terça-feira, 7 de maio de 2019

NAS ENTRELINHAS DA HISTÓRIA V


HERÓIS, ANTI-HERÓIS E QUIMERAS - VII
(Continuação do post anterior. Manteve-se quase sempre a grafia dos documentos originais.)

OUTROS MÁRTIRES DA PÁTRIA

Nota 23: No decurso da Guerra Civil entre Liberais e Absolutistas (1828-1834), foram cometidas atrocidades de parte a parte. De umas chegaram-nos mais notícias do que de outras, muitas vezes filtradas por um terrível maniqueísmo. Algumas dessas atrocidades foram eternizadas pela própria toponímia, como acontece com o Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa e no Porto. Os Mártires da Pátria do Porto, também designados como Mártires da Liberdades, foram executados em 7 de Maio de 1829, durante o período absolutista, como modo de amedrontar e aniquilar os rebeldes liberais. Como é evidente, o resultado foi o inverso. Perante a extrema crueldade das execuções, mais vozes se uniram aos liberais. As execuções do Porto têm contornos ainda mais sanguinários e tenebrosos do que as execuções de Lisboa (1817), talvez porque em 1829 os liberais tinham ganhado terreno e surgiam como uma ameaça muito maior. Para além dos 12 nomes gravados no bronze, na base da estátua de D. Pedro IV, houve outros condenados (26) e executados, mas como sempre acontece nem todos ficaram para a História. Sobre este tenebroso episódio, publicou Germano Silva (um incansável investigador da História do Porto) um artigo na revista Visão (30/9/2017). Fica aqui o texto desse breve artigo:
     «Os cadáveres não tinham cabeça…
     Na base da estátua equestre de D. Pedro IV, que está no meio da praça da Liberdade, mandou a Câmara do Porto, em 1914, colocar placas de bronze com os nomes dos doze Mártires da Liberdade gravados.
     Em 7 de Maio e 9 de Outubro de 1829, na antiga praça Nova das Hortas, hoje praça da Liberdade, foram enforcados, vítimas do absolutismo mas, sobretudo, do torvo ódio miguelista, doze ilustres personalidades afectas ao regime liberal de então: Joaquim Manuel da Fonseca Lobo, Francisco Silvério de Carvalho Magalhães Serrão, Francisco Manuel Gravito da Veiga e Lima, Manuel Luís Nogueira, José António de Oliveira Silva e Barros, Clemente da Silva Melo Soares de Freitas, Vitorino Teles de Meneses e Vasconcelos, José Maria Martiniano da Fonseca, António Bernardo de Brito e Cunha e Bernardo Francisco Pinheiro, estes dez executados no dia 7 de Maio; e mais dois: Clemente Morais Sarmento e João Henriques Ferreira Júnior, enforcados no dia 9 de Outubro daquele mesmo ano.
     O assunto é tétrico, temos que o reconhecer, mas vamos ter de continuar neste tom mórbido para melhor compreensão do assunto hoje trazido à crónica. Após os enforcamentos, e para total cumprimento das sentenças, o carrasco João Branco cortou as cabeças aos cadáveres a fim de serem expostas, durante três dias, como ordenava o tribunal, diante das casas dos seus familiares mais próximos. A Cordoaria, a Foz e as cidades de Aveiro e Coimbra foram alguns dos locais onde as cabeças dos supliciados estiveram expostas depois de cravadas em altos postos do madeira.
     O sistema penal daqueles tempos era aterrador. Diremos mais: feroz e sanguinário com o recurso à tortura, a forcas e a carrascos… Entretanto os cadáveres decapitados, tanto os do dia 7 de Maio como os do dia 9 de Outubro, foram sepultados num terreno que ficava nas traseiras do Hospital de Santo António, onde hoje está o serviço de urgência, chamado o “adro dos enforcados “. Era ali que se enterravam os que morriam nas forcas ou nas enxovias da cadeia. Não tinham direito a serem sepultados nos interiores das igrejas, como era prática da época, porque não eram dignos do ir para o céu…
     Sete anos depois (1836) após o triunfo do liberalismo, a Santa Casa da Misericórdia do Porto pediu autorização para remover os cadáveres do adro dos enforcados a fim de os colocar num mausoléu e assim prestar justa homenagem àqueles mártires da Pátria. A autorização chegou mas colocou-se então uma questão: em que sitio exato do adro dos enforcados estavam os restos mortais dos doze supliciados? Não foi difícil encontrar uma solução.
     O coveiro, um tal Joaquim Manuel ainda era vivo e sabia onde havia enterrado os cadáveres dos mártires da Pátria. Além disso não era difícil identificá-los: eram os que estavam sem cabeça. A exumação fez-se. Os restos mortais dos também chamados mártires da Liberdade foram metidos num mausoléu e levados para o átrio da igreja da Santa Casa, na rua das Flores onde estiveram até 1878, ano em que foram solenemente transladadas para o talhão da Misericórdia no cemitério do Prado do Repouso onde ainda se encontram.
     Na base da estátua equestre de D. Pedro IV, que está no meio da praça da Liberdade, mandou a Câmara do Porto, em 1914, colocar placas de bronze com os nomes dos doze Mártires da Liberdade gravados.»  

