TESES
LITERÁRIAS E ENGANADORAS
Uma das teses, meramente literária e completamente descabida, defende que a morte de Inês de Castro se deveu a um amor não correspondido de Diogo Lopes Pacheco por D.ª Inês. Na perspectiva de Fernão Lopes, Diogo Lopes Pacheco apenas tenta afastar D. Pedro de D.ª Inês porque sabia que era uma relação perigosa para a paz e a soberania nacionais e que desagradava a D. Afonso IV. Na verdade, havia até uma grande proximidade entre D. Pedro e D. Diogo, já que parte da infância de ambos tinha sido passada na casa de D. Lopo Fernandes Pacheco (1280-1349), pai de D. Diogo, conselheiro de D. Afonso IV, mordomo-mor e chanceler de D.ª Beatriz (mulher de D. Afonso IV), testamenteiro de D.ª Isabel (mulher de D. Dinis), meirinho-mor e mordomo-mor do infante D. Pedro (futuro D. Pedro I), além de ter sido encarregue por D. Afonso IV da educação dos infantes D. Pedro (I) e D.ª Leonor:
«Fernão Lopes defende outra versão, a de que Pacheco em cuja Casa o Infante Pedro foi criado por seu pai Lopo Fernandes Pacheco com quem dividiu boa parte de sua infância e juventude teria muitas vezes alertado o seu amigo e futuro rei da necessidade de afastar Inês do alcance e da sanha que contra ela alimentava Afonso IV.»
(In Usurpações, casamentos régios, exílios e confiscos, as agruras de um nobre português no século XIV, Fátima Fernandes, Revista de História Helikon, Curitiba, V.2, n.º 2, p. 02-15, 2º semestre, 2014)
Júlio
de Castilho foi um dos que propagou esta tese (cf. D. Ignez de Castro - drama em cinco actos e em verso, Júlio de Castilho
(1840-1919), B. L. Garnier, Rio de Janeiro, 1875). No prólogo, em que traça um
retrato das personagens principais e explica as suas escolhas dramáticas, dá a
entender que esta perspectiva tem uma dimensão sobretudo literária e não
genuinamente histórica. Comparando a forma como trata cada uma das personagens,
e percebendo-se que há uma necessidade dramática de culpabilizar alguém, compreende-se
por que escolheu Diogo Lopes Pacheco. Dado que D. Afonso IV revelou muitas e
boas qualidades enquanto monarca, Júlio Castilho preferiu não destruir com a
Literatura essa imagem histórica. De qualquer modo, Júlio de Castilho não
pretendia escrever ou reescrever a História; o seu “drama” (não tragédia) situa-se
entre a História e a Lenda, reclamando naturalmente a liberdade criativa a que
tinha direito. Os excertos seguintes comprovam esta abordagem: (foi mantida a
grafia original)
«Nunca esta obra saberia aspirar aos altos foros litterarios de tragedia; a não ser pelo assumpto, que esse é dos mais trágicos da chronica portugueza. Não podendo pois edificar uma tragedia, na vasta significação d'essa palavra, contentou-se o autor com uma tentativa de drama.» (…)
«Abramos o livro da nossa historia.» (…) «É essa, em dois traços, a historia-lenda da collo-de-garça.» (…)
«Eleita a scena e chamados os actores,
agrupou-os, metteu-os na sua perspectiva; depois pôz-se a escutá-los. Escutar
os personagens é o melhor meio de compor um drama; é talvez o único. Os
personagens não são titeres; são homens, ou foram-no. Ouvi-los
é a arte.»
Referindo-se a D. Pedro I, que divide em dois, o
infante e o rei, de forma a atenuar a violência das atrocidades cometidas:
«Houve de um (infante) para outro (rei) um reviramento, uma completa metamorphose. Suspeitamos até que o monstruoso Rei, a que alguns chamam Justiceiro, não tem perfeitas as faculdades mentaes. Só assim lhe atenuamos a imputação das inqualificáveis e sanguinosas demasias.» (…)
«Assim, n'estas manifestações tão diversas
do seu caracter, julgamos haver bosquejado a difficil personalidade do
Justiceiro.»
