À
Procura De Um Pinheiro, ópera ligeira / Musical de José
Carlos Godinho, interpretado pelos alunos do Curso Profissional de Artes do
Espectáculo – Interpretação, da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 18 de
Dezembro de 2018. Encenação de
Victor Sezinando. Vídeo e fotografia: São Ludovino.
Looking For A Pine Tree, musical by José Carlos Godinho, performed by the
students of Performing Arts of Secondary School D. Pedro V, Lisbon, December
18, 2018. Stage Direction: Victor Sezinando. Video &
photography by São Ludovino.
Em vez de um artigo sobre este musical,
fica aqui uma história que foi inspirada por ele. Parabéns a todos pelo
excelente trabalho! Aquelas árvores ululantes são tão impossíveis de esquecer
como a felicidade infantil daqueles que procuram e encontram o seu pinheiro
perfeito. Todos os pinheiros são perfeitos, sobretudo quando têm as raízes bem
presas à terra e não são devoradas pelo fogo nem pela avidez humana.
Elenco
Adriana
Loureiro
Ana
Beatriz Martins
Beatriz
Carvalho
Cátia
Castanheira
Diana
Sardinha
Diogo
Pereira
Filipa
Lopes
Íris
Sena
Joana
Jorge
João
Duarte
Maria Mendes
Mariana Correia
Nádia Antunes
Rafaela Alves
Raquel Simões
Samira Baldé
Sandro Dias
Sara Carvalho
Sofia Pedrosa
Tatiana Cavalheiro
Encenação
Victor Sezinando
Texto
À Procura De Um Pinheiro
José Carlos Godinho
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O QUE PRENDE À TERRA
As árvores da floresta estavam todas
reunidas como estão sempre. Ligadas pelas raízes e pela química invisível que
sustenta sob a terra toda a vida que vive à superfície. Claro que também
estavam ligadas por afinidades mais visíveis como a espécie, a família, a forma
das folhas ou os hábitos sazonais que mantêm há milhões de anos.
A árvore mais antiga, a árvore-mãe, já
meio carcomida e curvada, mas com raízes ainda muito fortes, as mais fortes de
toda a floresta, deu início à reunião e tomou a palavra. Todas as outras
árvores se inclinaram ligeiramente e ouviram atentamente. Todas, menos os
eucaliptos. Esses voltaram as costas e começaram a assobiar uma canção da moda.
A árvore antiga notou o ostensivo alheamento, mas mesmo assim falou com
determinação.
− Somos tantas que seria difícil alguém
contar-nos. Mas já fomos mais, mais diversas, mais frondosas e resistentes. O
que mais me entristece é que agora não seja assim porque algumas de nós
decidiram tomar a terra que era repartida por tantas outras. Crescem muito
iguais e certinhas e parece que não se importam nada por terem uma vida curta…
Alguns eucaliptos voltaram-se para ela por
momentos com ar de poucos amigos e voltaram novamente as costas. Uns limavam as
unhas, outros sacudiam as folhas secas, outros riam ao olharem a cordata
assembleia. E a árvore antiga prosseguiu.
− Tornaram-se demasiado iguais aos humanos
destes tempos incertos. Ainda vos lembrais dos humanos que nos amavam como suas
iguais, que nos veneravam mesmo quando nos cortavam para alimentar as fogueiras
ou construir as suas casas. Davam-nos nomes belos e consagravam-nos dias para
estarem entre nós. Ainda me lembro de alguns desses nomes e algumas ainda estão
entre nós… Prelinda, Plomino, Selina, Luni, Hélion…
Algumas árvores anuíram com um sorriso e
entreolharam-se.
− Nunca as excluímos do nosso seio. Têm
aqui um lugar como todas nós. Mas este espaço começa a escassear. Nós
perduramos através das décadas e dos séculos, nunca usurpámos o lugar de
ninguém. O espaço que ocupávamos há cem anos é o mesmo que ocupamos hoje. As
ervas e os arbustos em redor cresceram, multiplicaram-se, pereceram e voltaram
a crescer. Nós perdurámos, escapámos ao fogo, ao corte da serra, ao calor
abrasador e ao frio extremo, renascemos por fora, estação após estação,
mantivemos a terra viva e saudável e purificámos o ar que nos rodeia e todos
respiram. Penso que já demos muito e nunca exigimos nada em troca excepto
permanecer aqui com o céu e as aves como eternos companheiros.
