DIAS SINGULARES: maio 2014

PERSONA – Seis peças numa / PERSONA – Six plays in one

Representação pelos alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo (Interpretação), 12.º ano – turma 13, da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, no dia 3 de Abril de 2014. Encenação de Victor Sezinando.

Após três anos de grande dedicação e trabalho, mais um grupo de alunos (12.º 13) do Curso Profissional de Artes do Espectáculo (Interpretação) está prestes a terminar a sua formação inicial nesta área e manifestamente aptos a prosseguir o seu caminho. Porém, antes do final (no mês de Julho), ainda terão de preparar as suas P.A.P. (Prova de Aptidão Profissional) e mostrar os seus talentos individualmente.

O espectáculo Persona, com que nos presentearam no final do 2.º período (3/4/2014), foi uma espécie de longa despedida que deixou no olhar o trave de saber a pouco. Mas foi também uma convincente demonstração do talento, trabalho e ecletismo destes jovens intérpretes.

O espectáculo Persona, concebido e encenado por Victor Sezinando, é uma espécie de colagem de seis peças diferentes, percorrendo caminhos tão díspares como o da tragédia clássica (Édipo de Sófocles), a tragédia shakespeariana (Macbeth), o auto vicentino (Auto da Barca do Inferno), a comédia de Molière (O Avarento) ou a comédia popular contemporânea (A Ópera dos Pobres, teatro de revista e Nelo e Dália, sketch de Herman José).

Este espectáculo permitiu ao espectador deambular por mundos muito distintos e partilhar um leque de emoções e vivências humanas que são quase um retrato completo do mundo. Como diria D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), “o Mundo é comédia”, mas é também sonho e ilusão, como diria Calderón de la Barca (1600-1681), fantasia e tragédia.

ÉDIPO REI (Sófocles, cerca de 427 A.C.)

Em Édipo sentimos pairar a mão implacável do destino (fatum), seja ele o que for. A trama sinuosa das circunstâncias está montada e a vontade humana nada pode alterar nem vislumbrar a catástrofe e a dor que se escondem algures no futuro. O parricídio ou o incesto não são escolhas livres, são fatalidades pré-determinadas. Perante as circunstâncias, que escapam às escolhas humanas conscientes, e conduzem a um desenlace fatal, somos obrigados a questionar-nos sobre o verdadeiro sentido e os limites do livre arbítrio. O que posso escolher? Até onde posso escolher e moldar o meu destino? As circunstâncias são afinal a mão concreta e hercúlea do destino, um fatum que é simultaneamente metafísico e bem real. E a tomada de consciência da verdade é afinal a principal e verdadeira tragédia. Tão trágico como não ter a liberdade de fazer uma verdadeira escolha é a descoberta da verdade oculta. A dor final e aniquiladora não é apenas provocada pelos actos cometidos, mas também pela consciência de que essa dor é tão inapagável como a realidade consumada.

A este propósito escrevi no vídeo que ilustra este post:

«A dor mais profunda vive nas mãos poderosas do impossível. Impossível cegar os olhos da mente. Impossível apagar a dor. A realidade não pode ser desfeita…»

Quando as emoções são tão importantes como as acções, como é o caso de Édipo, a expressão facial e do olhar são ainda mais relevantes. Os jovens intérpretes souberam transmitir, de modo natural e genuíno, a profundidade e intensidade das emoções das personagens que lhes couberam. E moveram-se num palco, adequadamente negro e quase despojado de adereços, como se carregassem sobre os próprios ombros o peso invisível de um destino inelutável. Será que tudo isto é aprendido e ensaiado? Creio que uma grande parte vem lá de dentro. Cada ser é muitos seres e o actor, tal como o poeta, é ainda mais… Afinal, é isso mesmo que é ser “persona”…

AUTO DA BARCA DO INFERNO (Gil Vicente, 1516)

Habitualmente a literatura escatológica não provoca o riso. Mas o mestre Gil (Gil Vicente) não queria apenas falar da morte, do julgamento das acções humanas ou do destino da alma. Queria falar muito mais dos vivos do que dos mortos e queria fazê-lo de modo crítico e bem-humorado: Ridendo castigat mores / Rindo se castigam os costumes. Crítica e humor, os dois ingredientes fundamentais da sátira vicentina, estão bem presentes neste auto alegórico, também catalogado como auto de moralidade.

Da galeria de tipos sociais e morais que chegam às margens do rio do tempo e do esquecimento para embarcar com o Diabo ou o Anjo, vimos e rimos com o Parvo (que é mais um tipo psicológico marcado pelo cómico de palavra), o Frade pouco devoto e muito amigo de raparigas e Brízida Vaz, a desabrida e astuta agente da prostituição.