Sobre D.
Afonso IV diz o seguinte:
«Quanto a El-Rei D. Affonso: disse-nos a
meditação que as suas constantes tergiversações n'este demorado negocio, taes
como no-las apresenta a tradição, eram um signal de que se pode ser o vencedor
do Salado, e um dos homens mais valentes do seu século, e ao mesmo passo
trepidar, hesitar, cair, quando a sangue frio se planeie, n'um recinto pouco
menos que domestico, a morte de uma mulher que não tem culpas.
Para explicar esse dúbio comportamento em
tal homem, posémo-lo como que entalado entre a pressão enérgica dos seus
conselheiros, e as persuasões suaves de uma esposa presadissima, e digna de o
ser; indeciso entre o temor das suas altas responsabilidades reaes para com o
povo, e a affeição paternal que dedicava a seu filho, e dedicaria á propria D.
Ignez. D'essa luta de opposições saiu o caracter, que (bem ou mal) ahi
supposémos a El-Rei.
Era convencimento nosso que o seu retrato
moral anda falseado por todos quantos crêem epilogar-lhe o julgamento com
dizerem: foi mau filho, mau pae, mau irmão, e sogro cruel. Não; El-Rei D. Affonso
IV não foi isso. Aquelle coração nobilíssimo, aberto a todos os rasgos, era
(principalmente na madureza dos annos) cheio de mysteriosos cambiantes, que a
poesia, bem mais do que a fria observação da historia, pode adivinhar,
surprehender, e fixar. Aquella alma austera mas terna; leal, e fraca;
desinteressada, e cavalleirosa, padeceu muito! e do seu estirado supplicio não
poucos vestigios restam no longo, no trabalhoso fluctuar de tantos annos, entre
os deveres de Monarcha, tal como lhos pintava a barbaria do tempo, e o suave
pendor de pae.
Entendeu pois o autor
d'este drama dever pôr em evidencia, e com imparcialidade, o duro papel que as
circumstanciás forçaram o Soberano a aceitar na inaudita condemnação de
Ignez. Para quem meditar, tem consideráveis atenuações um tão brioso homem de
armas, que assim se tornou, sem o querer, um algoz.»
No que toca ao retrato dos três conselheiros de D.
Afonso IV, Júlio de Castilho não recorreu apenas à conjectura; faz acusações
directas à lealdade de Pero Coelho ao seu rei e ao seu país, apaga quase completamente
Álvaro Gonçalves e coloca em Diogo Lopes Pacheco a causa principal do
assassinato de D.ª Inês.
«Para variar quanto possível o caracter
dos tres históricos matadores, fez-se de Pero Coelho um intrigante politico vendido aos
castelhanos, e oppondo-se, pelo muito oiro que lhe chovia da banda de Castella,
ao casamento do Infante com D. Ignez, casamento que, de um modo ou de outro,
cedo ou tarde, podia roubar (como com effeito esteve talvez a pique de roubar)
o sceptro ao primogénito, o senhor D. Fernando, vindo a caducar assim certas
influencias de Castella na corte de Portugal. Alvaro
Gonçalves por conveniencia scenica ficou mais em sombra, sem deixar de
conspirar no mesmo conluio de rufiães.
A alma porem da conjuração é Diogo Lopes Pacheco, que fizemos (carreguem os
seus lémures com mais esta) amante repudiado da
linda Ignez. É pois elle quem, por um ciúme concentrado e constante, vai
movendo a trama, que perdeu a innocente; é elle quem, sempre prompto, doble e
flexivel, tem na mão as chaves que lhe abrem, ora os cofres de Castella, ora o
coração da Rainha, ora a annuencia pusillanime d'El-Rei (permitia-nos esse
tremendo qualificativo a memoria do valoroso Monarcha).