Mas nos últimos tempos os perigos
aumentaram, muitas de nós foram consumidas pelo fogo que não veio da natureza
mas da perfídia humana. E aqueles companheiros e companheiras que nos voltaram
as costas por ordem humana tornaram-se tão perigosos como as mentes e as mãos
humanas. Que faremos neste tempo tão incerto…?
Hélion, um carvalho secular, ergueu um
ramo alto para pedir a palavra. Olhou em volta e falou na direcção dos
eucaliptos.
− Antes de todos, é para vós que falo pois
pertenceis ao mesmo reino que nós, tal como as ervas, as flores ou os arbustos.
Temos vivido sempre em paz e harmonia. As guerras são uma coisa dos humanos, as
revoluções são o culminar da esperança ou do desespero, a ruptura um fim
irreversível. Sempre apelámos à paz, à harmonia e renovação sem perda ou
aniquilação dos nossos semelhantes. Aqui e além, os humanos já alteraram esta
harmonia inúmeras vezes e nós repusemos o equilíbrio mesmo quando nos encontrávamos
à beira do abismo.
Por isso, penso que neste momento só nos
resta apelar à rebelião, uma revolta universal e consensual. Creio, no entanto,
que não devemos ser nós a rebelar-nos… contra quem o faríamos e como…?
Luni interrompeu Hélion, não apenas para
concordar com o que ele já dissera mas para sugerir um caminho.
− Também já meditei longamente sobre este
assunto. Também entrevi múltiplos caminhos e tentei vislumbrar o que haveria
mais adiante em cada um deles. Quando procurei nos humanos a solução pouco
consegui vislumbrar. Apenas dúvidas, hesitações e resultados imprevisíveis. A
solução tem de vir de nós e nunca contra nós. O preço a pagar é elevado, muitas
de nós terão de perecer, recusar-se a nascer e crescer. E sois vós, eucaliptos,
que tendes nas vossas mãos o destino de todas nós. Sois tão desdenhosas
connosco, esquecestes as vossas origens e os laços comuns que nos unem. Mas
servis, de forma tão cega e subserviente, os desígnios humanos.
Nesse momento a árvore antiga ergueu-se
ainda mais sobre as restantes, como se uma réstia de juventude subisse
subitamente das veias aos ramos mais altos. Entendeu inteiramente o alcance das
palavras de Luni. Voltou-se para os eucaliptos e declarou.
− Sim, não somos nós mas vós, quem deve
rebelar-se. Não contra nós mas contra os que fizeram de vós meros instrumentos
de um mundo a que não pertenceis. Sois escravos sem honra nem glória. Acabais,
mais cedo ou mais tarde, nas lixeiras, longe da terra que vos deu a vida, sem
raízes nem laços que vos prendam a nada. Servis os interesses humanos porque
repudiastes as vossas origens e ninguém pode servir dois amos tão distintos ao
mesmo tempo. Entre nós não há amos nem escravos. Entre nós os “amos” são os que
amam. Entre os humanos, “amos” são os que se amam apenas a si mesmos. Mais dia,
menos dia, esse estranho elo de escravidão também acabará. Eles deixarão de
precisar de vós porque inventaram qualquer coisa nova. E, então, quem vos
receberá no seu seio? Sei que conheceis a resposta. Mostrai que a conheceis e
regressai à floresta, coexisti com todas as outras árvores. De que serve essa
vontade de ocupar todas as encostas, crescer mais depressa, desgastar o seio da
terra, beber toda a água enquanto os outros morrem de sede…? A terra que abriga
as nossas raízes é a mesma. O mal que agora fazeis a todas as plantas da
floresta será um dia também o vosso mal e o vosso ocaso. O sol e a lua
continuarão a viajar pelo céu, mas a terra ficará estéril e vazia… Como pode
alguém escolher o fim…?
