quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

LENDA & HISTÓRIA III

 OS CASTRO E OS PACHECO

 

     Alguns defendem que a trágica morte de D.ª Inês se deveu apenas à rivalidade e aos conflitos entre duas das mais poderosas e influentes famílias aristocráticas portuguesas: os Pacheco (família genuinamente portuguesa) e os Castro (mistura de sangue castelhano e português). É admissível que este conflito tenha pesado na decisão de eliminar D.ª Inês, mas não é crível que alguém como D. Afonso IV, um rei sensato, pacificador, diplomata e determinado, pelo menos depois de ascender ao trono, tenha sido manipulado a tal ponto.

     Convém, no entanto notar que os Pacheco sempre tinham sido leais servidores da coroa portuguesa e opositores à subserviência de Portugal em relação a Castela e Leão; e os Castro tendiam a inclinar-se para o partido e situação que mais os poderia favorecer. Os Pacheco nunca tentaram arrebatar para si a própria coroa de Portugal ou de Castela; os Castro tentaram fazê-lo diversas vezes e de diversos modos, recorrendo à conspiração, à traição e à manipulação, como aconteceu com o próprio D. Pedro I de Portugal, a quem prometeram a coroa de Castela se os auxiliasse na luta contra o rei castelhano. O próprio D. Pedro manifestou abertamente esta pretensão e causou conflitos desnecessários com Castela. Foi o seu pai, D. Afonso IV, que ergueu a voz contra tal insensatez e o obrigou a desistir de entrar em guerra com Castela para tomar o trono. Não terá desistido por completo porque continuou a cooperar e a servir os intuitos e interesses dos Castro. Mas também não traiu por completo a memória de seu pai, D. Afonso IV, porque ainda antes de morrer jurou herdeiro o seu filho legítimo, D. Fernando.

      «O Infante Pedro de Portugal teria recebido em 1353 a oferta do nobre Álvaro Peres de Castro de assumir o trono castelhano após uma pretensa deposição de Pedro, o Cruel, coordenada por uma coalisão constituída pelos nobres João Afonso de Albuquerque, Fernando Peres de Castro, seu meio-irmão, Álvaro Peres de Castro, apoiados ainda pelos chamados Infantes de Aragão, Fernando e Juan, condutores de uma revolta contra o rei de Castela (D. Pedro I de Castela, o Cruel). Tratava-se, portanto, de uma proposta de colaboração e envolvimento português numa guerra civil em Castela que prometia a princípio, a união dos dois reinos sob a égide portuguesa; uma proposta que, no entanto, o rei português, Afonso IV impede seu filho de aceitar. Em primeiro lugar pela fragilidade das condições de implementação desta promessa para, além disso, outras razões políticas justificariam plenamente as reservas do experiente rei Afonso

 (In Usurpações, casamentos régios, exílios e confiscos, as agruras de um nobre português no século XIV, Fátima Fernandes, Revista de História Helikon, Curitiba, V.2, n.º 2, p. 02-15, 2º semestre, 2014)

      Quem era João Afonso de Albuquerque? Era filho de Afonso Sanches, Senhor de Albuquerque, filho bastardo e predilecto de D. Dinis, pai de Afonso IV e avô de D. Pedro I. Foi mordomo-mor e chanceler-mor de D. Pedro I de Portugal e um elo forte com os Castro. Igualmente interessante é o facto de ter sido aio de D.ª Maria de Portugal (irmã de D. Pedro) e ter sido padrinho de D. Pedro de Castela (filho de D.ª Maria de Portugal) no casamento com D.ª Branca de Bourbon. Foi também um dos membros da corte castelhana que integraram o séquito de D.ª Constança Manuel quando (depois de libertada do Castelo de Toro onde D. Afonso XI a enclausurara) veio para Portugal para casar com D. Pedro I. Nesse mesmo séquito vinha também D.ª Inês de Castro.

D. Afonso Sanches, c. 1289-1329, filho bastardo e predilecto de D. Dinis, senhor de Albuquerque.
(in The Portuguese Genealogy - Genealogia dos Reis de Portugal).

     Foi no Castelo de Albuquerque que D.ª Inês foi criada pela mulher de Afonso Sanches, D.ª Teresa Martins de Meneses, e foi neste castelo que foi exilada por D. Afonso IV, por ser notória e ofensiva a ligação entre D. Pedro e a a aia de D.ª Constança. João Afonso de Albuquerque, para além de primo, era uma espécie de irmão de Inês de Castro, foi criado com ela desde criança sempre com a proximidade de Álvaro Pires de Castro, irmão de D.ª Inês. Tanto Inês como Álvaro eram filhos bastardos de D. Pedro Fernandes de Castro. Segundo Lopez de Ayala (Crónica Geral de Espanha), João Afonso Albuquerque terá sido envenenado por ordem de D. Pedro I de Castela.

D. Pedro I, o Justiceiro ou o Cru.

     Logo no reinado seguinte, D. Fernando, filho de D. Pedro I, cria o título de “Condestável”, em 1382, para D. Álvaro Pires de Castro (1310-1384), irmão de Inês de Castro. O mesmo monarca já tinha criado dois outros títulos, em 1371, para este mesmo Álvaro Pires de Castro: foi o 1.º Conde de Viana da Foz do Lima e o 1.º Conde de Arraiolos.

     A irmã de D.ª Inês de Castro, D.ª Joana de Castro, que seria tão ou mais bela do que D.ª Inês, consegue de facto ascender à realeza, mas por pouco tempo; consta que foi rainha apenas por uma noite. D. Pedro I de Castela, sobrinho de D. Pedro I de Portugal, apaixona-se subitamente por D. Joana de Castro, casa com ela, mas logo a repudia e mata-a. Consta que o rei a terá repudiado logo após a primeira noite em comum e terá sido morta pouco depois. Algumas fontes sustentam não ser completamente verdade; D.ª Joana de Castro terá vivido ainda cerca de um ano (embora repudiada como rainha) e terá tido um filho de D. Pedro I de Castela, em 1354. Assim sendo, as irmãs D.ª Joana e D.ª Inês terão sido assassinadas quase na mesma data. Esta união entre D.ª Joana de Castro e D. Pedro de Castela também terá sido urdida e propiciada pelos irmãos Castro. Eles sabiam bem quão belas e sedutoras eram as suas irmãs, elas podiam ser um meio tão eficaz para conquistar o poder como as conspirações ou o gume da espada. Só não esperariam que ambas acabassem mortas, uma rainha de facto, mesmo que só por um dia ou uma noite (D.ª Joana), a outra, uma rainha simbólica após a morte (D.ª Inês).

     Resta saber o quão envolvidas estavam as irmãs nos planos dos irmãos. Mortas as irmãs, os irmãos Castro continuam próximos de D. Pedro de Portugal, pois havia ainda três filhos vivos de Inês de Castro e de D. Pedro (João, Dinis e Beatriz) que poderiam ascender ao trono. Depois de D. Pedro I de Castela (neto de D. Afonso IV e sobrinho de D. Pedro I de Portugal) ser assassinado pelo irmão bastardo, Henrique de Trastâmara, os irmãos Castro passam a apoiar D. João I de Castela contra D. João I de Portugal, o Mestre de Avis, nas pretensões ao trono de Portugal.