Enforcamento dos Mártires da Pátria, gravura de 1828.

OUTRAS NOTÍCIAS SOBRE O MESMO ASSUNTO

Nota 24: Na Gazeta de Lisboa de 1829 foram publicados inúmeros artigos sobre este processo e execuções. Foi até publicado todo o processo de investigação e acusação levado a cabo pela Alçada do Porto durante sete meses. Aí são enumerados os actos e as provas apresentadas contra cada um dos réus, todos acusados de rebelião e alta traição contra o Estado. Os artigos foram publicados ao longo de diversos números, entre Abril e Junho de 1829. Abaixo deixo indicados os números, datas e páginas.
     Efectivamente houve um movimento rebelde que incluía militares, civis, juristas, comerciantes e membros do clero. Publicaram na forma impressa uma proclamação dirigida antes de mais aos cidadãos do Porto, mas também a toda a nação, comunicando que tinha sido formada uma Junta Provisória de Governo (liberal), que em breve assumiria o comando de todo o país. O levantamento rebelde deu-se a 16 de Março de 1828 e foi rapidamente travado. Foram detidas cerca de 90 pessoas, 26 foram condenadas, 7 foram executados a 7 de Maio de 1829 e 2 a 9 de Outubro do mesmo ano.

* Gazeta de Lisboa N.º 101, 30 de Abril de 1829, p.413-414.
* Gazeta de Lisboa N.º 109, 9 de Maio de 1829, p.445.
* Gazeta de Lisboa N.º 111, 12 de Maio de 1829, pág. 453.
* Gazeta de Lisboa N.º 112, 13 de Maio de 1829, p.456-457.
* Gazeta de Lisboa N.º 122, 25 de Maio de 1829, p.497-498.
* Gazeta de Lisboa N.º 129, 2 de Junho de 1829, p. 526 – 528.
* Gazeta de Lisboa N.º 130, 3 de Junho de 1829, p. 530 – 534.
* Gazeta de Lisboa N.º 131, 4 de Junho de 1829, p. 538 – 540.
* Gazeta de Lisboa N.º 132, 5 de Junho de 1829, p. 544 – 547.
* Gazeta de Lisboa N.º 133, 6 de Junho de 1829, p. 550.
* Gazeta de Lisboa N.º 133, 6 de Junho de 1829, p. 551-554.
* Gazeta de Lisboa N.º 134, 8 de Junho de 1829, p. 556-560.
* Gazeta de Lisboa N.º 135, 9 de Junho de 1829, p. 561-564.
* Gazeta de Lisboa N.º 136, 10 de Junho de 1829, p. 566-567.
* Gazeta de Lisboa N.º 137, 11 de Junho de 1829, p. 571-572.
* Gazeta de Lisboa N.º 145, 22 de Junho de 1829, p. 602-603.
* Gazeta de Lisboa N.º 147, 23 de Junho de 1829, p. 607.

PENAS PÚBLICAS

Nota 25: As penas eram quase sempre aplicadas em espaços públicos, não só as execuções mas outros castigos corporais, como forma radical de desincentivar qualquer forma de divergência ou contestação, sobretudo se o alvo era o Estado, as instituições públicas ou a Igreja. Estas penas que hoje chocam a maior parte do mundo, embora persistam em países com assento na ONU, eram comuns e prescritas pela lei vigente. E que lei?!
     Abstenho-me de descrever aqui as execuções, fica apenas uma pequena referência a três dos réus que não foram executados mas condenados ao degredo. Mas antes disso, deviam ser sujeitos ao açoitamento público. O primeiro réu mencionado é um negociante marroquino, residente no Porto. Os restantes são gente simples. Vendo a breve biografia dos executados, percebe-se que estes eram de estatuto social muito mais elevado ou membros do exército, por serem considerados os verdadeiros instigadores da rebelião.

     «PORTUGAL.
Porto, 16 de Junho.
Os 4 Réos Samuel Sarfaty, Negociante; Ignacio José da Rocha, Capateiro; José d'Azevedo, Estalajadeiro; e Luiz Lusano, Caixeiro de negocio, que forão condemnados a diversos degredos, pelos crimes de Rebellião, sendo primeiro açoutados pelas ruas publicas desta Cidade; sahirão hoje de manhã das Cadêas da Relação, a fim de levarem os açoutes na fórma da Sentença, o que se executou indo os ditos 4 Réos guardados por alguns Soldados de Cavallaria e Infanteria de Policia, varios Oficiaes de Justiça e o Algoz; caminhárão pela Porta do Olival, Calçada dos Clerigos, Ortas, Praça Nova, Porta dos Carros, Rua das Flores, de S. João, Ribeira, e Guindaes; e voltárão depois á Rua nova dos Inglezes, seguírão pelos Banhos, Porta Nobre, e Miraguaya, onde se vestírão (por que hião nús da cinta para cima), tendo sido açoutados pelo Algoz em diversos sitios do seu transito, precedendo o pregão respectivo a seus crimes, e se recolherão outra vez ás mesmas Cadêas. (Correio do Porto.)

