desde a Antiguidade e entre as civilizações mais remotas de todos cantos do mundo, não foi certamente um veneno que matou D.ª Inês.

     De entre todos os que registaram, narraram ou recriaram a morte de D.ª Inês, há no entanto duas fontes coevas que apontam assertivamente para a degolação ou decapitação. Ambos os autores são clérigos, um do Mosteiro de Alcobaça, da Ordem de Cister, e outro do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, da Ordem de Santo Agostinho, duas das ordens mais antigas que se sediaram em Portugal ainda no reinado de D. Afonso Henriques. As ordens religiosas, especialmente a de Cister, sempre foram largamente beneficiadas pelos monarcas portugueses até ao reinado de D. Afonso IV que lhes retirou parte dos coutos e privilégios, motivo suficiente para despertar a animosidade de algumas das ordens contra este monarca, especialmente da Ordem de Cister.

     Ambos os cronistas atribuem a D. Afonso IV a ordem da execução. Ambos os relatos estão em latim e apontam como ano da morte de D.ª Inês o de 1393, por se regerem ainda pelo calendário da Era Hispânica ou Era de César. A Era Hispânica só foi abolida, em Portugal, por D. João I, em Agosto de 1422, embora já tivesse sido abolida pela Igreja em 1180 e houvesse desde o século VI monges que usavam a datação da Era Crstã (Dionísio, o Exíguo terá sido o primeiro). A Era Cristã, Era de Cristo ou Era Comum começa 38 anos antes da Era Hispânica, isto é, o ano de 1393 corresponde ao de 1355. Portanto, tanto o ano como o dia e mês (7 de Janeiro) registados pelos cronistas de Alcobaça e Santa Cruz estão correctos. A única diferença está no vocábulo usado para designar o modo como D.ª Inês foi morta: o clérigo de Santa Cruz usa a palavra “decolata” (decapitada ou degolada) e o de Alcobaça usa o termo “occidit” (matar de uma forma genérica). Apesar destes relatos, a maioria dos investigadores e escritores não consideram credível a decapitação. Maria José Azevedo Santos, apesar de seguir a tese da decapitação, reconhece que muitos discordam:

     «Contudo, é forçoso dizer que a decapitação, bárbaro modo de assassinar, tão frequente na Idade Média, tem sido rejeitado por muitos poetas, dramaturgos e investigadores inesianos que não aceitam a amputação de um corpo imaginado, e celebrado ao longo dos séculos, pelo encanto, elegância e formosura que exibia.» (Vide D. Inês de Castro – Colo de Garça, Academia Portuguesa da História, 2011, pág. 55).

D. Ignez de Castro por Roque Gameiro.