DIAS SINGULARES: dezembro 2017

É Natal! Às três pancadas…, texto de Ângela Ferreira, adaptado e encenado por Gonçalo Costa, interpretado pelos alunos de Artes do Espectáculo – Interpretação, da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa. Ensaio de 22/11/2017.

Esta é uma peça leve e simples dirigida a todos os públicos, sobretudo o público infantil. Em peças como esta, o mais importante não é o novelo da história, é antes o espírito de alegria e o bom humor que se tornam contagiantes. Mais uma vez se provou que, por vezes, pequenas peripécias bastam para fazer uma grande festa.

O facto de algumas personagens serem animais (renas) e de parecer que tudo vai correr mal também ajudam a criar tensão e boa disposição, porque no final tudo acaba bem, como em qualquer peça de Natal. E ainda bem!

Além do Pai Natal e da Mãe Natalina, também passaram pelo palco professores de dança e até um sargento durão. Todos com o objectivo de educar as renas e devolver-lhes a energia e o entusiasmo perdidos. Todos parecem falhar mas tudo acaba por resolver-se; as renas dispõem-se a puxar o trenó e lá vão todos fazer a distribuição de presentes. Não há miúdo que não goste de uma história simples como esta, e gostaram, eles e os graúdos.

Um pouco em jeito de contraponto à felicidade perfeita, porque nunca é perfeita, escrevi duas versões de uma mesma história, ambas sobre uma criança que não queria nascer. Afinal, o Natal tradicional, e não o Natal comercial, também é a história de uma criança, uma criança bem diferente das outras. Esta história não é sobre essa criança mas talvez pudesse ser…

Texto
Ângela Ferreira

Adaptação
Gonçalo Costa

Encenação
Gonçalo Costa

Interpretação
Ana Rita Rolo
Gonçalo Costa
Miguel Noronha
Leonardo Miguel
Mariana Pereira
Matilde Gomez
Renata Pessoa
Ruth Máximo
Yolanda Almeida

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A CRIANÇA QUE NÃO QUERIA NASCER

(História breve - versão quase séria)

A mãe esperava, o pai aguardava, a família conjecturava e todos os outros tinham algo a dizer sobre a Criança que ainda não tinha nascido.

A Criança, que ainda não tinha nascido, ouvia atentamente, sem ver tudo via muito, sentia ainda mais e pensava imenso. Sobretudo, a Criança interrogava-se sobre o que viria a seguir.

Uns contavam as semanas, os dias, o tempo que faltava, o tempo que viria, o tempo que passaria e a Criança interrogava-se. Tempo, pensava, parece estar em toda a parte, parece uma coisa enorme sem dono, fugidia e sem princípio nem fim, todos falam dele mas geralmente discordam… Não sei se quero conhecer esse grande senhor ou talvez já conheça e não o saiba…

Os avós pareciam rejuvenescidos como se tivesse chegado um novo tempo, uma Primavera que faz renascer as células, os neurónios e os sonhos. Falavam dos projectos adiados ou perdidos deste ou daquele e viam na nova Criança a consumação de todos os anseios e de tudo o que ficara por realizar ao longo de gerações.

A Criança inquietava-se e interrogava-se. Ainda nem tinha nascido e já sentia sobre os ombros o peso imenso dos desejos alheios. Por que hei-de eu ser tudo aquilo, ideias e projectos que nem sequer passaram pela minha pequena cabeça? De dia para dia, cada vez sinto menos vontade de nascer, dizia a Criança tristemente aos seus botões futuros, que por enquanto nem existiam.

E havia ainda aqueles que depositavam na Criança toda a esperança do mundo e a história futura da Humanidade. Será um político, um filósofo, um ideólogo, um pastor de massas, diziam alguns em tom meio circunspecto meio lunático.

Tantas expectativas asfixiavam a Criança, faziam o seu coração de passarinho entrar em taquicardia, ora batia como uma locomotiva supersónica ora parecia parar. Não queria, decididamente não queria nascer, não queria ser nada daquilo. E se nascesse, se não pudesse mesmo evitá-lo, seria diferente de tudo aquilo. Nasceria do tamanho de uma centelha de luz e passaria os seus dias a espalhar centelhas de luz por toda a parte.