     Simultaneamente, D. Fernando também favoreceu Diogo Lopes Pacheco (c. 1305-1393), conselheiro de D. Afonso IV, acusado de sentenciar D.ª Inês à morte, atribuindo-lhe responsabilidades diplomáticas, incluindo na assinatura do Tratado de Alcoutim (1371). Exilou-se em França mas manteve-se leal a Portugal, regressando ao país após a morte de D. Pedro. Mas chegou de facto a pegar em armas contra Portugal, tal como alguns o acusam, porque considerava o casamento de D. Fernando (filho de D. Pedro) com D.ª Leonor Teles (parente de D.ª Inês por via materna) perigoso para a soberania de Portugal. É obrigado a exilar-se novamente e regressa a Portugal para apoiar o Mestre de Avis (D. João I). Sabe-se que, sendo já octogenário, ainda participou na batalha de Aljubarrota de espada na mão.

     Os Castro sediaram-se na Galiza no século XII e tornaram-se uma das cinco famílias mais influentes de Castela. Pedro Fernandes de Castro, o da Guerra (pai de D.ª Inês) cresceu em Portugal com o seu primo, D. Pedro Afonso, 3.º Conde de Barcelos (o autor do primeiro Livro de Linhagens, filho bastardo de D. Dinis e um dos poucos filhos bastardos deste rei que respeitaram D. Afonso IV, o herdeiro legítimo), habituando-se desde a infância a conviver com reis. Quando regressa a Castela, torna-se mordomo-mor da corte. Casa duas vezes, primeiro com D.ª Beatriz (que era filha de D. Afonso de Portugal, filho de D. Afonso III) de quem não teve filhos; depois casa com D.ª Isabel Ponce de Leão, de quem teve dois filhos: D. Fernando Rodrigues de Castro, o de Toda a Lealdade de Espanha (partidário de D. Pedro I de Castela), que casou com D.ª Joana Afonso, filha de Afonso XI de Castela (marido de D. Maria de Portugal, cunhado de D. Pedro I de Portugal e genro de D. Afonso IV); e D.ª Joana de Castro que veio a casar com D. Pedro I de Castela e foi “rainha por uma noite”. Fora do casamento, teve com a bela portuguesa Aldonça Lourenço de Valadares (filha de Lourenço Soares de Valadares, conselheiro de D. Afonso III e de D. Dinis) dois filhos bastardos: D.ª Inês de Castro e D. Álvaro Pires de Castro (que constituem a linha ilegítima dos Castro). Tal convívio e uniões matrimoniais com membros da alta aristocracia e da realeza despertaram ainda mais a ambição de subir mais alto.

     Séculos mais tarde, a memória maculada destes Castros seria parcialmente redimida por alguns dos seus descendentes. Saliento apenas os dois homónimos João de Castro: um foi o quarto vice-rei da Índia (1500-1548) o outro (c. 1550 - c. 1628) foi historiador e escritor. O primeiro foi aquele que empenhou os ossos do filho, D. Fernando de Castro, morto em batalha, e as próprias barbas como garantia de que cumpriria a sua “palavra de honra”. O segundo opôs-se veementemente à ocupação castelhana a partir de 1580, apoiou D. António, Prior do Crato e foi obrigado a exilar-se em Paris para continuar a escrever e a defender a sua pátria original. Foi ele o verdadeiro fundador do Sebastianismo e do Quinto Império, ideias depois retomadas e desenvolvidas por nomes grandes como o P.e António Vieira e Fernando Pessoa.

D. João de Castro, 1500-1548, 4.º Vice-rei da Índia.

Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, capateiro de Trancoso 
de João de Castro, c. 1550-c. 1623, Ed. José Lopes da Silva, Porto, 1901.
Esta obra foi publicada pela primeira vez em Paris (1603) durante o exílio de D. João de Castro.
Em 1901, o editor José Lopes da Silva encontra um exemplar desta obra no Porto e propõe a Sampaio Bruno que se faça uma edição fac-similada, prefaciada e anotada por este último.

Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, capateiro de Trancoso 
de João de Castro, c. 1550-c. 1623, Ed. José Lopes da Silva, Porto, 1901.
Na página acima, que se segue à folha de rosto, pode ler-se: 
"D. Sebastião, por graça de Deus, Rei de Portugal, aparecido e profetizado".

Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, capateiro de Trancoso 
de João de Castro, c. 1550-c. 1623, Ed. José Lopes da Silva, Porto, 1901.

     Mas para voltar a macular a linhagem dos Castro vieram depois outros, como D. Francisco de Castro, 1574-1653, (neto do vice-rei da Índia D. João de Castro e descendente de Álvaro Pires de Castro), que além de Bispo da Guarda e Reitor da Universidade de Coimbra, foi Inquisidor Mor ou Inquisidor Geral do Santo Ofício, nomeado em 1629. Compilou um minucioso código legal do Tribunal do Santo Ofício para que nenhum “hereje”, Judeu, bruxa, mezinheiro, dissidente político ou pacato cidadão pudesse fugir ao longo braço da Inquisição e às labaredas das suas insaciáveis fogueiras. Muitas dezenas de desgraçados perderam a vida por sua ordem… uma vergonhosa honra… Colocou-se ao lado dos Filipes e foi por eles recompensado, em 1611, com o cargo de Presidente da Mesa de Consciência e Ordens. Em 1619, participou nas Cortes que Filipe II celebrou em Lisboa para jurar herdeiro o seu filho, futuro Filipe III (de Portugal). De modo oportuno e conveniente, após a Restauração (1 de Dezembro de 1640), muda radicalmente a sua posição política e coloca-se ao lado de D. João IV. Mas logo foi descoberta uma conspiração para incendiar o palácio real e assassinar D. João IV e, segundo alguns, este pio inquisidor faria parte da trama. Esteve preso durante dois anos na Torre de Belém, mas como bom inquisidor, foi perdoado e reintegrado no quadro dos funcionários da corte e em todos os importantes cargos que antes tivera, todos conquistados durante o domínio filipino. Só com ironia se pode exclamar: “Abençoada seja a incoerência, o oportunismo e o nepotismo, pois desinteressada misericórdia não foi certamente…” (cf. Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza, Tomo I, Pedro José de Figueiredo, Lisboa, 1817).

D. Francisco de Castro, 1574-1653, o Inquisidor Geral.
(In Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza
Tomo I, Pedro José de Figueiredo, 1762-1826, Lisboa, 1817).

Lopo Fernandes Pacheco, 1280-1349, pai de Diogo Lopes Pacheco, 
tutor e Mordomo-Mor de D. Pedro e chanceler da rainha D. Beatriz.
(In Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza
Tomo I, Pedro José de Figueiredo, 1762-1826, Lisboa, 1817).

Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), navegador, militar e cosmógrafo português. 
Autor do Esmeraldo de Situ Orbis, c. 1505-1507, foi uma das testemunhas portuguesas 
na cerimónia de assinatura do Tratado de Tordesilhas em 7 de Junho de 1494.