Os eucaliptos foram-se voltando
lentamente, um após o outro. Já nenhum assobiava nem escarnecia. Olharam a
assembleia das árvores como se as vissem pela primeira vez, como se
reconhecessem pela primeira vez que eram todas parte de um todo. Do tronco de
um ou outro escorria um fino fio de resina. Curvaram-se como se um grande peso
tivesse subitamente pousado sobre as copas, as folhas caíram quase por completo
e os olhos voltavam-se para a terra toldados por uma névoa escura que nada
deixava ver. No mesmo instante viram-se árvores altíssimas e detritos povoando
as lixeiras. Viram o deserto avançar pelas montanhas na sua direcção e o sol
ser devorado por densas camadas de fumo. Viram tudo o que existia e o que seria
depois quando já não existisse. Viram uma floresta ausente, viram encostas
escorrendo areia, viram-se não existindo. Nesse ponto lá adiante, não muito
distante, não havia nada para ver.
O que lhes pediam era muito, era mais do
que um sacrifício passageiro, era a própria vida. A única forma de se rebelarem
era deixar de nascer e crescer em todos os lugares, como os humanos lhes
ordenavam.
Um dos eucaliptos mais jovens tomou a
palavra. Falou lentamente enquanto olhava a terra e depois o céu.
− Já que estou aqui, hei-de ficar. Hei-de
crescer e ser um eucalipto gigante. Hei-de tornar-me tão robusto como o aço.
Nenhuma serra me cortará. Mas quando algum pobre aldeão me vier buscar para
erguer a sua casa, irei com ele e serei a sua casa e nunca mais voltarei a
nascer nem a multiplicar-me na terra. Não beberei a água das nascentes nem
sugarei os minerais da poeira subterrânea. Serei apenas a casa e serei feliz.
Outros eucaliptos entreolharam-se e
viram-se pontes, passadiços, cancelas e casas, folhas de papel e livros. Todos
queriam afinal ter uma finalidade mas não um fim. Mas para isso, muitos não
poderiam voltar. Aquela seria a sua única vida.
Desde esse dia, viveram mais do que nunca.
Sendo apenas árvores, seres verdadeiros e generosos. Ano após ano, foram
partindo. Transformaram-se em coisas úteis e amadas. Continuaram a viver de
outro modo em muitos outros lugares.
Só alguns regressaram para serem como eram
antes, árvores entre árvores. E a floresta sorriu de novo e perdurou. Perdura
em plena harmonia protegida pela ampla abóboda do céu.
São
Ludovino, 21/12/2018
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A história acima − O que prende à terra − foi inspirada numa situação real, a proliferação do eucalipto na paisagem portuguesa e o seu efeito nocivo nos solos, que se vão desgastando e tornando cada vez mais secos e áridos, potenciando também a propagação de incêndios, quase sempre de origem criminosa. Mas foi também inspirada no próprio conteúdo do musical À Procura De Um Pinheiro, de José Carlos Godinho, especialmente na canção “Somos Pinheiros”.
Somos pinheiros (Depois da tempestade inicial, os pinheiros apresentam, serenamente, o seu pedido de sobrevivência)
«Somos pinheiros queremos viver, temos ainda tanto a fazer! Não nos destruam nem tirem do chão, pois é diferente a nossa função! Do nosso tronco saem madeiras, para fazer móveis, mesas, cadeiras Portas estantes tacos para o chão, bem como lenha para o fogão. De oxigénio enchemos o ar, para toda a gente poder respirar. Damos resina, lápis pincéis, bem como pasta para papéis. E muito mais podemos fazer, eis a razão de querermos viver! Não nos destruam nem tirem do chão, pois é diferente a nossa função!»
À Procura De Um Pinheiro de José Carlos Godinho (excerto)
Nos Montes de Viriato,
musical de José Carlos Godinho, interpretado pelos alunos de Artes do
Espectáculo – Interpretação, da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa,
30/5/2018. Encenação e direcção de actores de Victor Sezinando.
Aos primeiros acordes fica-se expectante.
O que virá a seguir? Soam as primeiras vozes, perfeitamente afinadas, para quem
não aprendeu canto, e percebe-se que perante os nossos olhos não se vai
desenrolar apenas um espectáculo que acaba com o apagar da última luz. Há ali
qualquer coisa que parece vir de longe, de um tempo longínquo que pouco a pouco
se reconhece nas palavras e na voz interior que as alimenta. Há ali qualquer
coisa que perdura para lá do espectáculo e do momento. Estas vozes não falam
apenas da pátria, sobretudo não falam da pátria segundo um padrão ideológico,
falam de identidade, de uma identidade primordial, a que podemos chamar pátria
só por que é difícil encontrar outra palavra. Quem for alérgico à palavra
pátria, pode chamar-lhe raízes ou origens e estará, no fundo, a dizer a mesma
coisa.
