terça-feira, 7 de maio de 2019

NAS ENTRELINHAS DA HISTÓRIA III


HERÓIS, ANTI-HERÓIS E QUIMERAS - V

Notas complementares & bibliografia
(Continuação do post anterior. Manteve-se quase sempre a grafia dos documentos originais.)

OUTRAS FORMAS DE COLABORACIONISMO E APOLOGIA

Nota 11: Igualmente relevante e interessante foi a “Representação da Câmara de Ançã” (Cantanhede, Coimbra) que reivindicava que Portugal passasse para a soberania francesa.
     «No dia 29 de Maio de 1808, realizou-se uma notável sessão nos paços municipaes da villa de Ançã, e depois de lidas a carta da deputação portugueza, que havia ido a Bayona, e da qual fazia parte o bispo de Coimbra, D. Francisco de Lemos, e de ser ouvido o discurso do juiz de fora Bento Pereira do Carmo (que veiu a ser ministro do reino em 1834), foi assignada uma representação em que se pedia a Napoleão um rei da sua família para Portugal.» 
(…)
     Segue-se o texto da acta da sessão daquela câmara datada de 29 de Maio de 1808, mantendo-se a grafia original:
     «Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de 1808, aos 29 dias do mez de Maio do dito anno, n'esta villa de Ançã e casas da camará d'ella, onde eu escrivão vim com o dr. Juiz de Fora d'esta mesma villa o dr. Bento Pereira do Carmo, como também os mais officiacs da camará ao diante assimilados, e bem assim com as pessoas mais distinctas d'entre a nobreza e povo d'esta villa e seu termo, e ahi perante todos, depois d'elle ministro ter lido a carta que de Bayona em data de 27 d'Abril, os deputados portuguezes dirigiram aos seus concidãos, recitou o seguinte discurso:
«Senhores: Haveis acabado de ouvir na carta dos deputados d'este reino as promessas da vossa felicidade, feitas e affiançadas em nome do Augusto Imperador que nos governa: seremos uma nação independente, conservaremos o nosso caracter nacional, avivado pelo vigor e sabedoria de Napoleão o Grande. Tal é a dita que o venturoso futuro offerece aos portuguezes; mas para virem a effeito tão solemnes promessas, é mister todavia que os nossos concidadãos se tornem dignos d'ellas.
     «E' mister depor todos os prejuízos, ou filhos da educação ou do antigo systema do governo; é mister que animados do mesmo espirito, nos unamos todos a nossos irmãos, á grande familia europêa.
     «Já não ha Pyrinéos, dizia um rei de França no começo do século passado, quando seu neto vinha ocupar o throno de Hespanha. Nós com maior razão diremos agora, já não ha barreiras que separem um povo de outro povo. Cessarão já d'uma vez os ódios e antipathias nacionaes, pois que o génio imortal do grande Napoleão, tem affastado todos os tropeços, ou levantados pela nobreza, ou nascidos de preoceupações vulgares.
     «Os francezes, italianos, portuguezes, hespanhoes e napolitanos, não formam d'aqui em diante mais do que uma grande familia de irmãos, regida por um systema uniforme e luminoso.
     «Este systema organizado por S. M. Imperial e Real, posto em effeito por elle e sua augusta dynastia, tem por fim a felicidade geral do continente, que é o resultado da felicidade individual das famílias.
     «Não tardarão a luzir na Europa os dias douro, apenas sonhados por nossos avós, em que á sombra d'uma paz permanente, possam as nações entregar-se com porfia aos trabalhos de agricultura, da industria e do commercio; dias em que todo o individuo sentirá em cada momento da sua existência a felicidade de viver debaixo do poder de Napoleão o Grande.
     «Eu vos convido, senhores a que deis as devidas demonstrações
de jubilo por tão lisongeiras esperanças; mas devemol-o fazer de uma maneira digna do soberano e da nação. O Imperador é um pae, que no meio das mais ternas effusões do coração, escuta com bondade os brados de seus filhos; na qualidade de pae receberá com benevolência os nossos singelos agradecimentos e também as nossas supplicas; e na qualidade do maior monarcha, do mais poderoso imperador do Universo, fará sem duvida tudo quanto fôr a bem da nossa prosperidade».
     «E logo findo que foi este discurso, assentaram elle ministro, e mais officiaes da camará e pessoas distinctas que assistiram á sessão, abaixo assignadas, que se dirigisse ao nosso Augusto Soberano, por via do Ill.mo e Ex.mo Sr. duque d'Abrantes (refere-se a Junot), que tão digno se tem feito do amor dos portuguezes, a seguinte representação:

Boney Stark Mad or More Ships Colonies & Commerce - Gravura satírica do escocês Isaac Cruikshank. Londres, 1808. Os navios portugueses abandonam Lisboa rumo ao Brasil, levando a bordo a família  real portuguesa. No centro vê-se Boney (Napoleão Bonaparte) tentando detê-los.

REPRESENTAÇÃO
     «Senhor! A camará da villa de Ançã, como representante de oito mil de seus concidadãos, vae aos pés do elevado throno de V. M. Imperial e Real agradecer-lhe com expressões filhas do amor e admiração, os altos benefícios, com que a bondade de V. M. Imperial e Real quer beneficiar os portuguezes.
     «A camará, Senhor, conhece que todos nós somos de origem franceza; que a uma princeza franceza é que devemos a nossa organização politica, que tem durado por espaço de 700 annos; que á nação franceza é que somos devedores ainda do reconhecimento da nossa liberdade, na memorável epocha de 1640; finalmente conhece a camará que V. M. Imperial e Real acaba de sacudir o vergonhoso jugo, que ha muitos annos fazia gemer em segredo os amigos da pátria, sendo reduzida a colónia dos eternos inimigos do continente; uma nação que nos dias brilhantes da sua prosperidade, foi reconhecida por mestra do commercio e marinha dos europeus.
     «Nós pretendemos ser mais do que então fomos, Senhor, e é por isso que imploramos a V. M. Imperial e Real a mui distincta mercê de nos conceder um soberano de Sua Imperial Família, e uma Constituição que seja em tudo similhante á que V. M. Imperial e Real houve por bem dar ao ducado de Varsóvia, alterando-se unicamente o modo de eleger os representantes nacionaes, que entre nós parece que deve ser pelas Camarás, para melhor se conformar com os nossos antigos costumes.
     «Queremos uma Constituição em que, bem como na Varsóvia, a religião do estado seja a catholica apostólica romana, protestando pela admissão de todos os princípios da ultima concordata do império francez, com a Sé Romana, sendo porém tolerados todos os cultos;
     «Uma Constituição, Senhor, em que todos os cidadãos sejam eguaes ante a lei, e em que o nosso território europeu seja dividido em oito ou mais departamentos, regulando-se por esta divisão civil a ecclesiastica;
     «Uma constituição em que haja no Ministério um ministro encarregado da instrucção publica, e em que se estabeleça a liberdade de imprensa, como no império francez, porque a ignorância e o erro causaram a nossa decadência;
     «Uma Constituição em que o poder executivo deva instruir-se por um conselho de estado, e sejam seus decretos cumpridos por ministros que fiquem responsáveis pela sua execução, e em que a ordem judiciaria fique independente, e julgue pelo Código de Napoleão;
     «Uma Constituição em que os funccionarios públicos sejam os mais beneméritos d'entre os nacionaes, como se determina no titulo 11.° da Constituição Polaca, e que chegando-se a organizar e reduzir os corpos d'administração civil, económica e judiciaria, como é de interesse publico, fiquem os demittidos conservando vitaliciamente os seus ordenados, relativos aos cargos officiaes, ou benefícios de que forem destituídos, e que vagando qualquer emprego, lhe seja dado com preferencia, se tiverem merecimentos e costumes;
     «Uma Constituição finalmente em que os bens dos corpos de mão morta, adquiridos contra o interesse nacional, e lei d'estes reinos, desde a lei do Sr. D. Diniz de 21 de Março de 1291, voltem todos á circulação; em que a distribuição dos impostos seja proporcionada aos haveres de cada individuo, sem que algum fique isento de pagal-os, procurando-se que a sua arrecadação seja mais fácil e suave e em que a divida anterior do Estado seja concedida e garantida.
     «Senhor, estes são os nossos desejos. V. M. Imperial e Real não verá na declaração sincera dos nossos sentimentos, senão a confiança illimitada que temos, bem como toda a nação na magnanimidade do Arbitro da Europa. O seu nome, Senhor, viverá
nos nossos corações, e nos corações de nossos filhos até á derradeira
posteridade, e nós não cessaremos de clamar no seio de nossas famílias Viva Napoleão o Grande, Viva a sua Augusta Dynastia.
     «E d'esta sorte houveram este auto por feito e acabado, que elle ministro, officiaes da camará e nobreza aqui assignaram. E eu Manuel Pedro d'Almeida, escrivão da camará o escrevi e assigno. — Manoel Pedro d'Almeida, — O Juiz de Fora, Bento Pereira do Carmo, — O Vereador mais velho, António dos Reis Camelo, —O Vereador, Francisco da Silva Lobato Cortezão, — O terceiro Vereador, Francisco Bernardo da Costa Freire, — O Procurador da Camará, José Rodrigues, — Francisco d'Abreu Pereira Coutinho, Prior, —José de Gouveia d'Almeida Beltrão,— Luiz Beltrão de Gouveia e Lucena, — António José Valério, — José Angelo Saraiva de Carvalho, — Francisco de Paula e Gouveira, —Joaquim José Colaço Brandão, — Christovão Lopes Cerveira.»
(Vide Guerra peninsular - notas, espisodios e extractos curiosos, Francisco Augusto Martins de Carvalho, Coimbra, 1910, págs. 38-42).