A Revolução da experiência - Duarte Pacheco Pereira e D. João de Castro
Idearium, Antologia do Pensamento Português, Edições SNI, 1947.
Nesta obra reúne-se o pensamento pioneiro de um Castro e um Pacheco.
D. João de Castro inaugurou o profetismo sebastianista e a ideia de Quinto Império; Duarte Pacheco Pereira foi um percursor do experimentalismo, defendendo o primado da observação e da experiência, além de ter sido, provavelmente, o primeiro a chegar ao Brasil (por volta de 1498) e a explorar as costas e ilhas da América do Sul, Central e das Antilhas. Na sequência da assinatura do Tratado de Tordesilhas, D. Manuel I terá enviado Duarte Pacheco Pereira numa viagem de reconhecimento secreta.


LENDA & HISTÓRIA II

 O CASAMENTO SECRETO

 

     Em 1360, D. Pedro declara solenemente em Cantanhede ter casado secretamente com D. Inês “há cerca de 7 anos”. O que é curioso, e tristemente divertido, é que nem ele nem as supostas testemunhas se lembrem ao certo do dia e mês em que casou! (cf. Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes). De facto, D. Pedro fez registar nesse ano (18 de Junho de 1360) um juramento escrito para legitimar este casamento. Esse documento existe ainda hoje na Torre do Tombo. Mas a sua simples existência não comprova a autenticidade do casamento secreto de Bragança, que teria ocorrido no dia 1 de Janeiro de 1354, um ano antes do assassinato de D.ª Inês. Esta data não é indicada por D. Pedro, mas por um seu “criado”, Estevão Lobato (Guarda-Roupa d’El-Rei), que, repentinamente, se lembrou da data.

Inès de Castro se jetant avec ses enfants aux pieds d'Alphonse IV roi, Eugénie Honorée Marguerite Servières, 1786. 

     Não seria este o primeiro nem o último documento forjado na História de Portugal. E, num caso específico, há até uma relação estreita com a actuação de D. Pedro (o favorecimento da Ordem de Cister). Um dos autores da Monarquia Lusitana, Frei Bernardo de Brito, clérigo cisterciense de Alcobaça, na ânsia de elucidar sobres os períodos anteriores à fundação da nacionalidade, atreve-se a escrever a História do mundo desde a sua “criação”. Para fundamentar as suas narrativas mitológicas forja cerca de duas centenas de documentos, todos referentes a um passado mítico ou tão distante que já ninguém podia confirmar com os próprios olhos nem através de documentos, que não existiam ou se perderam na poeira do tempo. Existem, contudo, múltiplos documentos que atestam que o Mosteiro de Alcobaça e os seus clérigos da Ordem de Cister foram repetidamente favorecidos por quase todos os monarcas desde a fundação de Portugal, sobretudo por um rei que não tinha grande simpatia pelo clero, D. Pedro I (cf. Chancelaria de D. Pedro I, ANTT).


Carta de confirmação pela qual o rei D. Pedro I revalidou a Alcobaça os coutos e jurisdições, e restituiu as que seu pai, D. Afonso IV, tinha tirado ao mosteiro, c. 8-9-1358 - ANTT.

     Curiosamente, o único rei que não favoreceu a ordem e o mosteiro com mais terras, bens e privilégios foi D. Afonso IV. Este monarca, pelo contrário, considerando que os clérigos de Alcobaça já tinham sido excessivamente privilegiados e tendiam a alargar cada vez mais o seu domínio e poder, retirou-lhes algumas terras e benesses. Pode haver, pois, diversos motivos para forjar documentos ou fazer apologias.

     Todos os autores da Monarquia Lusitana (oito partes, escritas entre 1597 e 1729) eram cistercienses. Curiosamente, embora D. Pedro I tenha sido um dos principais benfeitores do Mosteiro de Alcobaça, não há um capítulo dedicado a este rei; mas existe um dedicado a D. Afonso IV onde D. Pedro é mencionado (Monarquia Lusitana, Sétima Parte, Rafael de Jesus, 1683 – cf. Capítulo III, págs. 361). A oitava e última parte incide sobre os reinados de D. Fernando e D. João I. Adiante, voltarei a falar da Ordem de Cister (A SUPREMACIA DE CISTER) e dos seus conflitos com os reis de Portugal que tentaram limitar-lhe o poder, sobretudo D. Afonso IV.

     Com a publicação do suposto casamento secreto de Bragança, para além de querer honrar D.ª Inês, D. Pedro queria sobretudo legitimar os seus filhos bastardos, para justificar as benesses de príncipes que lhes concedeu e, se as circunstâncias fossem propícias, permitir que um ou outro (D. João ou D. Dinis), pudesse ser seu sucessor no trono de Portugal. Tal possibilidade assustava aqueles que conheciam melhor as motivações e a ambição da família Castro. 

Gravura fictícia, representando o casamento secreto de D. Pedro I de Portugal com Inês de Castro.

     Retornemos aos meandros da história de Pedro e Inês. As dúvidas são tantas como as certezas, o que se sabe tanto como o que não se sabe ou menos. O certo é que no caso de D. Pedro, as motivações pessoais e privadas se misturam e confundem amiúde com a imagem e os actos públicos e políticos.

     Nas notas à bibliografia, que surgem nos posts seguintes, refiro-me à instituição do beneplácito régio por D. Pedro I (alguns consideram que apenas o confirmou). Esta lei pretendia impedir a falsificação de documentos eclesiásticos (abuso praticado frequentemente pelo clero em proveito próprio ou de terceiros) e a publicação de bulas papais sem a aprovação do rei. No que toca ao casamento secreto de Bragança, esta era uma lei muito conveniente.

     Segundo alguns autores, o papa João XXII (papado de Avinhão, 1316-1334) terá recusado o pedido de dispensa de D. Pedro para casar com D.ª Inês (?), porque eram primos. A data indica que só pode tratar-se de um lapso: o pedido de dispensa não podia referir-se a D. Inês nem podia ter sido feito por D. Pedro mas por seu pai. Após esta recusa, há sim provas de que D. Pedro solicitou (nova) dispensa para casar e legitimar os filhos de D.ª Inês ao papa Inocêncio VI (papado de Avinhão, 1352-1362) e este recusou.

     No entanto, a bula apresentada (no juramento de Cantanhede) por D. Pedro é a de João XXII. Caso deveras estranho, já que o papa João XXII faleceu em 1334, mais de vinte e cinco anos antes da declaração de Cantanhede! Nesta bula refere-se que o pedido é feito por D. Afonso IV em nome de D. Pedro, mas não menciona explicitamente o nome de D.ª Inês nem o de outra mulher. Fernão Lopes transcreve o juramento de Cantanhede em que se inclui esta bula, deixando a impressão de que não acredita na sua autenticidade. Na verdade, no capítulo (Crónica de D. Pedro I) referente às objecções e dúvidas sobre este casamento, fica bem claro que os argumentos dos que o negavam eram bem mais credíveis do que o embuste montado por D. Pedro. Para que D.ª Inês recebesse as honras de rainha, tinha de ser forjado um documento que comprovasse a existência de um casamento enquanto ela foi viva. E os filhos de uma rainha eram necessariamente pretendentes ao trono português.