A fleuma irónica do Diabo foi quase delirante e a expressão corporal, e sobretudo facial, do Parvo mostrou bem que de Parvo pouco tinha, sobretudo na contracena com o Diabo e Brízida Vaz. O Diabo surge como um observador omnisciente e convicto que sabe de antemão quem irá parar à sua barca. O fato vermelho aveludado ficava-lhe “a matar” e matou, sem apelo nem agravo, as esperanças de lhe escaparem o Frade folião e a profissional da sedução. O Parvo abriga-se, quer perante o Diabo quer perante o Anjo, sob a sua relativa idiotice. É um espírito simples que percebe do mundo o essencial e julga ele mesmo, na sua livre simplicidade e linguagem grosseira, os actos dos que são aparentemente sãos e equilibrados. O Anjo, coberto pela imaculada brancura das suas vestes, manteve o ar solene, distante, quase indiferente perante Brízida Vaz e o Frade, mas deixou assomar um condescendente e bondoso sorriso quando se dirigiu ao Parvo. Há por aí muitos Parvos de natureza bem diferente. Para os tornar personagens de teatro, o mestre Gil teria de criar um Parvo bem diferente, um espertalhaço vigarista que apenas se faz passar por parvo quando é julgado pelos seus actos.

MACBETH (Shakespeare, 1.ª ed. 1623)

O fatum está presente de novo, mas aqui a desmedida ambição e o livre arbítrio são os verdadeiros tecelões da tragédia. A ambição de poder traz mais do que poder. Traz consigo um rasto de morte que culminará no suicídio de Lady Macbeth, aparentemente uma das instigadoras da violência e da desgraça. O suicídio, não revelado objectivamente, antes adivinhado pelo espectador, surge como uma autopunição, um derradeiro acto de consciência que nada poderá apagar ou remediar.

O único sentimento puro e profundo de Macbeth, o amor pela mulher, e a dor pela sua perda, não o conduz, porém a nenhum acto de consciência. Perante as atrocidades cometidas, não sente qualquer arrependimento. Antes, revela a revolta contra a falta de sentido da própria vida que, num ápice, lhe rouba a glória, o poder e a mulher amada. A falta de sentido da vida que descobre subitamente e denuncia com raiva e amargura é afinal o resultado da consciência da perda. O único verdadeiro acto de consciência provém do amor, que resistiu e persistiu por entre a trama das mortes que lhe ensanguentam as mãos mas não a consciência. O que lhe parece injusto e absurdo é a perda da mulher amada, não os actos hediondos cometidos.

As palavras proferidas por Macbeth, após ter conhecimento da morte da mulher, são provavelmente a melhor síntese de toda a peça, palavras imbuídas de um niilismo e uma angústia existencial inquietantes:

«She should have died hereafter.
There would have been a time for such a word.
Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow
Creeps in this petty pace from day to day
To the last syllable of recorded time.
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle.
Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.»

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«Ela deveria ter morrido mais tarde.

Teria havido um tempo para tal palavra.

Amanhã, e amanhã, e amanhã

Rasteja nestes passos insignificantes dia após dia

Até à última sílaba do tempo existido.

E todos os nossos ontens iluminaram o caminho

Dos tolos para o pó da morte. Apaga-te, apaga-te, vela efémera.

A vida é apenas uma sombra errante, um pobre actor

Que suporta e desgasta a sua hora em cima do palco,

E depois não é mais ouvido. É uma história

Contada por um idiota, cheia de som e fúria,

Sem significado algum.»

(tradução imperfeita e livre feita por mim mesma)

Macbeth, a peça maldita, que alguns nem ousam nomear ou representar, não é fácil nem para os actores mais experientes. Por isso mesmo, foi ainda mais surpreendente ver a maturidade com os jovens intérpretes vestiram sem medo ou artificialidade a pele humana destes seres amoralmente densos, implacáveis e frágeis ao mesmo tempo.

O AVARENTO (Molière, 1668)

O apego doentio aos bens materiais de um velho mesquinho (Harpagon), que desconfia de tudo e todos, incluindo dos próprios filhos (Cléante e Élise), gera uma série de peripécias e conflitos de que, nesta representação, vimos um apontamento significativo. No rosto do actor, vimos a desconfiança, a raiva e a cólera, o ensimesmamento e o egoísmo, a teimosia inflexível e a crueza da ganância. O deambular nervoso pelo palco, a morte metafórica causada pela perda material (o cofre cheio de ouro) e a súbita ressurreição, operada pela sua recuperação e outros proventos materiais, mostram acima de tudo como o materialismo e o egoísmo extremos apenas conduzem ao deserto da solidão.

No final, a anagnórise conduz ao reencontro de uma família separada pelo infortúnio (o naufrágio muitos anos antes) e o amor vence todas as adversidades. Harpagon perde tudo, excepto o dinheiro. Até o interesse que nutre por Mariane (verdadeiramente amada por seu filho Cléante) é apenas mais um lance num jogo puramente material; tudo pode ser comprado e possuído… Pura ilusão! Nem a consciência, nem a liberdade, nem os afectos podem ser comprados ou possuídos porque a sua essência nada tem de material.

Outra ilusão cai por terra antes do desenlace. As classes sociais não se apagam facilmente, nem mesmo numa trama teatral. O palco apenas imita a vida e há ideais e sonhos que nem no palco perduram por muito tempo. O criado (Valère) e Mariane (a rapariga supostamente órfã) são afinal irmãos, nobres e ricos. E aqueles que foram “felizes para sempre”, se é que o foram, foram-no apenas no seu reduto social. O regresso à sua condição social inicial não surge como um acto de justiça, antes como uma afirmação de que a estratificação social é tendencialmente inalterável.

