terça-feira, 7 de maio de 2019

NAS ENTRELINHAS DA HISTÓRIA IV


HERÓIS, ANTI-HERÓIS E QUIMERAS - VI
(Continuação do post anterior. Manteve-se quase sempre a grafia dos documentos originais.)

MESMO NA GUERRA… CATÓLICOS E PROTESTANTES SEPARADOS

Nota 19: Por todo o país morreram e foram sepultados militares ingleses. Em honra de alguns foram erguidas lápides que os lembram. Embora combatendo lado a lado contra um inimigo comum, separaram-se na morte… não sendo sepultados nos cemitérios.
     «Em 1811, logo cm seguida á passagem do exercito francez por Gouveia, foi o collegio dos jesuitas estabelecido n'aquella villa, transformado em hospital de sangue.
     N'esse hospital falleceu mais tarde um official inglez, que por ser protestante foi sepultado na cerca, sendo-lhe erguido n'esse local, pelos seus camaradas, um singelo monumento á sua memoria, que ainda hoje alli se conserva, estando porém já pouco legível a respectiva inscripção, devido á acção da neve e do gelo, que na estação invernosa são triviaes n'aquella villa.»
     Alguns eram sim sepultados nas fortalezas militares, como aconteceu com John Beresford, parente de William Carr Beresford, que morreu e foi sepultado em Almeida, no baluarte de Sante Bárbara. Talvez esta honra se tivesse devido unicamente à intercedência de W. C. Beresford, marquês de Campo Maior:
     «No anno de 1812, durante a guerra peninsular, foi gravemente ferido por effeito de uma mina que explodiu na brecha de Ciudad Rodrigo, em Hespanha, um parente do general Beresford, que foi transportado para o hospital de sangue da praça de Almeida, onde falleceu, sendo sepultado no baluarte de Santa Barbara, no local onde se encontra uma lapide de lm,50 de altura e 0m,38 de largura, tendo gravada a seguinte inscripção em inglez e portuguez:
     John Beresford, lieutenant in the 88th Reg.° received a mortal Wound by the explosion of a mine in the breach of Ciudad Rodrigo, the 19th January 1812.
     O tenente João Beresford do Regim.to B.co n.° 88, pelo effeito d'uma mina que voou na brecha de Ciudad Rodrigo e que elle, entre os primeiros, montou, e na noite de 19 de Janeiro de 1812, morreu na edade de 21 annos.
     S. Ex.a o sr. marquez de Campo Maior, d’este modo mandou conmemorar a morte d'um parente estimado.»
Vide Guerra peninsular - notas, espisodios e extractos curiosos, Francisco Augusto Martins de Carvalho, Coimbra, 1910, págs. 64-65.

Battle of Fuentes de Oñoro 3rd to 5th May 1811 in the Peninsular War.

UM PEQUENO ROL

Nota 20: Assim à distância, são divertidas aquelas proclamações de Junot em que apregoa que nem um cêntimo seria tirado aos Portugueses e se algum dos seus soldados (não menciona sequer os oficiais) roubasse o que quer que fosse seria severamente castigado ou até executado. Pois bem, do mais modesto soldado ao mais eminente general, foram quase todos os que destruíram e saquearam. Loison, o Maneta, numa das suas retiradas apressadas, deixou para trás uma pequena amostra do seu saque pessoal:

     «Loison chegou a Lamego na tarde do dia 21 do referido mez de Junho de 1808, aquartellando-se com o seu estado maior no Paço Episcopal. Foi porém forçado a marchar para Vizeu logo na manhã do dia immediato, e com tal precipitação o fez que deixou no quarto onde dormia dois pesados caixões todos chapeados de ferro.
     Depois da Convenção de Cintra e da expulsão dos francezes, foram abertos os referidos caixões, por ordem dos governadores do reino, em Fevereiro de 1809, encontrando-se as seguintes peças de prata, segundo constava do inventario que então se lavrou, e que ainda ha poucos annos conservava no seu precioso muzeu, o fallecido cónego da Sé de Lamego, rev.do Teixeira Fafe, muito illustrado amador de antiguidades.

     «13 castiçaes,— 2 serpentinas grandes,—2 escrivaninhas, — 3 bacias de mãos e 2 jarros,— 6 dúzias de garfos, facas e colheres,— 4 clarins,—2 grandes cruzes procissionaes,— 1 imagem de Christo,— 1 rica banqueta de altar com 51 peças, — 6 grandes salvas, —7 púcaros e 13 bacias, sendo 6 de cadeira grandes, e 7 de cabeceira mais pequenas, tudo de prata com o peso 1 total de 462 marcos e 6 onças,—além de uma caixa forrada de marroquim, contendo um bello apparelho de chá com 13 peças de louça da índia.»