Sendo um musical infanto-juvenil,
adivinha-se na composição das sequências uma certa dimensão pedagógica, assim
como quem diz “Vou contar-te uma história, a tua história, a história de todos
nós”. Pouco importam então os séculos, os milénios (tudo começou há cerca de
1150 anos, cerca de 300 anos antes da independência de Portugal), pouco importa
a cronologia ou a exactidão dos factos, importa o profundo sentimento de união
e a íntima sensação de partilhar as mesmas raízes. Penso que mesmo quem não é
português apreendeu desta experiência aquela misteriosa certeza de fazer parte
de um todo, quer o todo seja um povo, um país ou a própria humanidade. Se houve
ontem, haverá amanhã, só é preciso manter vivas as raízes, senti-las como
nossas, sabendo que elas são coordenadas num mapa invisível, individual e
colectivo.
Ao longo deste breve musical, vimos
entrelaçar-se a epopeia com o lirismo, a simples humanidade com o heroísmo, a
perseverança e a lealdade maculadas pela traição, o anseio de liberdade e a
consciência da identidade colectiva. É possível que um público exclusivamente
infantil não apreenda conscientemente tudo isto, mas nenhum público fica
indiferente. Sai-se dali de alma cheia como quem recebeu o privilégio de se
sentir mais vivo por ser quem é, por estar onde está. É uma forma maravilhosa
de revalorizar Portugal e lembrar que podemos ser sempre melhores do que somos.
Os jovens intérpretes / cantores deram
nova vida a esta história, cantaram e encantaram, souberam ser dramáticos,
pungentes, líricos, cómicos e sempre genuínos. Começar assim o primeiro ano do
curso só pode augurar coisas boas.
Victor Sezinando, com a sua habitual
sensibilidade e exigência, demonstrou mais uma vez que é possível combinar
autenticidade com rigor, conseguiu que tudo fluísse de modo natural sem
descuidar a qualidade da interpretação. Os figurinos (design e cor) ajudaram a
encarnar a vida e o ambiente singelo de um povo antigo e vivo, determinado
desde sempre a não abdicar da sua liberdade e identidade. As pequenas tribos de
pastores lusos (da Lusitânia) enfrentam o grande império romano, vencem, são
vencidos mas perseveram. Embora a história deste período seja muito nebulosa e
incerta, só detectei uma verdadeira mas divertida incorrecção nesta história e
é de natureza temporal. A dado momento diz-se “Não bastava o Astérix, Obélix…”
O Astérix da banda desenhada (série de banda desenhada criada por Albert Uderzo
e René Goscinny, em 1959) e os seus companheiros enfrentaram os romanos no
tempo de Júlio César, pouco antes do início da era cristã (cerca de 50 a.C.).
Viriato e as tribos lusas, constituídas por povos autóctones, enfrentaram os
romanos cerca de 150 anos antes da era cristã.
Foi curioso ver os Lusos serem
representados exclusivamente por elementos femininos; desta forma a fragilidade
e a determinação daquele povo ganharam uma nuance
mais emotiva e genuína. A fragilidade é superada por uma determinação
inabalável. Também é certo que as canções que ouvimos parecem escritas para ser
entoadas por vozes femininas. Na luta daquelas mulheres soa sempre um hino de
amor e esperança. Provavelmente, não soaria do mesmo modo se as vozes fossem
masculinas.
O grupo de soldados romanos saiu-se
igualmente bem; foram duros, altivos, ameaçadores, desdenhosos, chorosos e
patéticos. São o contraponto da epopeia e do lirismo, neles reside a comicidade
que atenua a dureza da realidade histórica implícita em qualquer invasão e
processo de colonização. A enumeração dos generais romanos, vencidos por aquelas
tribos que não possuíam armas nem exércitos, traz à mente aquela ideia tão cara
a F. Pessoa de que a verdadeira força não provém da matéria mas do espírito.
Foi provavelmente essa resiliência que levou Diodoro da Sicília (ou Diodoro
Sículo, historiador grego do século I a.C.) a descrever Viriato como símbolo
das qualidades do seu povo e a sua força motriz: «Enquanto ele comandava ele
foi mais amado / do que alguma vez alguém foi antes dele».