Batalha do Vimeiro por Domingos Schiopetta, 1788-ca. 1835, c. 1808.

TRISTE IRONIA

Nota 12: A Representação de Ançã (1808) torna-se ainda mais caricata quando se sabe que aquele município foi duramente devastado pelos invasores, não só durante a 1.ª mas também durante as seguintes invasões. Durante a 3.ª invasão, comandada por Massena e Loison (1810), o próprio edifício da câmara de Coimbra foi incendiado. Talvez houvesse entre os municípios alguma rivalidade bairrista ou até pessoal, porque então Ançã não pertencia ao município de Coimbra, tinha um estatuto independente por motivos que ainda não consegui apurar.
     Sobre a destruição em Coimbra, pode ler-se, por exemplo isto:
     «No dia 3 de Outubro de 1810, foi incendiado pelo exercito francez, quando depois da batalha do Bussaco, seguia em direcção a Lisboa, o antigo edifício do senado da Camará de Coimbra, situado na antiga praça de S. Bartholomeu, (hoje praça do Commercio), o qual tinha na parte superior um grande prédio com frente para a Calçada, (hoje rua de Ferreira Borges). Nos alicerces da antiga casa
do senado, depois de incendiada, foram construídos os prédios actualmente oceupados pelo deposito das machinas Singer e pharmacia Donato.»
(…)
     «No incêndio de 3 de outubro de 1810, não só foram pasto das chammas o edificio do capitão mór de Eiras e o paço dos tabelliães, mas também as casas contíguas do lado sul, que pertenceram ao desembargador Eusébio Tavares de Sequeira, e onde hoje está a Casa Havaneza; e outra casa immediata pertencente em tempo antigo a Miguel Vaz, mercador, e que em 1817 foi mandada reconstruir pelo sr. Tenreiro, de Oliveira de Cunhedo, concelho de Penacova, e hoje pertence á família Sousa Nazareth. 
     Os francezes quando marchavam em seguimento do exercito anglo-luso, quizeram dar uma prova do seu vandalismo, incendiando as casas que acabamos de citar, e ainda a casa da quinta da Cheira, pertencente ao dr. Thomé Rodrigues Sobral, lente de philosophia, perdendo este professor, como já referimos em outro capitulo, não só todo o prédio, mas a livraria, formada pelas suas diligencias de muitos annos; e em especial os seus preciosos manuscriptos, entre os quaes sobresaia, o seu compendio de chimica, devido ao mais aturado estudo.
     Com o exercito francez tinham vindo vários portuguezes, sendo um d'elles o general Manoel Ignacio Martins Pamplona, depois conde de Subserra.
     E' facto que em grande parte a elle se deve que os invasores não destruíssem os estabelecimentos da Universidade.
     Havendo sido condemnado á morte, mas podendo vir em 1821 para Portugal, em razão da amnistia das cortes, tratou de se justificar do seu procedimento, para o que publicou n'aquelle mesmo anno a ─ Memoria justificativa de Manoel Ignacio Martins Pamplona e sua mulher D. Isabel de Roxas de Lemos.»   
(…)
     «Quando os francezes, acossados pelo exercito angloluso, retiraram em Março de 1811, depois de lançar o fogo a Pombal e Redinha, incendiaram também Condeixa a Nova e foram bivacar em Condeixa a Velha.»
(…)
     «O livro dos assentos dos baptisados desappareceu, não havendo por isso assentos desde 14 de Julho de 1795 até 23 de Maio de 1810.
     E não foi só a destruição da egreja, também a casa da residência do parocho e muitas casas da povoação de Condeixa a Velha foram destelhadas, para com as madeiras d'essas casas e a de muitas oliveiras que destruíram, fazerem o rancho no bivaque, de forma que em Condeixa a Nova foi a madeira incendiada dentro das próprias casas, e em Condeixa a Velha foi a madeira das casas servir de combustível' no campo para o fabrico do rancho. Todas as povoações da freguezia de Condeixa a Velha soffreram muitos prejuízos.
     Em Condeixa a Nova, segundo um desenho da povoação, que se encontra em poder da família Martins de Carvalho, do logar de Atadôa do referido concelho, feito por Félix Lourenço que foi acutilado pelos francezes, foram incendiadas mais de 40 casas, entrando n'este numero a egreja matriz, e os palácios dos Sás e do capitão mór. Essas casas foram sendo reconstruídas successivamente, só o não tendo sido por completo o palácio dos Sás, pertencente á casa de Anadia.»
Vide Guerra peninsular - notas, espisodios e extractos curiosos, Francisco Augusto Martins de Carvalho, Coimbra, 1910, págs. 49-53.