Juramento de D. Pedro I do matrimónio celebrado com D. Inês de Castro. Portugal, Torre do Tombo, 18-6-1360 - ANTT.

      «Ora, assim é, que emquanto Dona Ignez foi viva, nem depois da morte d'ella emquanto el-rei seu padre viveu, nem depois que elle reinou até este presente tempo, nunca el-rei Dom Pedro a nomeou por sua mulher; antes dizem que muitas vezes lhe enviava el-rei Dom Affonso perguntar se a recebera, e honral-a-ia como sua mulher, e elle respondia sempre que a não recebera, nem o era

      In Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes, Capítulo XXVII (Como el-rei Dom Pedro de Portugal disse por Dona Ignes que fora sua mulher recebida, e da maneira que em ello teve.)

     A bula de João XXII foi apresentada como prova ao longo dos séculos pelos mais diversos autores. Alguns copiam apenas Fernão Lopes ou Rui de Pina. Eis o texto da bula numa versão do século XVIII, legitimada pela Real Academia da História:

     «(…) e à ſua viſta deo conta o Conde de Barcellos de todo este facto com as circunstancias, que nelle houve, e para tirar algum escrupulo, que podesse haver nesta materia, leo a Bulla da Santidade de Joaõ XXII. dada em Avinhão aos 18. de Fevereiro do nono anno do ſeu Pontificado, que he o de 1325. pela qual o dispenfava para contrahir matrimonio com parenta sua, ainda que fosse no grao mais chegado. A copia da dita BulIa tirada da Chronica del Rey D. Pedro, que escreveo Ruy de Pina no cap. 26. he a que se segue:

     Joanne Biſpo servo dos servos de Deos. Ao muito amado filho Infante D. Pedro primogenito do muito amado em Christo nosso filho muy caro Rey de Portugal, e do Algarve Affonso saude, e apostolica bençaõ. Se o rigor dos Santos Canones poem defeza, e interdito sobre a copula do matrimonial ajuntamento, querendo que se não faça entre aquelles que por algum devido de parentesco são conjuntos para guarda da publica honestidade: aquelle porém, que he às vezes Bispo De Roma, de poderio absoluto (em lugar de Deos)  dispensando pode por especial graça poer temperança sobre tal rigor. E porém Nós demovido acerca de tua Pessoa com especial favor; com algumas rezoens, de que adiante esperamos paz, e folgança com esses Reynos: querendo condescender a tuas preces, e del Rey D. Affonso teu Padre, que por tuas preces por ti a Nós humildosamente suplicou para cazares com qualquer nobre mulher devota à Santa Igreja de Roma, ainda que por linha transversa de huma parte no segundo grão, e de outra no terceiro sejais dividos, e parentes. E isto ainda mesmo que por rezão de outras linhas colaterais seja embargo de parentesco, ou cunhadío antre vós no quarto grão licitamente por matrimonio vos podeis ajuntar. Nós por apostolica authoridade de especial graça todo tiramos, e removemos, e dispensamos contigo, e com aquella, com quem assim cazares de nosso apostolico poderio, que a geração, que de vós ambos nacer, seja lidima sem outro impedimento. Porém nenhum homem seja ouzado presumtuosamente contra esta nossa dispensação hir. Doutra guisa certo seja na ira, e sanha do todo poderoso Deos, e dos Bemaventurados S. Pedro, e S. Paulo Apostolos encorrer. Dada em Avinhão aos doze das Calendas de Março do nosso pontificado anno nono

(in Catalogo chronologico, historico, genealogico, e critico, das rainhas de Portugal, e seus filhos, D. José Barbosa, Academia Real da História Portuguesa, Na Officina de José António da Silva, Lisboa, 1727, págs. 311-312)

     Note-se a disparidade nas datas: “18 de Fevereiro de 1325” ou “doze das Calendas de Março”?

     Por acaso ou não, esta bula é datada “aos doze das calendas de Março”, pormenor bem divertido, já que a expressão “ficar para as calendas gregas” remete para algo que nunca existirá, uma promessa não cumprida ou impossível de cumprir. Os Romanos tinham no seu calendário as “calendas” (étimo que originou a palavra calendário) e os “idos”, mas não os Gregos. Para estes não havia calendas; as calendas eram um tempo que nunca chegaria a existir… O ano nono do pontificado de João XXII foi o ano de 1325 (quando D. Pedro tinha 5 anos); o ano nono do pontificado de Inocêncio VI foi o ano de 1361 (sensivelmente na mesma altura em que D. Pedro faz a declaração de Cantanhede). Inocêncio VI recusou o pedido de dispensa que D. Pedro terá de facto feito. Seja como for, a bula apresentada por D. Pedro em Cantanhede responde a um pedido de facto feito por D. Afonso IV para casar D. Pedro, com D.ª Branca (depois repudiada) ou com D.ª Constança, mas não certamente com D.ª Inês.

Casamento Clandestino de D. Pedro e D. Inês - desenho de Charles-Abraham Chasselat, 
gravado por J. Duthé.


LENDA & HISTÓRIA I

 Pedro & Inês

ENTRE A LENDA & A HISTÓRIA

     Os amores de D. Pedro I e de D.ª Inês de Castro ficaram gravados na memória popular e na Literatura como símbolo do amor eterno, um amor maior do que a vida e a morte. É pelo menos essa a perspectiva adoptada na lenda e na maioria das obras literárias. A História, por seu lado, revela factos que em muito contradizem a Lenda e a Literatura. Na lenda popular e nas páginas literárias, tanto Pedro como Inês surgem como seres imaculados, vítimas da perfídia alheia, incapazes de qualquer maldade, conduzidos apenas pelo amor. Um amor que se torna maior também porque é proibido, condenado pela autoridade paterna de D. Afonso IV (pai de D. Pedro) e por todos os que colocavam a segurança e a preservação da nação acima de todas as coisas.

     Poucos são os autores que escreveram sobre os amores reais de Pedro e Inês, sobre as pessoas de carne e osso, sobre a psicologia oculta sob os actos individuais ou que nomeiam e elucidam as motivações políticas que se escondem por trás do assassinato de D.ª Inês de Castro. Isso significaria destruir uma das mais belas e imortais histórias de amor. Quem ler as crónicas históricas e algumas monografias e biografias de D. Pedro e de D.ª Inês pode até ficar baralhado. Como é que D. Pedro, homem de carácter doentio, propenso à violência desmedida, obcecado com a punição dos “pecados da carne”, hipocritamente moralista, pode ser considerado um símbolo de um amor maior? Causa um arrepio pensar que a aceitação tácita ou até a apologia de tal carácter e forma de actuar parece corresponder a um paradigma de algo doentio na identidade nacional e na forma como se abordam e toleram certos “crimes passionais” como se fossem naturais e justificáveis. E chega a ser estranha a forma como alguns autores, incluindo historiadores, tentam conciliar lenda e história. É difícil, para não dizer absurdo, descrever num parágrafo algumas das atrocidades mais perversas cometidas por D. Pedro e, mais adiante, descrevê-lo como um ser “bom, generoso e justo”. A pessoa que sentia um prazer mórbido em torturar e executar homens e mulheres é a mesma que era, de facto, muito generosa com os seus fiéis servidores, cúmplices e mancebas. D. Pedro tem, de facto, facetas muito contraditórias que seriam até consideradas incompatíveis num ser são e equilibrado. Só um ser psicótico pode ser dividido desta forma e sempre com a noção de que se trata de facto de um caso patológico. Uma face tenta branquear ou ocultar a outra. No entanto, não há seres bons entre as dez e o meio-dia e maus durante o resto do dia; todas as acções vêm da mesma mente, do mesmo eu, consciente e responsabilizável. A Lenda, a Literatura e até a História têm usado uma dualidade de critérios éticos, talvez até de forma inconsciente, criando monstros onde eles não existem e ocultando monstros onde eles existem de facto. Cruzar a Lenda, a Literatura e a História ajuda a evitar estes extremos e a destrinçar interpretações subjectivas e interesses políticos e pessoais dos factos (aqueles que se conhecem).

Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'.

     Embora considere a verdade como o valor máximo em todos os domínios da vida, eu própria (como professora) sempre falei com alguma contenção sobre esses factos ocultos ou habitualmente relegados para um plano muito secundário. A história de amor, tal como a Literatura a apresenta, é em si mesma um valor e um símbolo. Quem souber distinguir a História da Lenda, poderá ler / ouvir os factos e continuar a tomar a lenda como símbolo e inspiração. Mas normalmente, os mais jovens não estão preparados para fazer esta distinção e chegam a sentir-se enganados pela bela Lenda e pela Literatura. Ou então ficam muito zangados com o mensageiro que lhes trouxe a verdade ou lhes mostrou outra face da moeda.

     Tanto D. Pedro I como D.ª Inês de Castro estão longe de ser dois seres puros e imaculados. Os amores de Pedro e Inês são adúlteros e destrutivos desde o início, facto muito comum na época e tacitamente aceite por muitos, mas apenas no que toca ao adultério masculino, sobretudo nos estratos sociais mais elevados. A traição e a poligamia eram toleradas e até consideradas naturais no homem mas inaceitáveis nas mulheres. D. Pedro, que foi um rei adúltero desde que casou com D. Constança, foi também o rei que puniu de forma mais raivosa e violenta o adultério (cf. Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes). D. Pedro tinha no sangue a mesma propensão para a infidelidade que o seu avô, D. Dinis que ― a par do seu bisavô, D. Afonso III, e de D. João V ― foi daqueles que teve maior número de barregãs e de filhos naturais (bastardos).

     Note-se que os filhos naturais ou bastardos da realeza e da nobreza tinham, regra geral, um destino muito diferente dos enjeitados colocados na Roda dos Expostos. Os primeiros eram tão ou mais favorecidos do que os filhos legítimos, causando revolta, conflitos e guerras (como aconteceu com D. Afonso IV e D. Dinis por este favorecer desmedidamente Afonso Sanches, filho bastardo e predilecto, em detrimento do filho legítimo, D. Afonso IV, embora essa não tenha sido a única causa do conflito). As crianças “enjeitadas”, que tanto podiam ser filhos dos poderosos, dos humildes ou de membros do clero, regra geral, eram colocadas na Roda dos Expostos e recolhidos por orfanatos e instituições religiosas. Raras vezes estes “enjeitados” eram criados e protegidos por alguém rico e poderoso, excepto quando o “enjeitado” não era afinal filho de pais anónimos e pobres, mas de algum(a) notável que fingia uma enorme generosidade no acto de adoptar um(a) filho(a) que afinal era seu.

     O adultério de D. Pedro com D.ª Inês era condenado pela corte e pela maioria dos nobres por representar uma ameaça para a independência e estabilidade do reino, não por razões morais. Mas era bem aceite por uma parte considerável do povo, pelo menos até ao momento em que a ambição desmedida dos irmãos Castro se tornou mais notória. Esta simpatia popular resulta de características e comportamentos paradoxais de D. Pedro: por um lado, D. Pedro era um folgazão que adorava festas, danças, música e grandes caçadas; por outro lado, era um justiceiro sanguinário que tanto punia o plebeu como o poderoso.

     Esta combinação de barbárie e “justiça” férrea com a folia parecia agradar a uma parte do povo daquele tempo. Hoje, até poderíamos pensar naqueles políticos demagogos e populistas que mantêm o povo submisso e contente com umas migalhas de pão e circo, usando a retórica fácil para manipular e agradar, mesmo que a corrupção grasse por toda a parte e essa base popular se mantenha paupérrima e sem esperança à vista. Mas havia também uma parte do povo que não apreciava a relação perigosa entre D. Pedro e uma dama que consideravam leviana, ambiciosa e maquiavélica. Esta opinião negativa ficou plasmada em adágios populares que mencionam explicitamente o nome de D.ª Inês, como há outros de semelhante teor sobre D.ª Leonor Teles (mulher de D. Fernando, filho de D. Pedro I): «Inês! Às três o Diabo fez e Inês é morta!»… Como se a morte de Inês fosse a consequência natural do seu pacto com o diabo. (cf. O Grande Livro dos Provérbios, José Pedro Machado).

Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'.
 

 SERES POUCO IMACULADOS

      D.ª Inês Pires de Castro (1325-1355), dama galega, filha bastarda de D. Pedro Fernandes de Castro (mordomo-mor do rei Afonso XI de Castela) era parente e uma das aias de D.ª Constança Manuel (a legítima esposa de D. Pedro, filha de D. João Manuel, tutor do mesmo Afonso XI de Castela).

     Afonso XI viria a ser cunhado de D. Pedro I, já que casou com a sua irmã mais velha, D.ª Maria de Portugal, a Formosíssima Maria, 1313-1357, rainha de Castela, também maltratada e repudiada pelo marido em prol de uma das concubinas, Leonor de Gusmão. Antes de repudiar D.ª Maria de Portugal, Afonso XI já tinha repudiado D.ª Constança Manuel (que viria a ser mulher de D. Pedro) e D. Pedro já repudiara D.ª Branca de Castela, 1319-1375. Afonso XI também já tinha quebrado um contrato matrimonial com D. Branca e assassinou o tio desta, João de Haro, o Torto, que deveria ter-se tornado seu marido. Além disso, apropriou-se dos muitos bens de D.ª Branca e distribuiu-os pelos seus filhos bastardos, tidos com Leonor de Gusmão. Após a morte de Afonso XI, D. Maria de Portugal manda matar Leonor de Gusmão, não por motivos passionais mas por motivos políticos; os bastardos de Afonso XI e de Leonor de Gusmão tentavam usurpar a coroa, e conseguiram, quando Henrique de Trastâmara mata D. Pedro I de Castela, filho de D. Maria de Portugal e legítimo herdeiro do trono castelhano.

