HERÓIS,
ANTI-HERÓIS E QUIMERAS - VII
(Continuação
do post anterior. Manteve-se quase
sempre a grafia dos documentos originais.)
OUTROS
MÁRTIRES DA PÁTRIA
Nota 23: No decurso da Guerra Civil entre Liberais
e Absolutistas (1828-1834), foram cometidas atrocidades de parte a parte. De
umas chegaram-nos mais notícias do que de outras, muitas vezes filtradas por um
terrível maniqueísmo. Algumas dessas atrocidades foram eternizadas pela própria
toponímia, como acontece com o Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa e no
Porto. Os Mártires da Pátria do Porto, também designados como Mártires da
Liberdades, foram executados em 7 de Maio de 1829, durante o período
absolutista, como modo de amedrontar e aniquilar os rebeldes liberais. Como é
evidente, o resultado foi o inverso. Perante a extrema crueldade das execuções,
mais vozes se uniram aos liberais. As execuções do Porto têm contornos ainda
mais sanguinários e tenebrosos do que as execuções de Lisboa (1817), talvez
porque em 1829 os liberais tinham ganhado terreno e surgiam como uma ameaça
muito maior. Para além dos 12 nomes gravados no bronze, na base da estátua de
D. Pedro IV, houve outros condenados (26) e executados, mas como sempre
acontece nem todos ficaram para a História. Sobre este tenebroso episódio,
publicou Germano Silva (um incansável investigador da História do Porto) um
artigo na revista Visão (30/9/2017).
Fica aqui o texto desse breve artigo:
«Os
cadáveres não tinham cabeça…
Na base da estátua equestre de D. Pedro
IV, que está no meio da praça da Liberdade, mandou a Câmara do Porto, em 1914,
colocar placas de bronze com os nomes dos doze Mártires da Liberdade gravados.
Em 7 de Maio e 9 de Outubro de 1829, na
antiga praça Nova das Hortas, hoje praça da Liberdade, foram enforcados,
vítimas do absolutismo mas, sobretudo, do torvo ódio miguelista, doze ilustres
personalidades afectas ao regime liberal de então: Joaquim
Manuel da Fonseca Lobo, Francisco Silvério de Carvalho Magalhães Serrão,
Francisco Manuel Gravito da Veiga e Lima, Manuel Luís Nogueira, José António de
Oliveira Silva e Barros, Clemente da Silva Melo Soares de Freitas, Vitorino
Teles de Meneses e Vasconcelos, José Maria Martiniano da Fonseca, António
Bernardo de Brito e Cunha e Bernardo Francisco Pinheiro, estes dez
executados no dia 7 de Maio; e mais dois: Clemente
Morais Sarmento e João Henriques Ferreira Júnior, enforcados no dia 9 de
Outubro daquele mesmo ano.
O assunto é tétrico, temos que o
reconhecer, mas vamos ter de continuar neste tom mórbido para melhor
compreensão do assunto hoje trazido à crónica. Após os enforcamentos, e para
total cumprimento das sentenças, o carrasco João Branco cortou as cabeças aos
cadáveres a fim de serem expostas, durante três dias, como ordenava o tribunal,
diante das casas dos seus familiares mais próximos. A Cordoaria, a Foz e as
cidades de Aveiro e Coimbra foram alguns dos locais onde as cabeças dos
supliciados estiveram expostas depois de cravadas em altos postos do madeira.
O sistema penal daqueles tempos era
aterrador. Diremos mais: feroz e sanguinário com o recurso à tortura, a forcas
e a carrascos… Entretanto os cadáveres decapitados, tanto os do dia 7 de Maio
como os do dia 9 de Outubro, foram sepultados num terreno que ficava nas
traseiras do Hospital de Santo António, onde hoje está o serviço de urgência,
chamado o “adro dos enforcados “. Era ali que se enterravam os que morriam nas
forcas ou nas enxovias da cadeia. Não tinham direito a serem sepultados nos
interiores das igrejas, como era prática da época, porque não eram dignos do ir
para o céu…
Sete anos depois (1836) após o triunfo do
liberalismo, a Santa Casa da Misericórdia do Porto pediu autorização para
remover os cadáveres do adro dos enforcados a fim de os colocar num mausoléu e
assim prestar justa homenagem àqueles mártires da Pátria. A autorização chegou
mas colocou-se então uma questão: em que sitio exato do adro dos enforcados
estavam os restos mortais dos doze supliciados? Não foi difícil encontrar uma
solução.
O coveiro, um tal Joaquim Manuel ainda era
vivo e sabia onde havia enterrado os cadáveres dos mártires da Pátria. Além
disso não era difícil identificá-los: eram os que estavam sem cabeça. A
exumação fez-se. Os restos mortais dos também chamados mártires da Liberdade
foram metidos num mausoléu e levados para o átrio da igreja da Santa Casa, na
rua das Flores onde estiveram até 1878, ano em que foram solenemente
transladadas para o talhão da Misericórdia no cemitério do Prado do Repouso
onde ainda se encontram.