ANTT - desenhos feitos pelo capitão Manuel Isidro da Paz, 1812.

MASSACRE DE CIVIS EM PORTUGAL

Nota 13: Considerando a destruição e os massacres cometidos no distrito de Coimbra, os 8 000 apoiantes referidos na Representação da Câmara de Ançã não correspondiam de forma alguma à verdade. Nesse distrito, tal como nos restantes, aquilo que se observou foi bem diverso. À excepção de uns poucos de privilegiados e oportunistas, a maioria da população de todas as classes uniu-se na resistência aos invasores.
     Um dos maiores massacres que ocorreram por Portugal durante as invasões francesas foi na cidade do Porto, durante a 2.ª invasão, comandada por Soult. Apenas em três dias, entre 27 e 30 de Março de 1809, foram mortas cerca de 10 000 pessoas, incluindo as que morreram no chamado “Desastre da Ponte das Barcas”. Só nesse desastre morreram cerca de 4 000 pessoas enquanto fugiam às baionetas dos franceses e dos colaboracionistas.
     Aqui fica apenas uma breve referência ao massacre de Arrifana (Santa Maria da Feira): «Na madrugada de 17 de Abril de 1809 o exército francês cerca e toma de assalto a pacata povoação de Arrifana. Quem oferece resistência ou ensaia a fuga é morto a tiro, à coronhada ou trespassado pelos sabres e baionetas dos soldados de Napoleão. Grande parte da população procura refúgio no interior da igreja que, no entanto, acaba por se revelar uma verdadeira ratoeira: os franceses obrigarão todos os homens válidos a saírem do templo, seleccionando em seguida um em cada cinco. Os “quintados” (assim ficaram conhecidos) são de seguida fuzilados pelos invasores. Quando estes partem deixam atrás de si a povoação em chamas e, empilhados no local do massacre, dispersos por campos e caminhos de tentativa de fuga e pendurados de cabeça para baixo em várias árvores, cerca de 70 mortos». Texto de Suzana Faro e Joel Cleto. - https://viajandonotempo.blogs.sapo.pt/5298.html 
     Quem se quiser dar ao trabalho, leia as ordens, editais e proclamações de Napoleão e dos seus chefes militares: quem não se rendia e submetia era destruído; depois da pilhagem, vinham as execuções e o fogo. E leia também as outras proclamações, as benévolas que serviam de isco, porque era mais barato e fácil assenhorear-se de um rebanho cordato do que guerrear.
     O facto de terem sido queimadas dezenas de igrejas por todo o país, depois de totalmente pilhadas de tudo o que fosse materialmente valioso, fez com que se perdessem irremediavelmente muito registos, incluindo os livros de assento de baptismo e de óbito. Estes últimos eram muitíssimo importantes porque muitos párocos deram-se ao trabalho de descrever as circunstâncias da morte de milhares de pessoas. Faltam milhares de registos entre o final do séc. XVIII e o final das Invasões Francesas. Para calcular o número de vítimas, alguns investigadores têm recorrido aos censos incompletos feitos antes e depois das invasões, descobrindo a falta de centenas de milhar de pessoas de quem não existe registo de óbito.
     José Acúcio das Neves relata alguns episódios como aquele de Arrifana e também a notável resistência dos “paisanos”. Revolução chama ele à resistência e não à conquista e ocupação (cf. Historia geral da invasão dos francezes em Portugal e da restauração deste reino por José Accursio das Neves. – Lisboa : na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1810-1811. - 5 vols.). - (…) «os libertadores da pátria são dignos de recomendar-se ao reconhecimento do soberano e da nação, e os seus nomes de serem transmitidos à posteridade com a glória que lhes é devida. Não farei diferença de grandes e pequenos: pelas acções é que os homens se ilustram; o heroísmo e a virtude fazem a verdadeira grandeza», Vol. 1, pág. 44 - «Não saciados ainda com o sangue das vítimas, de que os cadáveres juncavam as ruas da cidade, passaram a fazer uma caçada geral dos homens que puderam descobrir e arrancar dos seus esconderijos, e os conduziram ao sítio de S. Bartolomeu, para aí os arcabuzarem.» Vol. 2, págs. 203-204 – De facto, o autor não fez distinção entre grandes e pequenos e no que toca ao carácter, nem sequer fez distinção entre Portugueses e Franceses, apontando actos exemplares de ambas as partes. Em dado ponto fala de dois oficiais franceses que em vez de matarem e torturarem os mais humildes lhes deram alimentos e ânimo: «Até entre os generais franceses se encontravam algumas virtudes! A par dos De-Laborde, Loison, Kellerman, Thomiers, Margaron, Avril, Salmsalm, e tantou outros de nome igualmente odioso, apareceu um Charlot que soube, pelas suas boas qualidades e pela doçura dos seus costumes, cativar os povos de Torres Vedras, e um Travot, que encantou os de Cascais, Oeiras e Paço de Arcos. Bem longe de os tiranizar e espoliar, ele os consolava nas suas desgraças, e até repartia esmolas pelas famílias dos miseráveis pescadores de que são povoados aqueles lugares, vendo-os privados dos meios da sua subsistência pelas reiteradas proibições de irem ao mar, emanadas de Junot para proibir a comunicação com a esquadra inglesa.» Vol. 1, pág. 261 - http://purl.pt/12098

ANTT - desenhos feitos pelo capitão Manuel Isidro da Paz, 1812 - O exército passando em Agadão.