D. Pedro I (o Justiceiro) por José Lopes Júnior (1790-1863), Lisboa, 1841.

     Consta que, desde o início, D. Pedro se terá apaixonado por D.ª Inês e terá desde logo estabelecido uma relação amorosa com ela. Ainda assim, aceita casar com D.ª Constança, respeitando o contrato matrimonial previamente estabelecido por seu pai, D. Afonso IV. D. Pedro, um homem tão determinado e aguerrido noutras situações, não teve coragem para recusar o casamento com D.ª Constança, tal como já tinha recusado casar com D.ª Branca de Castela (recusa partilhada por D. Afonso IV), por esta ser considerada “imbecil” e frágil. Justificação curiosa que soa falsa, pois logo em seguida D.ª Branca foi nomeada senhora do Mosteiro de Santa María la Real de Las Huelgas, em Burgos, instituição que dirigiu até à sua morte. Este mosteiro era o mais importante de Castela na Idade Média; estava reservado às donzelas e senhoras nobres e possuía uma das melhores bibliotecas da época, que continha até obras proibidas pelo índice expurgatório.

     D.ª Constança Manuel (1316-1345), que já passara também pela humilhação de ser repudiada por Afonso XI de Castela, após dois anos de casamento, humilhação e clausura, não tinha qualquer escolha. As decisões respeitantes ao matrimónio eram tomadas pelos pais quando as crianças eram ainda de tenra idade. Não foi exactamente o caso de D.ª Constança, neste segundo casamento, quando já tinha cerca de 23 anos (D. Pedro, 1320-1367, tinha apenas 19 anos e D.ª Inês tinha 15 ou 16). Mas foi o caso do próprio D. Afonso IV (1291-1357) que casou com D.ª Beatriz de Castela (1293-1359) em 1309, quando tinha apenas 18 anos e o contrato matrimonial já estava estabelecido desde os seus seis anos de idade.

     Como era hábito, após a assinatura do contrato matrimonial, a futura mulher, D.ª Beatriz, veio para Portugal com apenas 4 anos (tinha D. Afonso 6) e foi criada pelos futuros sogros, sobretudo por D.ª Isabel de Aragão (mulher de D. Dinis). Assim, D. Afonso IV e D.ª Beatriz cresceram juntos desde a mais tenra idade. O casamento durou até à morte (48 anos de vida comum) e, que se saiba, D. Afonso IV (além de D. Sancho II e do Cardeal D. Henrique) foi o único rei de Portugal que não teve uma única “barregã” ou “manceba” (amante). Por que será que ainda ninguém se lembrou ainda de escrever uma obra sobre este verdadeiro e eterno amor? Talvez porque não fez correr sangue, não foi violento, não destruiu a vida de ninguém e não constitui um motivo literário atractivo como, regra geral, acontece com as tragédias.

D. Beatriz de Castela, mulher de D. Affonso IV por Roque Gameiro.


D. Afonso IV por Roque Gameiro.

     D.ª Constança Manuel, mulher já sofrida e desgastada, tinha uma saúde muito débil, agravada com o sofrimento permanente que lhe causava a pública infidelidade de D. Pedro. Após o casamento, só durou mais cinco anos; morreu cerca de duas semanas após dar à luz o futuro rei D. Fernando (1345). Antes, já fora mãe de D.ª Maria (de Aragão) que casou com D. Fernando de Aragão e do infante Luís de Portugal, que morreu uma semana após o nascimento.

     Cerca de um ano após a morte de D.ª Constança, D. Afonso IV ainda tentou casar D. Pedro de novo com uma ou outra dama da corte portuguesa, aragonesa ou castelhana, mas D. Pedro recusou, alegando não ter feito ainda o luto da sua mulher (D. Constança) o que soava a pretexto falso uma vez que mantinha uma relação amorosa com D.ª Inês desde que esta chegara com D.ª Constança.

     Este carácter evasivo e dissimulado contrasta com a determinação que assumiu posteriormente quando travou uma guerra civil de puro ódio destrutivo contra o pai (D. Afonso IV), os nobres e o povo que se lhe opôs ou quando assistiu à tortura e execução perversa dos supostos assassinos de Inês (Álvaro Gonçalves e Pero Coelho) enquanto comia deliciado (cf. Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes). Torturou-os, mandou arrancar-lhes o coração enquanto vivos, queimou-os depois e, não satisfeito com a barbárie, ainda terá dado umas dentadas em cada coração ensanguentado. Para o coração de Pero (ou Pedro) Coelho terá até pedido sal e cebola… Tais actos evocam a imagem de uma espécie de Hannibal Lecter medievo coroado (O Silêncio dos Inocentes, Jonathan Demme, 1991), só que o nosso monarca, em vez de ser julgado um psicótico sádico e amoral, é venerado e tornou-se símbolo nacional da justiça e de um amor maior do que a própria vida…

     Incomoda a imagem extremamente positiva que a maioria dos cronistas e escritores dão de D. Pedro, incomoda a forma como os actos mais bárbaros são justificados e até elogiados, incomoda a forma como D. Afonso IV é denegrido, incomoda a forma como o estatuto ou a linhagem do sangue se sobrepõe aos actos. Mas esta foi apenas uma das execuções sanguinárias a que assistiu ou executou com as próprias mãos, sempre possuído por um furor sádico, vingativo e insaciável. A este rol de crueldades chamaram muitos “justiça” e a lenda que se construiu é cúmplice desta terrível visão da Justiça. Não foi em vão que lhe atribuíram o cognome de Cru ou Cruel (e também o de Justiceiro), mas quando se conhecem os factos, incomoda profundamente que se atribua uma conotação positiva a tais epítetos. Houve até alguém (William Thomas Beckford, 1760 – 1844) que lhe chamou “Pedro, o Justo”!

D. Afonso IV.

     Embora D. Pedro se tenha comprometido com o seu pai, D. Afonso IV, através da assinatura da Paz de Canaveses (5 de Agosto de 1355), a perdoar e não perseguir os que tinham estado envolvidos no assassinato de D.ª Inês, logo que o rei morreu, D. Pedro dedicou-se inteiramente a uma vingança cega e cruel. Estabeleceu com D. Pedro I de Castela um pacto vergonhoso que previa a troca dos conselheiros de D. Afonso IV, que se tinham refugiado em Castela, a conselho do próprio rei que conhecia bem o íntimo violento do filho, por quatro fidalgos castelhanos que se tinham exilado em Portugal para escapar à sanha vingativa do outro Pedro, o Cruel, sobrinho de D. Pedro I de Portugal. Diogo Lopes Pacheco conseguiu escapar, mas os outros dois foram capturados, torturados e executados de forma hedionda. Mais uma vez, D. Pedro colocou acima de tudo o seu egoísmo e a sede de sangue e vingança. A violência de D. Pedro foi ainda exacerbada pela dignidade dos conselheiros capturados que se mantiveram em silêncio e de cabeça erguida, apesar da idade já avançada e de terem passado cinco dias sem comer. Esse amor incondicional a Portugal, D. Pedro não o compreendia. O seu amor ao reino prendia-se mais com o prazer de ser adorado por uma parte do povo e de impor a sua vontade por todos os meios.

     Os dois conselheiros de D. Afonso IV que foram presos, Álvaro Gonçalves (que fora meirinho-mor) e Pero Coelho (que fora aio e tutor do próprio D. Pedro), apesar das torturas horríveis a que foram sujeitos, nunca confessaram ser os autores do assassínio e compreende-se porquê: porque queriam acima de tudo preservar a soberania nacional; porque queriam salvaguardar a honra do rei D. Afonso IV, a quem tinham sido sempre fiéis; e porque não foram certamente eles os executores materiais do assassínio. Essa tarefa era sempre deixada a pessoas de “baixa condição”, um carrasco ou algoz oriundo do povo. D. Pedro foi, provavelmente, o único rei português que torturou e executou com as próprias mãos.