Na base da estátua equestre de D. Pedro
IV, que está no meio da praça da Liberdade, mandou a Câmara do Porto, em 1914,
colocar placas de bronze com os nomes dos doze Mártires da Liberdade gravados.»
OUTRAS NOTÍCIAS SOBRE O MESMO ASSUNTO
Nota 24: Na Gazeta
de Lisboa de 1829 foram publicados inúmeros artigos sobre este processo e
execuções. Foi até publicado todo o processo de investigação e acusação levado
a cabo pela Alçada do Porto durante sete meses. Aí são enumerados os actos e as
provas apresentadas contra cada um dos réus, todos acusados de rebelião e alta
traição contra o Estado. Os artigos foram publicados ao longo de diversos números,
entre Abril e Junho de 1829. Abaixo deixo indicados os números, datas e
páginas.
Efectivamente houve um movimento rebelde
que incluía militares, civis, juristas, comerciantes e membros do clero.
Publicaram na forma impressa uma proclamação dirigida antes de mais aos
cidadãos do Porto, mas também a toda a nação, comunicando que tinha sido
formada uma Junta Provisória de Governo (liberal), que em breve assumiria o
comando de todo o país. O levantamento rebelde deu-se a 16 de Março de 1828 e
foi rapidamente travado. Foram detidas cerca de 90 pessoas, 26 foram
condenadas, 7 foram executados a 7 de Maio de 1829 e 2 a 9 de Outubro do mesmo
ano.
*
Gazeta de Lisboa N.º 101, 30 de Abril
de 1829, p.413-414.
*
Gazeta de Lisboa N.º 109, 9 de Maio
de 1829, p.445.
*
Gazeta de Lisboa N.º 111, 12 de Maio
de 1829, pág. 453.
*
Gazeta de Lisboa N.º 112, 13 de Maio
de 1829, p.456-457.
*
Gazeta de Lisboa N.º 122, 25 de Maio
de 1829, p.497-498.
*
Gazeta de Lisboa N.º 129, 2 de Junho
de 1829, p. 526 – 528.
*
Gazeta de Lisboa N.º 130, 3 de Junho
de 1829, p. 530 – 534.
*
Gazeta de Lisboa N.º 131, 4 de Junho
de 1829, p. 538 – 540.
*
Gazeta de Lisboa N.º 132, 5 de Junho de 1829, p. 544 – 547.
*
Gazeta de Lisboa N.º 133, 6 de Junho de 1829, p. 550.
*
Gazeta de Lisboa N.º 133, 6 de Junho de 1829, p. 551-554.
*
Gazeta de Lisboa N.º 134, 8 de Junho de 1829, p. 556-560.
*
Gazeta de Lisboa N.º 135, 9 de Junho de 1829, p. 561-564.
*
Gazeta de Lisboa N.º 136, 10 de Junho de 1829, p. 566-567.
*
Gazeta de Lisboa N.º 137, 11 de Junho de 1829, p. 571-572.
*
Gazeta de Lisboa N.º 145, 22 de Junho de 1829, p. 602-603.
*
Gazeta de Lisboa N.º 147, 23 de Junho de 1829, p. 607.
PENAS
PÚBLICAS
Nota 25: As penas eram quase sempre aplicadas em
espaços públicos, não só as execuções mas outros castigos corporais, como forma
radical de desincentivar qualquer forma de divergência ou contestação,
sobretudo se o alvo era o Estado, as instituições públicas ou a Igreja. Estas
penas que hoje chocam a maior parte do mundo, embora persistam em países com
assento na ONU, eram comuns e prescritas pela lei vigente. E que lei?!
Abstenho-me de descrever aqui as
execuções, fica apenas uma pequena referência a três dos réus que não foram
executados mas condenados ao degredo. Mas antes disso, deviam ser sujeitos ao
açoitamento público. O primeiro réu mencionado é um negociante marroquino,
residente no Porto. Os restantes são gente simples. Vendo a breve biografia dos
executados, percebe-se que estes eram de estatuto social muito mais elevado ou
membros do exército, por serem considerados os verdadeiros instigadores da
rebelião.
«PORTUGAL.
Porto,
16 de Junho.
Os
4 Réos Samuel Sarfaty, Negociante; Ignacio José da Rocha, Capateiro; José
d'Azevedo, Estalajadeiro; e Luiz Lusano, Caixeiro de negocio, que forão condemnados
a diversos degredos, pelos crimes de Rebellião, sendo primeiro açoutados pelas
ruas publicas desta Cidade; sahirão hoje de manhã das Cadêas da Relação, a fim
de levarem os açoutes na fórma da Sentença, o que se executou indo os ditos 4
Réos guardados por alguns Soldados de Cavallaria e Infanteria de Policia,
varios Oficiaes de Justiça e o Algoz; caminhárão pela Porta do Olival, Calçada
dos Clerigos, Ortas, Praça Nova, Porta dos Carros, Rua das Flores, de S. João,
Ribeira, e Guindaes; e voltárão depois á Rua nova dos Inglezes, seguírão pelos
Banhos, Porta Nobre, e Miraguaya, onde se vestírão (por que hião nús da cinta
para cima), tendo sido açoutados pelo Algoz em diversos sitios do seu transito,
precedendo o pregão respectivo a seus crimes, e se recolherão outra vez ás
mesmas Cadêas. (Correio do Porto.)
