Pera Onde Is? rapsódia vicentina (excertos do Auto da Barca do Inferno, do Auto de Mofina Mendes e da Comédia de Rubena) e Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente. Representação pelos alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo (Interpretação), 10.º ano – turma 13, da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, no dia 12 de Junho de 2014. Encenação de Estrela Novais.

PERA ONDE IS? / PARA ONDE IDES?

Com o duplo espectáculo Pera Onde Is? / Farsa de Inês Pereira, a turma 13 do 10.º ano encerrou o primeiro ano da formação em Artes do Espectáculo (Interpretação). Aguardemos pelas surpresas que certamente nos trarão nos próximos dois anos, noutras performances e registos.

Um ar festivo irradiou de toda a representação e encenação. Para isso contribuiu sobretudo o desempenho dos jovens actores mas também os figurinos coloridos e imaginativos, que tiveram o contributo do Teatro da Comuna.

No Auto da Barca do Inferno, o anacronismo das vestes do Fidalgo, de Brízida Vaz e do próprio Diabo e Anjo conferiram ao texto, tantas vezes representado, uma nova perspectiva e actualidade. A postura excessivamente melodramática caiu bem num Fidalgo que tem muito de parasita, arrogante e exibicionista. Brízida Vaz oscilou entre a falsa ingenuidade e um certo sentimento de injustiça de quem vê a sua profissão como útil e imprescindível numa sociedade fechada e hipócrita. Ela lá terá as suas razões! O Diabo, ofuscantemente vermelho e feminino, traduz em parte o velho preconceito contra as mulheres, as sedutoras e causadoras do eterno pecado. O Companheiro, todo vestido de negro, à excepção dos chifres vermelhos, é a outra face da entidade diabólica. O permanente riso e sorriso no rosto de ambos foi o contraponto perfeito à fleuma do Anjo que, aqui e além, deixou assomar uma certa ironia sob a sua aparente neutralidade. Enquanto o Diabo e o Companheiro parecem estar ali em carne o osso, o Anjo parece sempre distante e intocável. Uma abordagem curiosa da eterna luta entre o “bem” e o ”mal”.

Nos excertos do Auto de Mofina Mendes (também designado Auto dos Mistérios da Virgem, 1534) e da Comédia de Rubena, os actores vestiram bem a pele da gente simples do campo, na expressão facial e corporal. O olhar pasmado e ingénuo combinado com uma pitada de matreirice, algum ridículo e muitas gargalhadas espontâneas. O naco de pão na mão, o mastigar de boca cheia enquanto olham ou falam, o eterno cajado de pastores, a cesta que tudo pode levar e trazer, as roupas coloridas, os chapéus de palha… tudo combinado para trazer ao palco a vida simples dos camponeses e pastores.

Provavelmente, no excerto do Auto de Mofina Mendes escapou à maior parte do público o significado mais profundo daquele episódio anedótico, uma cena profana, típica de um auto pastoril, encaixada num auto que tem sobretudo um cariz religioso. O Auto de Mofina Mendes (Auto dos Mistérios da Virgem) foi representado perante D. João III nas matinas do Natal de 1534 e tinha como principal finalidade dramatizar o episódio bíblico da Anunciação (ou Visitação). A par desse mundo sagrado de “verdades” eternas e imutáveis surge a cena profana dos pastores e Mofina Mendes, também ela pastora. Eles representam um mundo imperfeito sujeito às peripécias da sorte e do azar, em grande medida consequência dos seus comportamentos e escolhas. Mofina significa “infelicidade”, “azar”. Mofina Mendes é uma mulher “infeliz” e “azarada” apenas por que vive de ambições e ilusões. Não é uma boa pastora, deixando perder o gado do seu amo (Paio Vaz), mas mesmo assim reivindica o pagamento da “soldada” (salário) que, aparentemente, o seu amo lhe deve há muito. Para se livrar dela, Paio Vaz paga-lhe o salário e dá-lhe ainda um pote de azeite, um pagamento excessivo para quem tinha deixado tresmalhar o gado. Mofina sente-se feliz, esquecendo os danos causados e pensando apenas no lucro que poderia obter se vendesse o azeite na feira. Tanta excitação levou-a a deixar cair o pote que se quebrou. Assim, sem qualquer proveito, perdeu a efémera e imerecida sorte que lhe caíra nas mãos. Mofina chora o azeite derramado, mas em vão. Sintetizando a lição de moral deste episódio, que é também uma espécie de ensinamento teológico-filosófico, a própria Mofina Mendes canta:

Por mais que a dita m’engeite,

Pastores, não me deis guerra;

Que todo o humano deleite,

Como o meu pote d’azeite,

Ha de dar comsigo em terra.