     O próprio Junot não ficou atrás de Loison e outros:
     «Junot, também commetteu grandes roubos no nosso paiz. Na igreja de Miragaia da cidade do Porto, roubou diversas alfaias, pelo que no respectivo inventario da prata roubada, existente no archivo do governo civil do Porto, se encontra a seguinte curiosa nota: ─ Roubada pelo Chino?!
     Como é sabido, o povo designava o general Junot pelos nomes de Jinó ou Chino, como se vê das seguintes trovas populares:

O Jinó foi ao inferno
Buscar duas testemunhas:
Achou as portas fechadas,
Poz-se a esgravatar co'as unhas.

O Jinó mail-o Maneta
Diz que Portugal que é seu;
E' um demo para elles,
E mais para quem lh'o deu.

Vide Guerra peninsular - notas, espisodios e extractos curiosos, Francisco Augusto Martins de Carvalho, Coimbra, 1910, págs. 72-73.

ANTT - desenhos feitos pelo capitão Manuel Isidro da Paz, 1812.


AS ESTRATÉGIAS NÃO MILITARES QUE AJUDARAM BERESFORD A GANHAR

Nota 21: Em 1811, durante a 3.ª invasão, comandada por Massena.

Perto de Manteigas, nas faldas da Serra da Estrela:
     «Quando os habitantes da villa souberam que os francezes se aproximavam para a saquear, resolveram defendel-a a todo o transe.
     Como valentes Erminios de sangue puro e homens resolutos, armaram-se o melhor que' poderam com todas as espingardas que existiam na villa, machados e alavancas de ferro, e foram esperar os francezes a 3 kilometros de Manteigas, no sitio denominado Figueira Brava, ponto bem escolhido, por ser muito defensável.
     E' um morro dos maiores, mais Íngremes e mais alcantilados da grande serra, passando a custo no sopé d'elle a estrada, e seguindo-se a juzante o rio Zêzere com margens abruptas. Para melhor estorvarem a passagem dos francezes, pozeram na estrada uma grande turbina d'um pisão próximo, juntaram-lhe grandes troncos d'arvore, e com alavancas deslocaram do grande morro penedos enormes com que entulharam a estrada, completando assim a barricada.
     Subiram depois todos para o grande morro sobranceiro á estrada, dispostos a defender a barricada, para o que foram escavando por meio de alavancas, e pondo a geito grande numero de penedos, para os despenharem sobre a estrada, logo que se aproximassem os francezes.
     Chegados estes e vendo a forte barricada, o morro sobranceiro cheio de gente armada, clamando gritando e fazendo fogo, e os enormes penedos rolando sobre a estrada, desanimaram por não poderem contornar o morro, nem terem outro caminho para Manteigas, além do que seguiam.
     Tiveram portanto de bater em retirada, e nem chegaram a ver Manteigas, por estar a villa á distancia de 3 kilometros, occulta pelo grande morro, e escondida n'uma cova, junto do Zêzere.»

Em Coimbra:
     «Em Coimbra achava-se o general inglez Trant, com uma divisão de perto de 6:000 homens, a maior parte de milícias, e em conformidade das instrucções que havia recebido do marechal Wellington, á aproximação dos francezes, retira-se de Coimbra sobre o Vouga em a noite de 12 para 13.
     Em Coimbra não fica senão uma pequena força de 50 a 60 milicianos do regimento d'esta cidade; e achava-se cortado o segundo arco da ponte, da lado da cidade, e ahi assestada n'uma trincheira uma peça de artilharia. O rio ia então caudaloso, e era invadiavel.
     No dia 13 vem um parlamentado á ponte, e exige a passagem franca ao exercito francez.
     Apresenta-se a responder-lhe o aspirante de artilharia 4, José Augusto Correia Leal, (que mais tarde foi deputado em varias legislaturas). Recebe o officio que lhe passa o parlamentario atravez da cortadura da ponte; e entretanto para enganar os inimigos e fazer-lhes acreditar que em Coimbra estava grande força militar, ordenou aos poucos milicianos que aqui haviam ficado, que passassem constantemente pelo Cães e Couraça de Lisboa; e mandou collocar, espetadas em estacas, em sitio onde podessem ser vistas pelos francezes, grande numero de barretinas, trazidas do hospital.
     Decorridas duas horas, volta o parlamentario francez pela resposta do officio; e outra vez lhe vae fallar o aspirante Correia Leal, dizendo-lhe que o officio havia sido mandado ao governador, que se achava fora de Coimbra; e ao mesmo tempo lhe diz que esta cidade está preparada para uma rigorosa defeza.
     Estas difficuldades na passagem por Coimbra, quando o exercito anglo-luso vinha atacando a retaguarda dos inimigos, decerto foram pelo general Montebrun participadas a Massena; deixou por isso o exercito francez de vir a Coimbra, e tendo no mesmo dia 13 chegado a Condeixa, seguiu em a noite immediata a marcha indo ficar no Casal Novo.
     As tropas que tinham vindo a Santa Clara e ao Rocio, desenganadas da impossibilidade de entrarem em Coimbra, retiraram também na tarde do mesmo dia 13, seguindo do Rocio pela estrada da Copeira, em direcção a Miranda do Corvo.»
Vide Guerra peninsular - notas, espisodios e extractos curiosos, Francisco Augusto Martins de Carvalho, Coimbra, 1910, págs. 78-80.