Cf. Gazeta de Lisboa N.º 147, 23 de Junho de 1829, p. 607

Kssssse! Pédro - Ksssse! Ksssse! Miguel!-Honoré Daumier, Paris, 1833. O espírito liberal representado pelo rei francês Louis- Philippe apoia D. Pedro e o Czar Nicolau da Rússia, representando a Santa Aliança apoia D. Miguel.


CONTRA O EXCESSO DE ZELO

Nota 26: É curioso que durante o tempo em que decorria o processo mencionado na nota anterior, a coroa tivesse sentido necessidade de advertir e legislar contra o excesso de zelo e a intolerância. Veja-se o seguinte documento lavrado por ordem de D. Miguel, o rei absolutista, irmão de D. Pedro IV, o rei liberal, publicado na Gazeta de Lisboa poucos dias antes das execuções. Este documento levanta a questão de saber quem eram os principais instigadores e executores das medidas mais radicais, uma vez que o próprio rei D. Miguel apela à moderação…

«MINISTERIO DOS NEGOCIOS ECCLESIASTICOS E DE JUSTIÇA.

     El Rei Nosso Senhor tem sido informado, que tanto nesta Capital, como em diferentes lugares das Provincias do Reino, se tem posto em pratica muitos procedimentos criminaes, que não terião tido lugar se o zelo excessivo das Authoridades, que os tem determinado, assim como daquellas, que os tem praticado, não tivesse concorrido para induzillas humas vezes a empregar os mesmos procedimentos fundados apenas em denuncias anonymas, que quasi sempre derivão da vingança, e outras obscuras paixões encobertas com apparencias de bem publico; e outras vezes a inquirir de factos, que já não podião ser objecto de indagações judiciaes, ou porque se achavão comprehendidos nos Regios Indultos, que mandárão cessar no conhecimento de taes factos anteriores á sua publicação, ou porque o mesmo conhecimento de nenhum modo podia sem excesso, e gravissima confuzão, compreender se na execução das ordens, que somente mandárão inquirir dos factos pelos quaes directa ou indirectamente se tivesse concorrido para a rebelião, que se desenvolveo depois da venturosa época, em que Sua Magestade Foi restituido a estes Reino, Tomando o Governo delles: e Querendo o Mesmo Augusto Senhor por estas justissimas considerações accorrer com providencias opportunas, que, attendendo e pondo termo á anxiedade das familias, manifestem ao mesmo tempo a Sua Real Clemencia e desvelado cuidado pelo bem dos Seus fieis vassallos, He Servido Ordenar: 1.º que regulando V. S. as disposições, que deva fazer a bem da Policia Geral do Reino, que lhe está confiada, pelas determinações do Alvará de 16 de Janeiro de 1780 em todos aquelles casos, que na conformidade do mesmo Alvará excederem os limites da sua jurisdicção, V. S. dê conta por esta Secretaria de Estado, para conhecimento e Resolução d'El Rei Nosso Senhor, informando regularmente ainda daquelles, que tiver decidido por se achar para isso authorizado: e 2.º que por simplices denuncias maiormente sendo anonymas se não empreguem procedimentos, que só quadrão ao crime verificado: huma denuncia não produzindo mais que hum indicio, não pode sem gravissimo risco e perturbação tomar o lugar de prova, posto que preste fundamento para precaução, e para posteriores investigações do facto denunciado, que se desvanece ou fortifica pelas mesmas investigações: Sua Magestade Quer que haja a mais constante inflexibilidade contra os crimes provados, Ordenando muito positivamente a V. S. que contra estes, seja depois de acontecidos, ou seja no fragrante delicto, proceda e faça proceder com todo o rigor das Leis; mas ao mesmo tempo he da Sua Soberana Intenção, que em quanto elles se não achão verificados pelos meios que as Leis tem estabelecido, a acção da Policia ostente, como corresponde aos fins da sua instituição, segurança, e amparo aos bons contra os culpados, não empregando procedimentos que possão confundir huns com os outros. Determina outro sim Sua Magestade que, devendo produzir inteiro efeito os Regios Indultos concedidos por delictos anteriores á sua publicação, por elles se não faça procedimento, nem ainda indagação alguma judicial, como por diferentes vezes se tem praticado em manifesta contradicção com os principios da Clemencia e da politica, que persuadírão a publicação dos mesmos Indultos. O que tudo de ordem d'El Rei Nosso Senhor participo a V. S. para sua intelligencia e devida execução, e para que assim o faça executar pelos Magistrados, que lhe são subordinados, dando-lhes conhecimento destas Resoluções do Mesmo Augusto Senhor.
     Deos guarde a V. S. Palacio de Queluz, em 30 de Abril de 1829. = João de Mattos e Vasconcellos Barboza de Magalhães. = Senhor José Barata Freire de Lima.»

Gazeta de Lisboa N.º 103, 2 de Maio de 1829, p.419

Memoria do feliz juramento da Constituição Portugueza nos faustosos 
dias 24 de Agosto e 15 de Setembro de 1820.




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