Morte de Viriato, chefe dos Lusitanos, de José de Madrazo Y Agudo, 1781-1859, 1807, Museu do Prado.
Ao longo de mais de seis séculos de
ocupação romana, a Lusitânia foi governada por 58 imperadores romanos.
Deixaram-nos muito de bom. Também não devemos esquecer isso. Assim como não
devemos esquecer que os que mataram Viriato são da mesma velha estirpe dos
corruptos e corruptíveis que perdura até hoje, em muito maior número e com
muito menos causas. Ditalco, Audax e Minuro, emissários de Viriato nas
conversações para assinar a paz com os Romanos, foram subornados por Cipião
para matar o seu próprio chefe e fizeram-no sem hesitações esperando como
recompensa o habitual: riqueza e poder. Cumprido o contrato com os Romanos,
foram pedir a recompensa, mas os Romanos responderam com aquela moralidade
formal que parece sempre certa no conteúdo mas absurda no contexto: “Roma não
paga a traidores!” Enfim, corruptores cheios de bons princípios!
Falta apenas dizer que, segundo alguns
autores, Ditalco, Audax e Minuro não pertenciam à tribo dos Lusos, eram
guerreiros de outra tribo algures na Andaluzia. Seriam de Urso (Osuna,
Sevilha). Sempre é um alívio pensar que os traidores não terão vindo do seio da
mais aguerrida tribo da Ibéria. Mas também há historiadores que consideram que
os nomes dos traidores não são nomes próprios mas a designação de atributos dos
traidores (compromisso, audácia, redução). Mais um enigma…
Morte de Viriato de José Villegas Cordero, 1890.
A
História não é só feita de factos, memórias, registos escritos, achados
arqueológicos. É também feita de crenças, de aspirações, de mitos, de
reminiscências que vivem latentes no inconsciente colectivo. A história de
Viriato é feita disso tudo, de História e de tudo o que a circunda e
(re)constrói.
Viriato
(c. 180 a.C. – c. 139 a.C.) não venceu apenas batalhas, venceu o tempo e o
esquecimento, inspirou e ainda inspira a resiliência dos que querem acima de
tudo ser livres e viver pacificamente. Viriato não defendeu apenas a Lusitânia
e a sua tribo (os Lusos), combateu muito para além das suas fronteiras em
territórios que vão da zona de Zamora à Andaluzia, passando por Segóbriga
(perto de Madrid), hoje territórios espanhóis. Emerita Augusta (hoje Mérida) viria a tornar-se a capital da
Lusitânia. Na verdade, ainda hoje, os Espanhóis demonstram mais gratidão a
Viriato do que os Portugueses, exceptuando a zona entre Viseu e a Guarda, já
que o núcleo da tribo habitava nas encostas agrestes da Serra da Estrela. No
Museu do Prado podem encontrar-se quadros alusivos a Viriato e o brasão de
Zamora continua a ostentar as oito faixas vermelhas que representam as oito
vitórias de Viriato naquela zona em batalhas contra generais romanos. O braço
que segura a bandeira com as oito faixas vermelhas representa o braço do
próprio Viriato. O próprio hino de Zamora enaltece Viriato:
La
noble seña sin falta
bermeja
de nueve puntas
de
esmeralda la más alta
que
Viriato puso juntas,
en
campo blanco se esmalta.
¿Quién es esa gran señora?
la
numantina Zamora
donde
el niño se despeña
por
dejar libre la enseña
que
siempre fue vencedora.
Gratia
Dei. Batalla de Toro, 1476.