RESISTÊNCIA POPULAR E CIVIL AOS INVASORES – PAPEL DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Nota 14: Por todo o lado, populares e instituições fizeram o que puderam para auxiliar o exército português ou até para se substituir a ele aonde ele não chegava. É interessante o relato da ajuda prestada pela Universidade de Coimbra e pelos habitantes da cidade, em 1808: «Tendo-se revoltado a cidade de Coimbra contra os francezes, e não havendo pólvora para a campanha que se preparava, tratou-se immediatamente de proceder no Laboratório
chimico da Universidade á elaboração d'aquelle material de guerra.
Principiaram os trabalhos logo no dia 26 de Junho, sob a intelligente direcção do lente de chimica, o dr. Thomé Rodrigues Sobral.
     (…) mandaram-se vir do hospital dois soldados portuguezes convalescentes, para fazerem cartuchos, e se mandaram egualmente chamar todos os ourives e funileiros para fundirem as balas, no que se occuparam toda a noite, sem descançarem, apromptando as formas, fundindo e ensinando também os outros.
     Na mesma noute se cuidou em fazer metralha para as peças que se esperavam da Figueira; e ás 6 horas da manhã estavam feitos mais de 3:000 cartuchos.
     (…) Só da imprensa da Universidade foram 207 arrobas de metal para balame, 4 resmas e meia de papel impresso, 1 resma de papel branco, e 6 pelles de pergaminho.
     O dr. Thomé Rodrigues Sobral foi muito coadjuvado na direcção d'estes trabalhos, pelo dr. Manoel José Barjona, dr. Joaquim Baptista, Thomaz Joaquim Valladares, estudante do 5.° anno medico, e João de Amorim Pinto Ribeiro, estudante do 4.° anno philosophico.
     Além do material de guerra fabricado no Laboratório Chimico, foi concertado um grande numero de espingardas, e preparado um numero extraordinário de objectos necessários para a campanha, na fabrica de fiação de Manoel Fernandes Guimarães, estabelecida na rua de João Cabreira. Esses trabalhos foram dirigidos pelo hábil mestre da mesma fabrica, Bernardo Ferreira de Brito.
     (…) Em 1810, estes invasores, commandados por Massena, excedendo em malvadez os cafres e os hotentotes, procuraram
onde era a casa do Dr. Thomé Rodrigues Sobral, e sabendo que era no sitio da Cheira, subúrbios de Coimbra, dirigiram-se ahi e a incendiaram, com os valiosos livros e manuscriptos que aquelle distincto professor possuia.» Cf. Guerra peninsular - notas, espisodios e extractos curiosos, Francisco Augusto Martins de Carvalho, Coimbra, 1910, págs. 33-35.


REPRESSÃO SOBRE OS DISSIDENTES, COLABORACIONISTAS E DESERTORES

Nota 15: Entre 10 e 13 de Setembro de 1010, houve uma acção repressiva contra os dissidentes, colaboracionistas e maçons (a Setembrizada), tendo sido presas e condenadas ao exílio na ilha Terceira (Açores) cerca de «50 personalidades ligadas à magistratura, exército, comércio, clero e profissões liberais acusadas
de colaboracionismo e ideias liberais, entre elas Jácome Ratton, José Sebastião de Saldanha, Domingos Vandelli e José Vicente Ferreira Cardoso da Costa».
     O nome que mais surpreende aqui é o de Domingos Vandelli porque, enquanto director do Museu de História Natural, ele próprio se queixou da descarada rapina dos oficiais franceses naquela instituição.
     Na verdade, a maior repressão contra os dissidentes ideológicos só ocorreu depois da Revolução Liberal de 1820 e durante a Guerra Civil. Actos de extrema violência foram cometidos por ambas as partes, liberais e absolutistas, contra os seus opositores. Os liberais radicais e a igreja mais dogmática foram os principais responsáveis por muitos desses actos de fanatismo.
(Cf. Cronologia Geral da Guerra Peninsular, 1789-1815 - https://updoc.site/download/cronologia-geral-da-guerra-peninsular-1789-14-de-julho_pdf)

ANTT - desenhos feitos pelo capitão Manuel Isidro da Paz, 1812 - Quartel de Barbas de Porco, 1812.