Do desempenho dos actores, pode dizer-se que conseguiram transmitir todas as ideias sérias que se escondem sob a comédia sem deixarem de nos fazer sorrir.

ÓPERA DOS POBRES (teatro de revista à portuguesa)

NELO E DÁLIA (sketch the Herman José)

Uma modesta atmosfera kitsch envolve os dois pares que conversam alternadamente em dois pontos do palco. Em ambos os casos, desmonta-se o ridículo ingénuo ou pretensioso das máscaras que separam o parecer do ser.

O casal que vai à ópera para ver/ouvir Nabucodonosor, sem gostar e nada perceber de ópera, é apenas uma caricatura do “ser” que não consegue “parecer”. São risíveis aquelas personagens, mas também comoventes. Não conseguem nem podem deixar de ser quem são. São, por isso mesmo, genuínos e humanos. São como cegos ofuscados por um esplendor que não podem entender. A sua cegueira é de natureza social e cultural. A sua incultura não lhes permite fruir verdadeiramente o que vêem e ouvem, por isso resta-lhes apenas a tentativa tosca e infrutífera de parecer o que não são. Tentam imitar poses e gestos estereotipados, usam máscaras cujo semblante e significado desconhecem; resta-lhe ser quem são e ainda bem que são assim.

Um dos calcanhares de Aquiles da cultura, dita erudita, é o excessivo convencionalismo e o hermetismo de que se reveste, qual muralhas erguidas entre o cidadão comum e o génio do espírito criador. A arte e acultura pertencem a todos. Quando a cultura dita erudita sair do seu reduto e se despojar de artificialismos e formalismos, poderá chegar mais longe ou mais perto. Poderá descer do seu pedestal e ocupar as ruas ou entrar nas casas dos que a desconhecem.

Nos diálogos de Nelo e Dália, o ridículo é desmascarado pela própria Dália, a mulher instruída e emancipada, que constantemente corrige as barbaridades proferidas convicta e presunçosamente por Nelo. Nelo é uma espécie de “opinador” profissional que tem sempre algo a dizer sobre tudo e todos. Os seus juízos são quase sempre depreciativos e fundados em argumentos que mais parecem caprichos petulantes. A incultura de Nelo não é comovente precisamente por ser arrogante e histriónico. Dália tenta sempre repor a verdade e clarificar as situações com informação objectiva e argumentos que provêm sobretudo do bom senso. Dália é como uma persistente professora que tenta ensinar um aluno que não quer aprender. Uma grande parte do efeito cómico provém precisamente dessa tentativa infrutífera. Nelo é um inculto vaidoso por opção e assim quer permanecer; prefere as suas opiniões sarcásticas e estapafúrdias à informação e à cultura. É que aprender e saber dá trabalho e Nelo é mais um ocioso e parasita centrado no seu umbigo. O mundo começa e acaba nas suas opiniões ridículas.

Ambos os pares de jovens intérpretes que contracenaram nestes sketches humorísticos desempenharam irrepreensivelmente os seus papéis. Ao seu modo, fizeram-nos rir e reflectir. No palco, deram corpo ao lema do mestre Gil (Ridendo castigat mores), personificando exemplarmente modos de ser e viver em sociedade.

Tal como nos espectáculos anteriores a que assisti, resta-me fazer a todos —jovens intérpretes e professores / encenadores — a devida vénia e desejar-lhes toda a felicidade do mundo, sobre o palco e nos caminhos da vida.

NOTA: Este grupo de alunos (12.º 13) foi seleccionado no âmbito do festival de teatro PANOS para representar a peça Eles São Mesmo Assim?, de Lucinda Coxon, na Culturgest, no passado dia 17 de Maio. Não me surpreendeu que tenham sido seleccionados entre mais de 30 grupos teatrais (escolas e companhias de amadores). O grau de mestria da sua interpretação indiciava que estariam certamente entre os melhores. Por esta razão, estão todos redobradamente de parabéns.

Culturgest / Festival PANOS (Teatro D. Pedro V): http://www.culturgest.pt/arquivo/2014/05/panos.HTML
Link para o álbum de fotografias

Persona - Six Plays in One, played by the theatre students of the Secondary School D. Pedro V, Lisbon, Portugal, 3/4/2014. Stage director: Victor Sezinando. Photography by São Ludovino.

Persona - Six Plays In One - Macbeth, played by the theatre students of the Secondary School D. Pedro V, Lisbon, Portugal, 3/4/2014,
photography by São Ludovino.

Persona - Six Plays In One - Oedipus, played by the theatre students of the Secondary School D. Pedro V, Lisbon, Portugal, 3/4/2014,
photography by São Ludovino.

Persona - Six Plays In One - Play of the Ship of Hell, played by the theatre students of the Secondary School D. Pedro V, Lisbon, Portugal, 3/4/2014, photography by São Ludovino.