Com estas palavras quer ela dizer que, por mais que a sorte lhe fuja, não merece a inimizade e crítica dos outros pastores, pois são todos humanos e todos estão sujeitos a ver partir-se o seu “pote de azeite” no chão. Isto é, toda a felicidade humana é efémera por natureza e não depende apenas da vontade de cada um. O que Mofina não diz é que o pote de azeite (a sorte) não foi merecido e, por isso, o perdeu tão depressa como o ganhou. Deste ponto de vista, a perspectiva é menos fatalista. A sorte /felicidade merecida pode ser duradoura; o que depressa se acaba é o bem que não se merece… Será? Às vezes sim, outras vezes não. A vida é toda ela demasiado imprevisível para formular axiomas sem excepções…

No diálogo infantil da Comédia de Rubena, representada perante D. João III em 1521, não está presente a verdadeira natureza da trama da peça, que tem um cariz essencialmente mitológico com nuances de conto popular e novela de cavalaria. A pobre pastora (Rubena, filha de Cismena), filha ilegítima dos amores de sua mãe com um clérigo, acaba por casar com um príncipe. Diabos e fadas rodeiam Cismena desde o seu nascimento. Os quatro diabos levam Rubena para o alto de uma montanha para assistir ao parto, que tinha de ocorrer longe dos olhos do mundo por ser uma filha ilegítima. As fadas protegem-na dos perigos e da desdita habitual dos filhos ilegítimos e levam à adopção por uma mulher nobre e rica e ao casamento real. De pastora a princesa… só mesmo nos contos de encantar…

O diálogo infantil dramatizado na rapsódia Pera Onde Is? é apenas um pequeno fragmento da infância de Cismena. Tal como ela, os seus interlocutores são pastores ainda de tenra idade. A postura dos actores simulou bem essa infância simples, que age espontaneamente e ri com a mesma facilidade com que correm os regatos. A única objecção que se pode levantar diz respeito ao ritmo acelerado das falas que impediu a total compreensão do diálogo. A gestualidade e a expressão dos rostos compensaram em parte esta perda das palavras. Dado tratar-se apenas de um fragmento, talvez não ofendesse o mestre Gil a actualização ou “tradução” das falas para um Português mais actual… De certeza que o mestre também não se ofendeu com a combinação de roupas modernas com trajes medievais. O público gostou e isso é que conta. O público não é um cliente nem um ditador e é certamente muito heterogéneo… e ainda bem que assim é. O que seria do teatro sem público, sem um público heterogéneo? O que uns adoram, outros detestam, por isso é tão difícil dizer o que está certo ou errado, nem é isso o que mais importa. Mais importante do que o gosto ou as opiniões pessoais é o respeito pelo trabalho alheio, sobretudo o trabalho dos jovens intérpretes que dão agora os primeiros passos na arte da interpretação. Belos passos, cheios de alegria e entusiasmo!

FARSA DE INÊS PEREIRA (1523)

A primeira originalidade na encenação desta peça, que de imediato saltou aos olhos, foi a opção de apresentar em palco duas Inês Pereira, primeiro lado a lado, entretidas nos seus lavores femininos, depois alternadamente. Ambas vestidas de branco com cintos vermelhos e verdes; a pureza das donzelas rodeada pela esperança e pela paixão. Visualmente, o resultado foi excelente.

Foi uma forma interessante de dar corpo aos dilemas que atravessam a mente de Inês. Ela é duas mulheres numa. Uma quer a segurança e conforto material; a outra quer a ascensão social, o entretenimento, um homem ideal. Uma é loura, outra é morena, mas ambas são ambiciosas e buscam no casamento uma espécie de libertação da casa paterna e do tédio da vida de solteiras. Pura e curta ilusão, numa sociedade em que a mulher é um ser menor e sempre colocada sob o jugo masculino. No fundo, ambas ambicionam o mesmo: liberdade e ascensão social.

Primeiro, fica em palco a Inês morena e chega o primeiro pretendente, o modesto e ingénuo lavrador Pero Marques, a conselho da alcoviteira Lianor Vaz. A rudeza e incultura de Pero não agradam a Inês, nem os seus singelos presentes. Depois vêm os casamenteiros judeus, Latão e Vidal, aconselhando Inês a desposar o Escudeiro Brás da Mata. A Inês morena dá lugar à Inês loura e é esta que escolhe casar com o escudeiro. Inicialmente, o Escudeiro apresenta-se como um cavalheiro sedutor, dado à folia e querendo parecer mais abastado do que é. No entanto, mal o casamento se realiza, ele revela a sua verdadeira natureza de tirano arrogante, possessivo e frio. Parte pouco após o casamento, encarregando o Moço de vigiar e manter dentro de casa a sua jovem mulher. Ironicamente, o Escudeiro é morto por um simples pastor, em circunstâncias não esclarecidas, e não como um herói guerreando numa batalha. Inês não chora a morte do marido, antes regozija e decide finalmente desposar Pero Marques, cumprindo o provérbio popular que terá estado na origem desta farsa: «Antes quero um asno que me carregue do que cavalo que me derrube.»

Inês não alcança o estatuto social que ambicionava, mas conquista a liberdade, demasiada liberdade. Mal contrai matrimónio, começa logo a trair o seu ingénuo marido com um ermitão que fora outrora seu amigo. O cúmulo da ingenuidade é bem visível numa das cenas finais, quando o próprio Pero Marques carrega Inês aos ombros para a levar ao encontro do seu amante…

Todos os jovens intérpretes estão de parabéns! Para o ano, há mais, para ver e aplaudir. Tenham todos umas excelentes e inspiradoras férias.

Seguem-se dois vídeos elaborados com algumas das fotografias que tirei no Auditório da Escola Secundária D. Pedro V, que estava repleto. Segue-se também uma selecção de fotografias. Muitas das que aparecem nos vídeos podem ser vistas nos álbuns do Picasa, também partilhados no Google+.