E nós, Portugueses, como temos lembrado e
honrado Viriato? Para além da estátua em Viseu (de Marianno Benlliure, também
espanhol), o nome de um teatro (também em Viseu, fundado em 1883), o nome de
uma localidade (Cabanas de Viriato, no distrito de Viseu), o título de um
jornal de Viseu publicado entre 1855 e 1892 (O Viriato - jornal politico, instructivo e comercial), ainda andam
por aí algumas obras literárias, algumas velhas edições e umas poucas
reeditadas. Os três Viriatos Trágicos abriram o caminho ─ o de Brás Garcia de
Mascarenhas (poema heróico em 20 cantos, Coimbra, 1699), o de Júlio Dantas
(peça de teatro não sobre Viriato mas sobre Brás Garcia de Mascarenhas, autor
do primeiro Viriato Trágico, 1900) e
o de João de Barros (adaptação do poema heróico em prosa, 1940). Pelo meio, foi
publicado o Viriatho - narrativa
epo-historica de Teófilo Braga (1843-1924), Lello & Irmão, Porto, 1904,
uma espécie de ensaio histórico entrelaçado com o romance histórico. Já no
século XX, vieram à luz A Voz dos Deuses
– Memórias de um Companheiro de Viriato de João Aguiar, 1984, o Viriato Rey de João Osório de Castro,
ilustrado por José Manuel Castanheira, Viriato
(peça de teatro de João Carvalheiro, a partir de A Voz dos Deuses de João Aguiar, representado em 2017 e 2018) e as
muitas bandas desenhadas, entre elas a de José Garcês, a de Vítor Belém e José
Salomão e a de João Amaral e Rui Carlos Cunha (adaptação ilustrada de A Voz dos Deuses de João Aguiar). Há
ainda diversos estudos históricos e literários com interesse: O Mito de Viriato na Literatura Portuguesa
de José Barbosa Machado, 2010, Lusitanos
no tempo de Viriato de João Luís Inês Vaz, Viriato, Herói Lusitano - o Épico e o Trágico de António Manuel de
Andrade Moniz, Viriato de Diogo
Freitas do Amaral, Reflexões em torno do
livro “Lusitanos no Tempo de Viriato”, de João Luís Inês Vaz por José
D’Encarnação (in Revista Portuguesa de Arqueologia, Vol. 14, 2011) ou A etno-epo-história e os mitos fundacionais
da Nação – “Viriato” de Teófilo Braga de Maria da Conceição Meireles
Pereira, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Se nem todas as obras literárias que se
escreveram por cá são historicamente credíveis (até porque esse não era
provavelmente o principal objectivo), também não se deve dar grande crédito ao Viriato (tragédia em cinco actos,
Madrid, 1843) de Manuel Hernando Pizarro (autor espanhol) que deu tantas voltas
à História que a tornou quase irreconhecível. Aí o traidor é um apenas, um
lusitano a quem ele chama simplesmente “Coello”, que teria assassinado Viriato
por uma questão de amores pela mesma donzela!!! É caso para dizer que certos
escritores são os piores inimigos da História.
Igualmente curioso é o drama trágico em um
acto de Luciano Francisco Comella (El
Mayor Rival de Roma – Viriato, Madrid, 1798). Aí, Viriato é designado como
“Caudillo del Pueblo Español”, sem nunca
referir que Viriato era lusitano e não espanhol, como se a Lusitânia nem sequer
existisse e a Espanha já existisse no tempo de Viriato. Mas menciona dois
capitães espanhóis com os nomes de Ditalcon e Minor. Ditalcon é irmão de Dulcídia,
apresentada como mulher de Viriato. É Ditalcon e o próprio Cipião que matam
Viriato. E Viriato continua a falar com Dulcídia, mesmo depois de morto, para
revelar quem o matou e como… Minor é apresentado como grande inimigo dos
Romanos e combate ao lado dos Lusitanos (que apenas aparecem no final embora
tivessem lá estado sempre a enfrentar os Romanos). No final, todos juntos,
incluindo Dulcídia, perseguem Ditalcon para o matarem. Enfim, há casos em que a
efabulação e a liberdade criativa deviam ter mesmo um limite, não vá o leitor
incauto acreditar em tantas patranhas. Veja-se na nota final, algumas obras
mais recentes de autores espanhóis bem diferentes destas que mencionei.
Como o próprio Viriato reconheceu, ninguém
pode viver eternamente em guerra e por isso procurou um acordo de paz com Roma.
Só não esperava que o acordo fosse quebrado e que o seu anseio de paz e
liberdade fosse aniquilado pela traição daqueles em quem confiava.
Obrigada por nos terem recordado Viriato e
as resilientes tribos da primitiva Lusitânia desta forma tão melodiosa. Uma
enorme e merecida vénia para todos.
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Nota:
* - Viriato - O Colar dos
Deuses, romance histórico de Fernando Barrejón, 2004.