ANTT - desenhos feitos pelo capitão Manuel Isidro da Paz, 1812.


DISCURSOS ENSAIADOS E FALSEADOS AO GOSTO DE NAPOLEÃO

Nota 22: Um oficial francês que devia levar correspondência para Napoleão foi preso na Bobadela. Consigo levava muitas missivas e documentos interessantes. Segue-se uma carta de Massena e a reprodução das perguntas e respostas entre este oficial e Napoleão, que ele deveria decorar para o caso de “perder” a correspondência mas conseguir chegar à presença do Imperador.

Carta de Massena referindo-se ao tal mensageiro:
     «Carta de Massena ao governador de Salamanca, apprehendida ao official preso em Bobadella, encarregado de levar correspondência official e particular a Paris.

     Coimbra, 4 de Outubro de 1810. — Senhor governador. — O official que vos ha de entregar a presente, é por mim enviado a sua magestade imperial, levando um officio importante. Tereis a bondade de fornecer-lhe o dinheiro necessário para a sua jornada e para vestir-se. A sua missão é da maior importância, o que vos impõe o dever de fornecer-lhe tudo o que elle possa precisar para preenchel-a.
     O marechal príncipe de Essling, commandante em chefe do exercito de Portugal. — Massena.
     Ao senhor general Royer, governador de Salamanca.»

Perguntas e respostas que o mensageiro deveria decorar:
     «Serie de perguntas e respostas para serem decoradas pelo oficial que foi preso em Bobadella, afim de serem exactamente repetidas ao imperador, no caso de, por qualquer motivo, se ver obrigado a inutilizar a correspondência official.
 l.ª Pergunta.— Onde deixastes o exercito?
Resposta. ─ Marchando para Lisboa. A vanguarda estava na Redinha. O general em chefe partiu no mesmo dia que eu.
2.ª Pergunta. — Onde se deixaram os feridos e os doentes?
Resposta. — Em Coimbra com uma guarda de policia e com os viveres necessários, tendo feito aos poucos moradores que alli se achavam e aos que tornaram a entrar, responsáveis da sorte dos francezes que alli se deixavam.
3.ª Pergunta. — Qual é o espirito do exercito?
Resposta.— Bom, sobretudo depois da manobra do general em chefe, que rodeou a posição do inimigo.
4.ª Pergunta. — Qual é o espirito dos portuguezes?
Resposta. — Cheio de fanatismo; os principaes são todos inglezes; o povo meudo está aterrado pelo inimigo.
5.ª Pergunta. — Credes que se chegará a Lisboa?
Resposta.— Tudo o faz esperar, estando os inglezes em plena retirada e os francezes cheios de confiança no general em chefe.
6.ª Pergunta. ─ Acham-se recursos no paiz?
Resposta. ─ Nenhuns a não ser os legumes que ainda estão nos campos. Os soldados não têm padecido até ao presente.
7.ª Pergunta. ─ Os commandantes dos corpos estão de accordo com o general em chefe?
Resposta. — Não sei, mas o caracter do general em chefe impõe respeito aos commandantes dos corpos do exercito.
8.ª Pergunta. — O exercito tem muitas munições?
Resposta.— Sei que tem dois milhões de cartuchos nas suas reservas, sem contar os que têm nas patronas.
9.ª Pergunta.— Tivestes muitos feridos na batalha do Bussaco?
Resposta. — Ouço dizer que tinha havido de 2:500 a 3:000; mas que por sua própria confissão perderam os inglezes 4:000. O exercito teria precisão de reforço para manter-se em Lisboa, e não tem um real em caixa.
10.ª Pergunta. — A quanto julgaes que montam os exércitos inglez e portuguez?
Resposta. — De 60 a 70 mil homens, 25 a 30 mil dos quaes são inglezes, sem contar milícias e ordenanças.
ll.ª Pergunta. — Quaes são os projectos dos inglezes?
Resposta. ─ Defender Lisboa e suas visinhanças, e ahi fazer ir pelos ares os edifícios públicos. Os inglezes inspiram grande terror no paiz, forçando todos os habitantes a abandonar as suas casas e a queimar, sob pena de morte todos os seus recursos. Portugal está um deserto.
12.ª e ultima pergunta.— Temos muitos doentes no exercito?
Resposta. — Não muitos. Os soldados passam muito bem, e não desejam vivamente senão arrostar-se com os inglezes.»

Vide Guerra peninsular - notas, espisodios e extractos curiosos, Francisco Augusto Martins de Carvalho, Coimbra, 1910, págs. 94-96.

Grand kitchen of Europe - british cookery or 'Out of the frying into the fire' - London, N. Jones, 1811.



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