     D. Pedro dedicava-se a uma “justiça” preventiva que infundia terror e, contraditoriamente, adoração. Tanto lhe importava o crime deveras cometido como a possibilidade de vir a ser cometido. Pelo terror impunha a ordem e consolidava o poder, tal como qualquer déspota. A este propósito, diz Fernão Lopes:

     «E quando lhe diziam que punha mui grandes penas por mui pequenos excessos, dava resposta dizendo assim, que a pena que os homens mais receavam era a morte, e que se por esta se não cavidassem de mal fazer, que às outras davam passada, e que boa cousa era enforcar um ou dois, pelos outros todos serem castigados, e que assim o entendia por serviço de Deus e prol de seu povo.» (in Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes)

D. Inês de Castro - retrato por Frank Stone, 1800-1859.





ECOS DA LENDA

 Poemas inspirados na lenda de Pedro & Inês

Pedro & Inês

Poemas


Antes do fim do mundo, despertar,
Sem D. Pedro sentir,
E dizer às donzelas que o luar
E o aceno do amado que há de vir...

E mostrar-lhes que o amor contrariado
Triunfa até da própria sepultura:
O amante, mais terno e apaixonado,
Ergue a noiva caída à sua altura.

E pedir-lhes, depois fidelidade humana
Ao mito do poeta, à linda Inês...
À eterna Julieta castelhana
Do Romeu português.

Miguel Torga, Poemas ibéricos, 1965

(Nota: este Romeu (D. Pedro I) era de facto português, mas esta Julieta (D.ª Inês) era galega, não castelhana)

Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'

Inês morreu e nem se defendeu

Inês morreu e nem se defendeu
da morte com as asas das andorinha
pois diminuta era a morte que esperava
aquela que de amor morria cada dia
aquela ovelha mansa que até mesmo cansa
olhar vestir de si o dia-a-dia
aquele colo claro sob o qual se erguia
o rosto envolto em loura cabeleira
Pedro distante soube tudo num instante
que tudo terminou e mais do que a Inês
o frio ferro matou a ele.
Nunca havia chorado é a primeira vez que chora
agora quando a terra já encerra
aquele monumento de beleza
que pode Pedro achar em toda a natureza
que pode Pedro esperar senão ouvir chorar
as próprias pedras já que da beleza
se comovam talvez uma vez que os humanos
corações consentiram na morte da inocente Inês
E Pedro pouco diz só diz talvez
Satanás excedeu o seu poder em mim
deixem-me só na morte só na vida
a morte é sem nenhuma dúvida a melhor jogada
que o sangue limpe agora as minhas mãos
cheias de nada
ó vida ó madrugada coisas do princípio vida
começada logo terminada.

Ruy Belo


Pedro e Inês

Tu amavas o sol perdidamente
e tudo te pedia um pouco do perfume do pomar
aurora não do dia aurora do amor
alegria tão forte que causava dor
nave de pedra em luz transfigurada
Há cotovias já no teu silêncio
há coisas de outra idade neste dia
que afogentou os rouxinóis da noite
É manhã nas estrelas vai alguém casar
pedra de pedra pedra intensamente
testamento lavrado sendo já alto o serão
alguém casou alguém morreu de amor
após a sua postrimeira dor
Talvez um dia eu volte lá dessa cidade
somente minha e de mais ninguém
A vida era a mágoa para mim que só pedia
a beleza contida num pequeno copo de água
Ninguém profundamente me conhece
nem talvez isso interesse a alguém
e aos íntimos menos que a ninguém
Bailador e monteiro e justiceiro
pedro primeiro pedro derradeiro

Ruy Belo, “A Margem da Alegria”, 1973, (fragmento final) in Obra Poética de Ruy Belo, vol.2, Ed. Presença


Soneto de Inês

Dos olhos corre a água do Mondego
os cabelos parecem os choupais
Inês! Inês! Rainha sem sossego
dum rei que por amor não pode mais.

Amor imenso que também é cego
amor que torna os homens imortais.
Inês! Inês! Distância a que não chego
morta tão cedo por viver demais.

Os teus gestos são verdes
os teus braços são gaivotas poisadas no regaço
dum mar azul turquesa intemporal.

As andorinhas seguem os teus passos
e tu morrendo com os olhos baços
Inês! Inês! Inês de Portugal.

José Carlos Ary dos Santos, in Poemas de Ary dos Santos

Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'

 
CHOVE!

Chove... Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta«
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira, in As Tormentas


A Ferida inesgotável

Na combustão de Inês a cânfora como se
sob a oxidação da luz o cordão umbilical
agora o amor prefigura-nos melhor sobre
as águas as pedras da fonte continuam
desencarnadas nos golfos do crime

as águas ainda na exatidão enregelada das
lâminas nos veios cintilantes da sílaba
o poema íngreme no equilíbrio do sangue
a fulguração do fogo inteiramente vencido
nas mãos do assombro sob os líquidos a
clara magnólia inteira a ferida ainda fresca.

João Rasteiro, in Triplov.org

Da triste, bela Inês

Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos céus andas pedindo
justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se ainda na fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morta formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza, e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa
A malfadada Inês na sepultura.
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos céus andas pedindo
justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se ainda na fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morta formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza, e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa
A malfadada Inês na sepultura.


Bocage

 

A lamentável catástrofe de D. Inês de Castro

Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos Céus andas pedindo
Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se inda na Fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morte formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c'roa
A malfadada Inês na sepultura.

Bocage

Inês de Castro.
(In Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza,
Tomo I, Pedro José de Figueiredo, 1762-1826, Lisboa, 1817). 

 

A Ulina
Soneto dedicatório


Da miseranda Inês o caso triste
Nos tristes sons, que a mágoa desafina,
Envia o terno Elmano à terna Ulina,
Em cujos olhos seu prazer consiste.

Paixão, que, se a sentir, não lhe resiste
Nem nos brutos sertões alma ferina,
Beleza funestou quase divina,
De que a memória em lágrimas existe.

Lê, suspira, meu bem, vendo um composto
De raras perfeições aniquilado
Por mãos do Crime, à Natureza oposto.

Tu és cópia de Inês, encanto amado;
Tu tens seu coração, tu tens seu rosto...
Ah!, defendam-te os Céus de ter seu fado!