Poderá parecer ousadia
insustentável a indole do papel que distribuimos a Diogo Pacheco; e
poderá objectar-se-nos que nada auctorisa a cre-lo
rival do Infante D. Pedro. Ao reparo contestaríamos o seguinte:
No meio de tammanho esquecimento, como o
que ennevoou este caso todo, a verdade guardou-a Deus para si; mas a tradição e
o grande instincto nacional não desligam o Senhor de Ferreira de Aves do
attentado de 1355. Assim pois, ficava á poesia dramática a liberdade ampla de fazer entrar esse cavalleiro do modo
que mais conviesse.
De tantas negruras como as que encerrou
esta lugubre tragedia, inspiradora de lyras em todo o mundo, temos por certo
que a historia não disse tudo. A historia
calou-se com a chave de um cerrado enigma: com o verdadeiro porquê d'aquelle
iniquissimo assassinamento de uma mulher. Ali havia causa latente (que hoje não
sabemos rastrear) para tão acirrados odios, para enredos tão porfiados, para
desfecho tão indigno dos punhaes de tres fidalgos.
Supposémos amores n'esse motivo occulto; a cinco séculos de distancia era já licito no theatro interpretar assim livremente a historia patria; e Deus sabe se a intuição do dramaturgo não acertaria!
Suppra mais esta conjectura em cinco actos o silencio das chronicas.»
A liberdade criativa é legítima, mas é bom não confundir a ficção com a História. Esta tese dos ciúmes que conduzem à vingança e ao assassinato revestiu diversas variantes. Numa das versões francesas da história-lenda de Inês de Castro, a morte de D.ª Inês deve-se aos ciúmes desvairados de uma das suas aias, Elvira (cf. Historia de dona Ignez de Castro – Traduzida do Francês, Typographia Rollandiana, Lisboa, 1827). Nesta versão, Elvira é D.ª Elvira Gonçalves, irmã de D. Álvaro Gonçalves, um dos conselheiros de D. Afonso IV, considerado um dos responsáveis pela morte de Inês e barbaramente executado a mando de D. Pedro. Nesta versão, é Álvaro Gonçalves quem está apaixonado por D.ª Inês e ajuda a irmã, abandonada por D. Pedro, a arquitectar a morte de Inês… Para quem desconhece a História, ler e acreditar nestas histórias pode ser muito enganador… Eis alguns excertos exemplificativos:
«Não era Constança a única que devia queixar-se de D. Pedro. Antes do seu divórcio de Branca, já tivera inclinação a Elvira Gonçalves, irmã de D. Álvaro Gonçalves, favorito do Rei de Portugal, e o que apenas fora mero divertimento na mocidade deste Principe, fez nella huma tao profunda irapressão, que o infeliz estado de Branca lhe fizera esperar que poderia hum dia desposar D. Pedro. Com secreto dissabor vio ella preencher Constança o lugar de que fora lisonjeada a sua ambição, e os encantos desta Princeza lhe fizerao mui cedo perder a esperanca de agradar para o futuro ao seu esposo.
O ciume que disso teve, lhe fez examinar
com cuidado todas as acções do Principe. Percebeo facilmente a sua frieza para com sua esposa, e suspeitou com
razão que tinha o coração preoccupado de novos affectos.
Propoz-se fortemente a contraria-los por toda a sorte de meios, assim que
pudesse descobrir qual era o seu objecto. Tinha ella hum espirito capaz de
emprehender as cousas mais atrevidas, e o credito de seu irmão tornava-a tão
vã, que a mesma indifferença que D. Pedro lhe
testemunhava, nao era bastante para abaixar o seu orgulho. (…) Ficou
Elvira furiosa ao ouvir estas palavras: representou-se-lhe ao mesmo tempo Ignez
de Castro com todos os seus attractivos, e não duvidando já que fosse ella que
possuisse o coração de D. Pedro, concebeo tamanho
odio a esta bella rival, como o amor que a elle tinha. (…)
(…) Inês fala com Constança: De Elvira he que
o Principe está apaixonado; elle a amava já
antes de ser vosso, mesmo antes do seu divorcio de Branca. Ter-vos-hão
sem dúvida feito huma infiel relação desta intriga da sua rnocidade. Mas, Senhora, depois do laço sagrado que o
une a vós, decerto não ama ninguem mais.