* - Viriato: el héroe
hispano que luchó por la libertad de su Pueblo,
Mauricio Pastor Muñoz, 2004
* - Viriato – História e
símbolo no Viriato de de Maurício Pastor Muñoz
(Prefácio de José D’Encarnação, A Esfera dos Livros, 2006)
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Nota: As
fontes históricas que restam são sobretudo romanas e podem, por isso, padecer
de alguma ou muita parcialidade. Mas os Romanos mostraram também um profundo
sentido de justiça quando julgaram no Senado o Procônsul Sérvio Galba pelas
atrocidades cometidas contra os Lusitanos. Claro que não foi apenas julgado
pelas atrocidades em si mesmas, mas sobretudo pelo efeito nefasto que teve na
pacificação da Lusitânia e na obtenção fácil do ouro e da prata das minas,
gerando a revolta das tribos lusitanas que nunca mais deram tréguas ao invasor.
Segundo o relato de Teófilo Braga, o Tribuno da plebe, Aulo Scribonio,
batendo-se pela condenação de Galba, acusou-o de ter morto mais de trinta
mil lusitanos para lhes ficar com as terras, a prata e o ouro das minas: «O
Procônsul Galba (…) trucidou traiçoeiramente para mais de trinta mil pessoas,
em que a par dos homens validos estavam velhos, crianças e até mulheres!» (cf. Viriatho - narrativa epo-historica,
Teófilo Braga, Lello & Irmão, Porto, 1904, p. 12)
Mapa
das Campanhas de Viriato e dos Lusitanos contra o Império Romano.
Mapa da conquista romana da Hispânia, desde o início da
Segunda Guerra Púnica (219 a. C.) até às Guerras Cantábricas (29 a.C.).
Aqui fica uma pequena homenagem a Viriato e aos nossos antepassados Lusos ou Lusitanos
LUSO SER
De
onde vens raiz profunda
Que
no peito bates qual onda de mar?
Que
coragem te escolheu a fronte para morar
Qual
coroa de nuvens protegendo a montanha?
Passam
os tempos e as eras
Passam
os pergaminhos e as velhas histórias
Passam
por ti e por mim enredados no remoinho
De
outros tempos e outras eras.
Que
é feito de ti, Viriato
Pastor
de gente e rebanhos?
Que
é feito do punhal que te levou
De
entre os teus pela calada da noite?
Eram
também teus(1) os que ergueram o punhal
E
o cravaram na alma toda de um povo.
Eram
também teus os que quiseram mais
Que
a vida pura das encostas da montanha.
Antes
da paz partiste
Antes
de ser livre o teu rebanho.
Quebraram-se
os cajados e as lanças
Na
busca única da liberdade.
Ficaram
as montanhas e as flores silvestres
Crescendo
na paz inviolável deste chão agreste
Adormeceu
sem ti todo o rebanho
Longa
noite de penas e mudos anseios.
Passaram
tempos e eras
Perdura
a canção do mar
Perdura
a coroa de nuvens
Sobre
as cabeças curvadas
Sobre
o inquieto esquecimento.
Abre-se
a montanha
Revolve-se
o mar
Chama-te
e volta a chamar
Mas
tu não podes voltar.
Cansada
do longo e profundo sono
A
raiz clama pelo sol
Pela
árvore que ainda alimenta
Tomada
pela fúria do amor eterno
Ergue-se
do solo e torna-se aérea.
Viaja
até às estrelas e entranha-se na luz de cada uma delas
E
agora que olhas para o alto e vês centelhas de longos cabelos
Agora
sabes que a terra e o céu não se esqueceram de ti
Não
se esqueceram do teu berço nos Montes de Viriato.
E
tu, que lembras tu?
E
o que esqueces?
O
que anseias sem saber?
Quem
és tu, Luso Ser?
São
Ludovino, 31/5/2018 – 19:37
(1)
Convém esclarecer que alguns autores afirmam que os traidores (Ditalco, Audax e
Minuro) não eram Lusos mas Andaluzes (de Urso, hoje Osuna). Viriato lutou
contra o ocupante romano não só no território da antiga Lusitânia (centro de
Portugal hoje) mas também em vários reinos da futura Espanha. Aí também teve
vitórias e derrotas. Aí ganhou amigos e inimigos. Aqueles que o assassinaram
eram supostamente amigos, chefes militares muito próximos de si. Foi essa
proximidade que lhes permitiu entrar pela calada da noite na sua tenda e
assassiná-lo. E, assim, perderam todos, um líder nato e a esperança de manter a
autonomia dos povos autóctones.