Cf.
Gazeta de Lisboa N.º 147, 23 de Junho
de 1829, p. 607
CONTRA O
EXCESSO DE ZELO
Nota 26: É curioso que durante o tempo em que
decorria o processo mencionado na nota anterior, a coroa tivesse sentido
necessidade de advertir e legislar contra o excesso de zelo e a intolerância.
Veja-se o seguinte documento lavrado por ordem de D. Miguel, o rei absolutista,
irmão de D. Pedro IV, o rei liberal, publicado na Gazeta de Lisboa poucos dias
antes das execuções. Este documento levanta a questão de saber quem eram os
principais instigadores e executores das medidas mais radicais, uma vez que o
próprio rei D. Miguel apela à moderação…
«MINISTERIO
DOS NEGOCIOS ECCLESIASTICOS E DE JUSTIÇA.
El Rei Nosso Senhor tem sido informado,
que tanto nesta Capital, como em diferentes lugares das Provincias do Reino, se
tem posto em pratica muitos procedimentos criminaes, que não terião tido lugar
se o zelo excessivo das Authoridades, que os tem determinado, assim como daquellas,
que os tem praticado, não tivesse concorrido para induzillas humas vezes a
empregar os mesmos procedimentos fundados apenas em denuncias
anonymas, que quasi sempre derivão da vingança, e outras obscuras paixões
encobertas com apparencias de bem publico; e outras vezes a inquirir de
factos, que já não podião ser objecto de indagações judiciaes, ou porque se
achavão comprehendidos nos Regios Indultos,
que mandárão cessar no conhecimento de taes factos anteriores á sua publicação,
ou porque o mesmo conhecimento de nenhum modo podia sem excesso, e gravissima
confuzão, compreender se na execução das ordens, que somente
mandárão inquirir dos factos pelos quaes directa ou indirectamente se tivesse
concorrido para a rebelião, que se desenvolveo depois da venturosa
época, em que Sua Magestade Foi restituido a estes Reino, Tomando o Governo
delles: e Querendo o Mesmo Augusto Senhor por estas justissimas considerações accorrer
com providencias opportunas, que, attendendo e pondo termo á anxiedade das
familias, manifestem ao mesmo tempo a Sua Real Clemencia e desvelado cuidado
pelo bem dos Seus fieis vassallos, He Servido
Ordenar: 1.º que regulando V. S. as disposições, que deva fazer a bem da
Policia Geral do Reino, que lhe está confiada, pelas determinações do Alvará de
16 de Janeiro de 1780 em todos aquelles casos, que na conformidade do mesmo
Alvará excederem os limites da sua jurisdicção, V. S. dê conta por esta
Secretaria de Estado, para conhecimento e Resolução d'El Rei Nosso Senhor,
informando regularmente ainda daquelles, que tiver decidido por se achar para
isso authorizado: e 2.º que por simplices denuncias
maiormente sendo anonymas se não empreguem procedimentos, que só quadrão
ao crime verificado: huma denuncia não
produzindo mais que hum indicio, não pode sem gravissimo risco e perturbação
tomar o lugar de prova, posto que preste fundamento para precaução, e para
posteriores investigações do facto denunciado, que se desvanece ou fortifica
pelas mesmas investigações: Sua Magestade Quer que haja a mais constante
inflexibilidade contra os crimes provados, Ordenando muito positivamente a V.
S. que contra estes, seja depois de acontecidos, ou seja no fragrante delicto,
proceda e faça proceder com todo o rigor das Leis; mas
ao mesmo tempo he da Sua Soberana Intenção, que em quanto elles se não achão
verificados pelos meios que as Leis tem estabelecido, a acção da Policia
ostente, como corresponde aos fins da sua instituição, segurança, e amparo aos
bons contra os culpados, não empregando procedimentos que possão confundir huns
com os outros. Determina outro sim Sua Magestade que, devendo produzir
inteiro efeito os Regios Indultos concedidos por delictos anteriores á sua
publicação, por elles se não faça procedimento, nem ainda indagação alguma
judicial, como por diferentes vezes se tem
praticado em manifesta contradicção com os principios da Clemencia e da
politica, que persuadírão a publicação dos mesmos Indultos. O que tudo
de ordem d'El Rei Nosso Senhor participo a V. S. para sua intelligencia e
devida execução, e para que assim o faça executar pelos Magistrados, que lhe
são subordinados, dando-lhes conhecimento destas Resoluções do Mesmo Augusto
Senhor.
Deos guarde a V. S. Palacio de Queluz, em
30 de Abril de 1829. = João de Mattos e Vasconcellos Barboza de Magalhães. =
Senhor José Barata Freire de Lima.»
Gazeta de Lisboa
N.º 103, 2 de Maio de 1829, p.419
Memoria do feliz juramento da Constituição Portugueza nos faustosos
dias 24 de Agosto e 15 de Setembro de 1820.
IMAGENS:
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