Bocage

Longe do caro esposo Inês formosa


Longe do caro Esposo Inês formosa
Na margem do Mondego
As amorosas faces aljofrava
De mavioso pranto.
Os melindrosos, cândidos penhores
Do tálamo furtivo,
Os filhinhos gentis, imagem dela,
No regaço da mãe serenos gozam
O sono da inocência.
Coro subtil de alígeros Favónios
Que os ares embrandece,
Ora enlevado afaga
Com as plumas azuis o par mimoso,
Ora solto, inquieto,
Em leda travessura, em doce brinco,
Pela amante saudosa,
Pelos ternos meninos se reparte,
E com ténue murmúrio vai prender-se
Das áureas tranças nos anéis brilhantes.
Primavera louçã, quadra macia
Da ternura e das flores,
Que à bela Natureza o seio esmaltas,
Que no prazer de Amor ao mundo apuras
O prazer da existência,
Tu de Inês lacrimosa
As mágoas não distrais com teus encantos.
Debalde o rouxinol, cantor de amores,
Nos versos naturais os sons varia;
O límpido Mondego em vão serpeia
Co'um benigno sussurro, entre boninas
De lustroso matiz, almo perfume;
Em vão se doira o Sol de luz mais viva,
Os céus de mais pureza em vão se adornam
Por divertir-te, ó Castro;
Objectos de alegria Amor enjoam,
Se Amor é desgraçado.
A meiga voz dos Zéfiros, do rio,
Não te convida o sono:
Só de já fatigada
Na luta de amargosos pensamentos
Cerras, mísera, os olhos;
Mas não há para ti, para os amantes
Sono plácido e mudo;
Não dorme a fantasia, Amor não dorme:
Ou gratas ilusões, ou negros sonhos
Assomando na ideia, espertam, rompem
O silêncio da Morte.
Ah!, que fausta visão de Inês se apossa!
Que cena, que espectáculo assombroso
A paixão lhe afigura aos olhos d'alma!
Em marmóreo salão de altas colunas,
A sólio majestoso e rutilante
Junto ao régio amador se crê subida;
Graças de neve a púrpura lhe envolve,
Pende augusto dossel do tecto de oiro,
Rico diadema de radioso esmalte
Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;
Nos luzentes degraus do trono excelso
Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
A lisonja sagaz lhe adoça os lábios;
O monstro da política se aterra
E, se Inês perseguia, Inês adora.
Ela escuta os extremos,
Os vivas populares; vê o amante
Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;
O prazer a transporta, amor a encanta;
Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio
Magnânima confere;
Rainha esquece o que sofreu vassala:
De sublimes acções orna a grandeza,
Felicita os mortais; do ceptro é digna,
Impera em corações... Mas, Céus! Que estrondo
O sonho encantador lhe desvanece!
Inês sobressaltada
Desperta, e de repente aos olhos turvos
Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
Ministros do Furor, três vis algozes,
De buídos punhais a dextra armada,
Contra a bela infeliz, bramando, avançam.
Ela grita, ela treme, ela descora;
Os frutos da ternura ao seio aperta,
Invocando a piedade, os Céus, o amante;
Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto,
À suave atracção da formosura,
Vós, brutos assassinos,
No peito lhe enterrais os ímpios ferros.
Cai nas sombras da morte
A vítima de Amor lavada em sangue;
As rosas, os jasmins da face amena
Para sempre desbotam;
Dos olhos se lhe some o doce lume;
E no fatal momento
Balbucia, arquejando: «Esposo! Esposo!»
Os tristes inocentes
À triste mãe se abraçam,
E soltam de agonia inútil choro.
Ao suspiro exalado,
Final suspiro da formosa extinta,
Os amores acodem.
Mostra a prole de Inês, e tua, ó Vénus,
Igual consternação e igual beleza:
Uns dos outros os cândidos meninos
Só nas asas diferem
(Que jazem pelo campo em mil pedaços
Carcases de marfim, virotes de oiro).
Súbito voam dois do coro alado:
Este, raivoso, a demandar vingança
No tribunal de Jove;
Aquele a conduzir o infausto anúncio
Ao descuidado amante.
Nas cem tubas da Fama o grão desastre
Irá pelo Universo.
Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres;
No torrado sertão da Líbia fera,
As serpes, os leões hão-de chorar-te.
Do Mondego, que atónito recua,
Do sentido Mondego as alvas filhas
Em tropel doloroso
Das urnas de cristal eis vêm surgindo;
Eis, atentas no horror do caso infando,
Terríveis maldições dos lábios vibram
Aos monstros infernais, que vão fugindo,
Já c'roam de cipreste a malfadada,
E, arrepelando as nítidas madeixas,
Lhe urdem saudosas, lúgubres endeixas.
Tu, Eco, as decoraste,
E, cortadas dos ais, assim ressoam
Nos côncavos penedos, que magoam.

Bocage

Inês de Castro.
(In Idyllios dos reis, Alberto Pimentel, 1849-1925, 
Empreza Litteraria de Lisboa, Lisboa, 1886).

Toldam-se os ares


«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores;
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.

«Mísero esposo,
Desata o pranto,
Que o teu encanto
Já não é teu.

«Sua alma pura
Nos Céus se encerra;
Triste da Terra,
Porque a perdeu.

«Contra a cruenta
Raiva íerina,
Face divina
Não lhe valeu.

«Tem roto o seio
Tesoiro oculto,
Bárbaro insulto
Se lhe atreveu.

«De dor e espanto
No carro de oiro
O Númen loiro
Desfaleceu.

«Aves sinistras
Aqui piaram
Lobos uivaram,
O chão tremeu.

«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores:
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.»

Bocage in Cantata à Morte de Inês de Castro (excerto)

******************** 


A linda Inês de manto

Teceram-lhe o manto
para ser de morta
assim como o pranto
se tece na roca

Assim como o trono
e como o espaldar
foi igual o modo
de a chorar

Só a morte trouxe
todo o veludo
no corte da roupa
no cinto justo

Também com o choro
lhe deram um estrado
um firmal de ouro
o corpo exumado

O vestido dado
como a choravam
era de brocado
não era escarlata

Também de pranto
a vestiram toda
era como um manto
mais fino que a roupa

Fiama H. P. Brandão, in Obra Breve, Barcas Novas, 1967

Memória


Inês, Inês,
O tempo fere mais que o sangue!
Inês em nós,
Amor que as pedras amacia.
Memória, lume vivo,
Eterna melodia.
Águas do Mondego,
Que grito fatal vos rasgou o leito?!
Amor nascido sem medo,
Por isso verdadeiro.
Doces no passar ameno,
Madrigais de silêncio,
Soluços de nunca mais
Despertando ervas frias,
Testemunhas de punhais.


Eduardo Aroso in Habitante Sensível, Universitária Editora, 1997


Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'

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Cancioneiro de Coimbra, Afonso Lopes Vieira, 1878-1946, França Amado, Coimbra, 1918

GARCIA DE RESENDE

TROVAS À MORTE DE DONA INÊS DE CASTRO

que el rei Dom Afonso o quarto, de Portugal, matou em

Coimbra, por o príncipe Dom Pedro, seu filho, 

a ter como mulher, e, pelo bem que lhe queria, não queria casar 


ENDEREÇADAS À DAMAS

Senhoras, se algum senhor
vos quiser bem ou servir
quem tomar tal servidor,
eu lhe quero descobrir
o galardão do amor.
Por sua mercê saber
o que deve de fazer,
veja que fez esta dama
que de si vos dará fama
se estas trovas quereis ler.

FALA DONA INÊS

Qual será o coração
tão cru e sem piedade,
que lhe não cause paixão
uma tão grande crueldade,
e morte tão sem razão! 
Triste de mim, inocente,
que por ter muito fervente
lealdade, fé, amor
ao príncipe, meu senhor,
me mataram cruamente.

(...)