OUTRAS EXECUÇÕES

Nota 16: Embora em número reduzido, também as forças aliadas luso-britânicas executaram alguns desertores, apenas aqueles que consideraram ser os cabecilhas dos grupos:
     «Três d'esses fugitivos pertenciam ao regimento de milícias da Figueira; e eram o alferes Francisco Braz Sabreu, da Figueira, o sargento José Joaquim Pinheiro, natural da Guarda e um outro sargento do mesmo corpo.
     Quando porém, estavam a embarcar no logar do Certeiro, junto ao caes de Coimbra, para se dirigirem para a Figueira, foram alli presos pelo sargento ajudante das milícias de Coimbra, José Rodrigues da Costa Vianna, por ordem do governador militar d'esta cidade, e conduzidos á cadeia do Aljube.
     Formou-se-lhes processo, e foram condemnados á morte, sendo-lhes a sentença intimada no dia 20 de Julho seguinte.
     Empregaram-se as maiores diligencias com o marechal Beresford e com a regência do reino, para obter o seu perdão, mas tudo foi inútil.
     Perante uma grande força, composta dos diferentes corpos que se tinham achado na Guarda, foram fuzilados os três infelizes, um pouco além de Santo António dos Olivaes, próximo da capella de S. Sebastião.
     Durante a guerra peninsular houve em Coimbra mais três execuções.
     Uma foi de um soldado desertor, a qual teve logar na insua da Várzea, assistindo a este acto uma grande divisão do exercito.
     Outra foi também de um soldado desertor, próximo ao antigo muro da cerca do extincto convento de Sant’Anna, em frente da extremidade sul do Jardim Botânico. Ainda alli se vê uma cruz para commemorar este triste acontecimento.
     E o terceiro foi de um soldado inglez, levado em um fourgon até ao sitio do Padrão, próximo d'onde agora está a estação do caminho de ferro de Coimbra B, e ahi enforcado em um choupo.»
Vide Guerra peninsular - notas, espisodios e extractos curiosos, Francisco Augusto Martins de Carvalho, Coimbra, 1910, págs. 55-57.

A 4.ª INVASÃO FRANCESA

Nota 17: Houve uma 4.ª invasão francesa que durou apenas 20 dias, entre 3 e 24 de Abril de 1812, sendo o exército francês comandado pelo marechal Marmont.

ANTT - desenhos feitos pelo capitão Manuel Isidro da Paz, 1812.


O BOM-SENSO - ENTRE AS “FAKE NEWS”, A PROPAGANDA E A ESTRATÉGIA MILITAR

Nota 18: No dia 23 de Janeiro de 1809, o Juiz do Povo de Coimbra dirigiu aos habitantes daquela cidade a seguinte alocução:

     «A confiança que em mim tendes posto, amados patrícios, junto ao dever do meu cargo, me põe na necessidade de vos prevenir contra a impressão, que em vossos ânimos possa fazer a perpetua alternativa de novidades exageradas, já ao ponto de vos fazer entregar a um socego perigoso pelo agradável dellas, já ao extremo de vos aterrar, e, se fosse possível, fazer perder o animo que sempre tendes mostrado.
     «Sim, povo fiel e honrado, povo de Coimbra, n'esta cidade grassam todos os dias noticias, que se fazem suspeitar pelas exaggerações absurdas com que são contadas: e quem duvida que isto seja obra d'aquelles que desejam favorecer o partido dos nossos inimigos, ou seja aterrando, ou adormecendo a nação?
     «Portanto tenhamo-nos firmes em o meio termo. O nosso inimigo não é senhor da Hespanha, nem o será com a ajuda de Deus; esta nação briosa derramará todo o seu sangue, primeiro do que consinta declarar-se escrava do maior dos tyrannos; mas se acaso o delírio em que Napoleão se acha, causado pelo transtorno de seus ambiciosos e malignos planos, o conduzir até o ponto de arrojar ás nossas fronteiras alguma porção d'esses infelizes, que com facilidade sacrifica a seus vãos caprichos, corramos a arrostal-os. Povos livres nunca temeram exércitos de escravos. E de os temermos que se nos seguiria? A morte! E ainda peor, para os que vivessem, a escravidão a mais vergonhosa, a mais terrível!
     «Pois bem, concidadãos fieis e honrados, povo valoroso, temos lançado mão das armas, não as larguemos, sem vencer; e se for necessário morrer, a morte é preferível á vil escravidão: cada francez, vós o sabeis, se considerou entre nós, um senhor despótico, que exigia das pessoas mais respeitáveis, officios os mais servis.
     «E' justa a causa que defendemos; e qual de nós duvidará sacrificar-se pela justiça? Eu não creio que haja um só, que queira poupar-se; mas se elle existe, fuja e trema de nós, o seu nome odioso será riscado da lista dos portuguezes.
     «Portanto, amigos fieis, unamo-nos firmes debaixo das ordens sempre respeitáveis do nosso excellentissimo commandante, que pela sua sabedoria, virtudes e valor, tão conhecido se nos fez, quando para sacudir o terrível jugo francez tomou conta do governo d'esta cidade, então ameaçado de mais perto, sem armas e sem outros meios de defeza mais que o valor de seus habitantes. Armas, valor, tudo vence.
     «Coimbra, 23 de Janeiro de 1809. — O juiz do povo, José Pedro de Jesus.»
(…)
     Quem defendia Coimbra nessa altura era uma força conjunta de militares portugueses e Ingleses comandados pelo coronel Trant. O Juiz do Povo de Coimbra pretendeu ser o mais interveniente possível e manter uma estreita relação com o comandante militar, pedindo e dando informações. Beresford, que se encontrava na defesa de Tomar, tendo tido conhecimento do comportamento deste extraordinário juiz, reagiu com a mesma arrogante indignação que usou noutros momentos, condenando esta intromissão de civis nos assuntos da guerra, não reconhecendo a evidência de que o papel dos civis foi decisivo. Sobre este assunto, Beresford escreve ao Juiz do Povo a seguinte missiva:
