quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

LENDA & HISTÓRIA III

 OS CASTRO E OS PACHECO

 

     Alguns defendem que a trágica morte de D.ª Inês se deveu apenas à rivalidade e aos conflitos entre duas das mais poderosas e influentes famílias aristocráticas portuguesas: os Pacheco (família genuinamente portuguesa) e os Castro (mistura de sangue castelhano e português). É admissível que este conflito tenha pesado na decisão de eliminar D.ª Inês, mas não é crível que alguém como D. Afonso IV, um rei sensato, pacificador, diplomata e determinado, pelo menos depois de ascender ao trono, tenha sido manipulado a tal ponto.

     Convém, no entanto notar que os Pacheco sempre tinham sido leais servidores da coroa portuguesa e opositores à subserviência de Portugal em relação a Castela e Leão; e os Castro tendiam a inclinar-se para o partido e situação que mais os poderia favorecer. Os Pacheco nunca tentaram arrebatar para si a própria coroa de Portugal ou de Castela; os Castro tentaram fazê-lo diversas vezes e de diversos modos, recorrendo à conspiração, à traição e à manipulação, como aconteceu com o próprio D. Pedro I de Portugal, a quem prometeram a coroa de Castela se os auxiliasse na luta contra o rei castelhano. O próprio D. Pedro manifestou abertamente esta pretensão e causou conflitos desnecessários com Castela. Foi o seu pai, D. Afonso IV, que ergueu a voz contra tal insensatez e o obrigou a desistir de entrar em guerra com Castela para tomar o trono. Não terá desistido por completo porque continuou a cooperar e a servir os intuitos e interesses dos Castro. Mas também não traiu por completo a memória de seu pai, D. Afonso IV, porque ainda antes de morrer jurou herdeiro o seu filho legítimo, D. Fernando.

      «O Infante Pedro de Portugal teria recebido em 1353 a oferta do nobre Álvaro Peres de Castro de assumir o trono castelhano após uma pretensa deposição de Pedro, o Cruel, coordenada por uma coalisão constituída pelos nobres João Afonso de Albuquerque, Fernando Peres de Castro, seu meio-irmão, Álvaro Peres de Castro, apoiados ainda pelos chamados Infantes de Aragão, Fernando e Juan, condutores de uma revolta contra o rei de Castela (D. Pedro I de Castela, o Cruel). Tratava-se, portanto, de uma proposta de colaboração e envolvimento português numa guerra civil em Castela que prometia a princípio, a união dos dois reinos sob a égide portuguesa; uma proposta que, no entanto, o rei português, Afonso IV impede seu filho de aceitar. Em primeiro lugar pela fragilidade das condições de implementação desta promessa para, além disso, outras razões políticas justificariam plenamente as reservas do experiente rei Afonso

 (In Usurpações, casamentos régios, exílios e confiscos, as agruras de um nobre português no século XIV, Fátima Fernandes, Revista de História Helikon, Curitiba, V.2, n.º 2, p. 02-15, 2º semestre, 2014)

      Quem era João Afonso de Albuquerque? Era filho de Afonso Sanches, Senhor de Albuquerque, filho bastardo e predilecto de D. Dinis, pai de Afonso IV e avô de D. Pedro I. Foi mordomo-mor e chanceler-mor de D. Pedro I de Portugal e um elo forte com os Castro. Igualmente interessante é o facto de ter sido aio de D.ª Maria de Portugal (irmã de D. Pedro) e ter sido padrinho de D. Pedro de Castela (filho de D.ª Maria de Portugal) no casamento com D.ª Branca de Bourbon. Foi também um dos membros da corte castelhana que integraram o séquito de D.ª Constança Manuel quando (depois de libertada do Castelo de Toro onde D. Afonso XI a enclausurara) veio para Portugal para casar com D. Pedro I. Nesse mesmo séquito vinha também D.ª Inês de Castro.

D. Afonso Sanches, c. 1289-1329, filho bastardo e predilecto de D. Dinis, senhor de Albuquerque.
(in The Portuguese Genealogy - Genealogia dos Reis de Portugal).

     Foi no Castelo de Albuquerque que D.ª Inês foi criada pela mulher de Afonso Sanches, D.ª Teresa Martins de Meneses, e foi neste castelo que foi exilada por D. Afonso IV, por ser notória e ofensiva a ligação entre D. Pedro e a a aia de D.ª Constança. João Afonso de Albuquerque, para além de primo, era uma espécie de irmão de Inês de Castro, foi criado com ela desde criança sempre com a proximidade de Álvaro Pires de Castro, irmão de D.ª Inês. Tanto Inês como Álvaro eram filhos bastardos de D. Pedro Fernandes de Castro. Segundo Lopez de Ayala (Crónica Geral de Espanha), João Afonso Albuquerque terá sido envenenado por ordem de D. Pedro I de Castela.