Muito tempo depois, muito depois do que se esperava, a Criança nasceu num dia imprevisto, mas ninguém conseguia vê-la. Apenas a mãe conseguiu vê-la, por breves instantes. Viu-a daquela forma que só as mães conseguem ver. E a Criança sorria para ela como só as Crianças sabem sorrir para as mães. Era uma magnífica e luminosa centelha. Ficaram todos desiludidos porque não viam criança alguma e a espera iria continuar. Em segredo, a Criança foi crescendo, vieram irmãos, que também cresceram. Alguns cumpriram os sonhos dos outros, outros descobriram os seus próprios sonhos ao longo do caminho. Em todos os momentos, a minúscula Criança, que ninguém viu nascer, esteve sempre lá.

São Ludovino, 21/12/2017

A CRIANÇA QUE NÃO QUERIA NASCER

(História breve - versão quase divertida)

A discussão centrava-se agora sobre o nome. Que nome dariam à Criança que estava prestes a nascer? Como lhe chamariam todos para o resto da vida, gostasse ou não gostasse, quisesse ou não quisesse? Perante tanta discórdia e tanta cacofonia, a Criança pensou que não lhe apetecia nada nascer. A Criança estava intrigada, baralhada com tantos nomes, começava até a baralhar o significado das poucas palavras que já conhecia. Os nomes misturavam-se com as outras palavras e dava por si a pensar “Tenho Franscisca” quando tinha fome, “Tenho Catarina” quando tinha calor ou “Vou Dário” quando queria dormir, o que acontecia durante a maior parte do tempo.

Chegou o Natal, coisa inédita e espantosa para a Criança, e sentiu-se uma certa acalmia na discussão dos nomes. Agora havia outras palavras que repetiam amiúde, umas brilhavam muito e confundiam-se com as luzes da árvore que alguém tinha plantado na sala, algumas eram compridas como um comboio de letras, outras tão pequeninas e fugidias que mal conseguia ouvi-las. Tantas palavras novas eram motivo de grande interesse e diversão. Entretinha-se a repetir algumas, adivinhava-lhes o som, seguia-lhes o ritmo e vislumbrava aqui e ali imagens que as palavras lhe sugeriam. E essa foi provavelmente a primeira e a melhor das brincadeiras que descobriu.

Às vezes, acordava após uma longa sesta e o que mais lhe apetecia era repetir palavras. Ouvia palavras como “feliz” e repetia à sua maneira, de forma límpida ou com variações inesperadas, ”Feliz… Petiz… Giz…”; “Abraço… Abarco… Traço…”…

Um dia ouviu uma palavra quase longa, tinha apenas três sílabas mas nove letras ─ Salvador ─ e tentou pronunciá-la. Não conseguiu à primeira, tinha de dividir a palavra em duas “Salva… Dor”. Não sabia o que significava nem a totalidade nem cada uma das metades da palavra. E ainda bem, porque é possível ver as coisas sob muitas perspectivas, e algumas nada têm de feliz. Salvar a dor, salvar da dor, salvar com dor, a dor é salva, a dor salva, a dor já foi salva, continua intacta ou deixou de existir…

Mas a Criança não se perdia nessas conjecturas, apenas repetia palavras, dividia palavras, colava-as, mimava-as e guardava-as ciosamente na sua pequena cabeça porque era uma brincadeira fantástica. Começava a pensar que nascer talvez fosse divertido, lá fora havia tantas palavras para aprender, trocar, renovar, guardar. E decidiu nascer.

Corria um Inverno rigoroso, estava um frio de rachar e o céu mais cinzento do que azul. A Criança nada disto podia ver no quarto aquecido onde nasceu. Mas sentiu um arrepio percorrer-lhe a pele, os olhos brilhantes acabados de abrir, a cabeça entontecida com a brusquidão da entrada no mundo.

Havia no ar qualquer coisa que não era tão bela como as palavras, qualquer coisa que não conseguia nomear, qualquer coisa a que não conseguia escapar, qualquer coisa que tinha de fazer. Por razões misteriosas, que nunca conseguiria desvendar, a única coisa que lhe saiu silenciosamente dos lábios foi “Salvador”. Talvez porque se lembrava bem dessa palavra, passara tanto tempo a brincar com ela, ou talvez fosse apenas porque foi assim que a mãe lhe chamou mal nasceu. Apesar do arrepio inicial, que nunca o abandonou por completo, decidiu ser Salvador. E agora, já crescido e senhor de muitas mais palavras, apenas dizia de si para si “Mas por que é que nunca me deram um apelido? Sinto-me sozinho… Talvez esse seja o meu apelido… Salvador Sozinho… Talvez todos os Salvadores estejam sozinhos… Mas não estava. Nesse preciso instante, num local distante do Mundo, outra Criança que não queria nascer, assumia também o seu nome… Salvador.

São Ludovino, 21/12/2017

1.º ENSAIO