     «Senhor juiz do povo! Foi com a maior admiração, que sube pela carta do coronel Trant, commandante de Coimbra, que v. m. se atreveu a il-o procurar da parte do povo, querendo-se intrometter no que diz respeito ao movimento das tropas, debaixo das suas ordens, fazendo-lhes representações, e pedindo-lhe ser informado sobre este objecto, como se v. m. ou o povo de Coimbra, podessem ter alguma influencia, no modo de defesa, que se deve adoptar, ou que se tem adoptado para este reino.
     «Este foi o procedimento dos habitantes do Porto, e a causa  da ruina d'aquella rica cidade, e da morte de tantos habitantes. Julgaria eu que este exemplo tivesse mostrado bastantemente a necessidade absoluta de obedecer ás leis e ás auctoridades constituídas em uma cidade, que lhe fica tão próxima como Coimbra; mas sinto infinitamente achar, que os emissários do inimigo têm partidários n'essa cidade, para incitar a insubordinação, e espalhar a desordem e a confusão, pelas quaes só nos pôde arruinar.
     «Ainda que por muitas razões teria grande pena de impor um castigo na cidade de Coimbra, a qual antes quereria favorecer, pelo obsequio e attenção, que n'ella pessoalmente tenho recebido; não obstante, se o povo se atreve a desprezar as leis e a resistir á auctoridade legal, ou de alguma forma a incitar a insubordinação das tropas n'aquellas visinhanças, e se não prestar, como deve, aos chefes militares aquella obediência, que a lei determina, sejam as suas ordens quaes forem, tenho tropas bastante fieis ao seu príncipe e á sua pátria, para os castigar, e não demorarei um instante mandal-os marchar para esse fim.
     «A sujeição que os magistrados têm para a vontade do povo é uma das causas da insubordinação, que reina actualmente n'este reino, e á qual é preciso pôr um termo.
     «V. m. explicará estas intenções, e estes sentimentos aos habitantes de Coimbra, que espero conhecerão, tanto pelo próprio interesse, como pelo da pátria, que esta conducta é incitada pelos emissários francezes, e que adoptem d'aqui em diante um procedimento mais louvável.
     «Ordeno que v. m. immediatamente venha a este quartel general, informar-me do estado das cousas de Coimbra, para que eu possa por elle governar os meus movimentos, e para que v. m. responda do seu procedimento, em se ter atrevido em dictar aos officiaes militares sobre o que diz respeito ao serviço.
     «Quartel General em Thomar, 9 de Abril de 1809. — W. C.
Beresford.»
Vide Guerra peninsular - notas, espisodios e extractos curiosos, Francisco Augusto Martins de Carvalho, Coimbra, 1910, págs. 58-61.




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