D. Pedro I, o Justiceiro ou o Cru.

     Logo no reinado seguinte, D. Fernando, filho de D. Pedro I, cria o título de “Condestável”, em 1382, para D. Álvaro Pires de Castro (1310-1384), irmão de Inês de Castro. O mesmo monarca já tinha criado dois outros títulos, em 1371, para este mesmo Álvaro Pires de Castro: foi o 1.º Conde de Viana da Foz do Lima e o 1.º Conde de Arraiolos.

     A irmã de D.ª Inês de Castro, D.ª Joana de Castro, que seria tão ou mais bela do que D.ª Inês, consegue de facto ascender à realeza, mas por pouco tempo; consta que foi rainha apenas por uma noite. D. Pedro I de Castela, sobrinho de D. Pedro I de Portugal, apaixona-se subitamente por D. Joana de Castro, casa com ela, mas logo a repudia e mata-a. Consta que o rei a terá repudiado logo após a primeira noite em comum e terá sido morta pouco depois. Algumas fontes sustentam não ser completamente verdade; D.ª Joana de Castro terá vivido ainda cerca de um ano (embora repudiada como rainha) e terá tido um filho de D. Pedro I de Castela, em 1354. Assim sendo, as irmãs D.ª Joana e D.ª Inês terão sido assassinadas quase na mesma data. Esta união entre D.ª Joana de Castro e D. Pedro de Castela também terá sido urdida e propiciada pelos irmãos Castro. Eles sabiam bem quão belas e sedutoras eram as suas irmãs, elas podiam ser um meio tão eficaz para conquistar o poder como as conspirações ou o gume da espada. Só não esperariam que ambas acabassem mortas, uma rainha de facto, mesmo que só por um dia ou uma noite (D.ª Joana), a outra, uma rainha simbólica após a morte (D.ª Inês).

     Resta saber o quão envolvidas estavam as irmãs nos planos dos irmãos. Mortas as irmãs, os irmãos Castro continuam próximos de D. Pedro de Portugal, pois havia ainda três filhos vivos de Inês de Castro e de D. Pedro (João, Dinis e Beatriz) que poderiam ascender ao trono. Depois de D. Pedro I de Castela (neto de D. Afonso IV e sobrinho de D. Pedro I de Portugal) ser assassinado pelo irmão bastardo, Henrique de Trastâmara, os irmãos Castro passam a apoiar D. João I de Castela contra D. João I de Portugal, o Mestre de Avis, nas pretensões ao trono de Portugal.

     Simultaneamente, D. Fernando também favoreceu Diogo Lopes Pacheco (c. 1305-1393), conselheiro de D. Afonso IV, acusado de sentenciar D.ª Inês à morte, atribuindo-lhe responsabilidades diplomáticas, incluindo na assinatura do Tratado de Alcoutim (1371). Exilou-se em França mas manteve-se leal a Portugal, regressando ao país após a morte de D. Pedro. Mas chegou de facto a pegar em armas contra Portugal, tal como alguns o acusam, porque considerava o casamento de D. Fernando (filho de D. Pedro) com D.ª Leonor Teles (parente de D.ª Inês por via materna) perigoso para a soberania de Portugal. É obrigado a exilar-se novamente e regressa a Portugal para apoiar o Mestre de Avis (D. João I). Sabe-se que, sendo já octogenário, ainda participou na batalha de Aljubarrota de espada na mão.

     Os Castro sediaram-se na Galiza no século XII e tornaram-se uma das cinco famílias mais influentes de Castela. Pedro Fernandes de Castro, o da Guerra (pai de D.ª Inês) cresceu em Portugal com o seu primo, D. Pedro Afonso, 3.º Conde de Barcelos (o autor do primeiro Livro de Linhagens, filho bastardo de D. Dinis e um dos poucos filhos bastardos deste rei que respeitaram D. Afonso IV, o herdeiro legítimo), habituando-se desde a infância a conviver com reis. Quando regressa a Castela, torna-se mordomo-mor da corte. Casa duas vezes, primeiro com D.ª Beatriz (que era filha de D. Afonso de Portugal, filho de D. Afonso III) de quem não teve filhos; depois casa com D.ª Isabel Ponce de Leão, de quem teve dois filhos: D. Fernando Rodrigues de Castro, o de Toda a Lealdade de Espanha (partidário de D. Pedro I de Castela), que casou com D.ª Joana Afonso, filha de Afonso XI de Castela (marido de D. Maria de Portugal, cunhado de D. Pedro I de Portugal e genro de D. Afonso IV); e D.ª Joana de Castro que veio a casar com D. Pedro I de Castela e foi “rainha por uma noite”. Fora do casamento, teve com a bela portuguesa Aldonça Lourenço de Valadares (filha de Lourenço Soares de Valadares, conselheiro de D. Afonso III e de D. Dinis) dois filhos bastardos: D.ª Inês de Castro e D. Álvaro Pires de Castro (que constituem a linha ilegítima dos Castro). Tal convívio e uniões matrimoniais com membros da alta aristocracia e da realeza despertaram ainda mais a ambição de subir mais alto.

     Séculos mais tarde, a memória maculada destes Castros seria parcialmente redimida por alguns dos seus descendentes. Saliento apenas os dois homónimos João de Castro: um foi o quarto vice-rei da Índia (1500-1548) o outro (c. 1550 - c. 1628) foi historiador e escritor. O primeiro foi aquele que empenhou os ossos do filho, D. Fernando de Castro, morto em batalha, e as próprias barbas como garantia de que cumpriria a sua “palavra de honra”. O segundo opôs-se veementemente à ocupação castelhana a partir de 1580, apoiou D. António, Prior do Crato e foi obrigado a exilar-se em Paris para continuar a escrever e a defender a sua pátria original. Foi ele o verdadeiro fundador do Sebastianismo e do Quinto Império, ideias depois retomadas e desenvolvidas por nomes grandes como o P.e António Vieira e Fernando Pessoa.

D. João de Castro, 1500-1548, 4.º Vice-rei da Índia.

Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, capateiro de Trancoso 
de João de Castro, c. 1550-c. 1623, Ed. José Lopes da Silva, Porto, 1901.
Esta obra foi publicada pela primeira vez em Paris (1603) durante o exílio de D. João de Castro.
Em 1901, o editor José Lopes da Silva encontra um exemplar desta obra no Porto e propõe a Sampaio Bruno que se faça uma edição fac-similada, prefaciada e anotada por este último.

Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, capateiro de Trancoso 
de João de Castro, c. 1550-c. 1623, Ed. José Lopes da Silva, Porto, 1901.
Na página acima, que se segue à folha de rosto, pode ler-se: 
"D. Sebastião, por graça de Deus, Rei de Portugal, aparecido e profetizado".

Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, capateiro de Trancoso 
de João de Castro, c. 1550-c. 1623, Ed. José Lopes da Silva, Porto, 1901.

     Mas para voltar a macular a linhagem dos Castro vieram depois outros, como D. Francisco de Castro, 1574-1653, (neto do vice-rei da Índia D. João de Castro e descendente de Álvaro Pires de Castro), que além de Bispo da Guarda e Reitor da Universidade de Coimbra, foi Inquisidor Mor ou Inquisidor Geral do Santo Ofício, nomeado em 1629. Compilou um minucioso código legal do Tribunal do Santo Ofício para que nenhum “hereje”, Judeu, bruxa, mezinheiro, dissidente político ou pacato cidadão pudesse fugir ao longo braço da Inquisição e às labaredas das suas insaciáveis fogueiras. Muitas dezenas de desgraçados perderam a vida por sua ordem… uma vergonhosa honra… Colocou-se ao lado dos Filipes e foi por eles recompensado, em 1611, com o cargo de Presidente da Mesa de Consciência e Ordens. Em 1619, participou nas Cortes que Filipe II celebrou em Lisboa para jurar herdeiro o seu filho, futuro Filipe III (de Portugal). De modo oportuno e conveniente, após a Restauração (1 de Dezembro de 1640), muda radicalmente a sua posição política e coloca-se ao lado de D. João IV. Mas logo foi descoberta uma conspiração para incendiar o palácio real e assassinar D. João IV e, segundo alguns, este pio inquisidor faria parte da trama. Esteve preso durante dois anos na Torre de Belém, mas como bom inquisidor, foi perdoado e reintegrado no quadro dos funcionários da corte e em todos os importantes cargos que antes tivera, todos conquistados durante o domínio filipino. Só com ironia se pode exclamar: “Abençoada seja a incoerência, o oportunismo e o nepotismo, pois desinteressada misericórdia não foi certamente…” (cf. Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza, Tomo I, Pedro José de Figueiredo, Lisboa, 1817).

D. Francisco de Castro, 1574-1653, o Inquisidor Geral.
(In Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza
Tomo I, Pedro José de Figueiredo, 1762-1826, Lisboa, 1817).

Lopo Fernandes Pacheco, 1280-1349, pai de Diogo Lopes Pacheco, 
tutor e Mordomo-Mor de D. Pedro e chanceler da rainha D. Beatriz.
(In Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza
Tomo I, Pedro José de Figueiredo, 1762-1826, Lisboa, 1817).

Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), navegador, militar e cosmógrafo português. 
Autor do Esmeraldo de Situ Orbis, c. 1505-1507, foi uma das testemunhas portuguesas 
na cerimónia de assinatura do Tratado de Tordesilhas em 7 de Junho de 1494.

A Revolução da experiência - Duarte Pacheco Pereira e D. João de Castro
Idearium, Antologia do Pensamento Português, Edições SNI, 1947.
Nesta obra reúne-se o pensamento pioneiro de um Castro e um Pacheco.
D. João de Castro inaugurou o profetismo sebastianista e a ideia de Quinto Império; Duarte Pacheco Pereira foi um percursor do experimentalismo, defendendo o primado da observação e da experiência, além de ter sido, provavelmente, o primeiro a chegar ao Brasil (por volta de 1498) e a explorar as costas e ilhas da América do Sul, Central e das Antilhas. Na sequência da assinatura do Tratado de Tordesilhas, D. Manuel I terá enviado Duarte Pacheco Pereira numa viagem de reconhecimento secreta.


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