(…)
Em
quanto estas tres desgracadas pessoas (Constança, Pedro e Inês) se abandonavao ao seu desgosto, Elvira, para não deixar imperfeita a sua vinganca,
procurou os meios de torna-la completa. Como julgava com razão que o Rei não approvaria o amor de D. Pedro a D. Ignez de
Castro, descobrio-o a D. Alvaro, seu irmao. Tinha ella tanta maior razão
para contar com elle, que este lhe mostrava muita amizade, e não ignorava que o
Principe a havia amado. A paixao secreta que D.
Alvaro sentia por Ignez, fez-lhe tornar hum grandissimo interesse nesta
novidade: o cuidado que elle tivera na sua fortuna, lhe havia impedido até então
o descobrir-lha, e esperava que o seu favor junto do Rei lhe obtivesse
dignidades, que tornassem mais agradavel a offerta do seu coração.»
(In Historia de dona Ignez de Castro – Traduzida do Francês, Typographia Rollandiana, Lisboa, 1827, págs. 7-27)
Na Nova Castro, de João Baptista Gomes, também aparece uma Elvira, mas é uma aia e confidente de D.ª Inês completamente dedicada à sua senhora. Nesta obra, Inês confessa-se culpada pelo sofrimento de Constança e merecedora do maior sofrimento e castigo. Elvira conforta-a e incentiva-a a prosseguir com a relação adúltera com D. Pedro, colocando o bem-estar e prazer de D. Pedro acima de todas as coisas:
Elvira (fala com D.ª Inês)
Oh! Ceos! Na primavera de teus annos,
Engolfada em fataes, loucos pezares,
Tu própria buscas terminar teus dias,
Sem que ao menos te lembres que depende
Da tua vida a vida do consorte;
Que huma lagrima só que tu derrames.
Se o Principe jamais a divisasse,
Seria de sobejo a envenenar-lhe
O terno coração, que affagar deves!...
Se neste estado agora elle te achasse,
Em que estado sua alma ficaria?
Por seu amor te rogo, enxuga o pranto,
As afflicções desterra, em que soçobras.
(In Nova Castro, tragedia, João Baptista Gomes (c. 1775-1803), Na Impressão Régia, Lisboa, 1815, p. 7)
CENA MACABRA
Por muito que a lenda queira, também não há prova alguma de que tenha ocorrido o beija-mão da corte ao esqueleto de D.ª Inês. Em 1361, quando o cortejo fúnebre seguiu do Mosteiro de Santa Clara em Coimbra para o Mosteiro de Alcobaça, o corpo de D.ª Inês era apenas um amontoado de ossos (um corpo humano leva 5 a 6 anos a decompor-se na totalidade até só restarem alguns ossos). Alguns autores mais sensatos falam apenas na “trasladação das cinzas”; outros falam objectivamente da “trasladação do cadáver”; outros (Antero de Figueiredo) falam do “esqueleto verde e fétido de Inês de Castro”; e há ainda aqueles que falam de um corpo intacto, sem sinais de degenerescência (Marquês de Resende citado por Sousa Viterbo)... Outros dizem o mesmo de D. Pedro (um “corpo incorrupto”, cf. Historia chronologica, e critica da Real Abbadia de Alcobaça, da congregação Cisterciense de Portugal, Lisboa, 1827, p. 20).
Num tempo de excessos e acontecimentos devastadores, como os surtos de peste negra (peste bubónica), que, a partir de 1348, espalharam a morte por toda a parte, não é crível que os cortesãos se dignassem beijar um amontoado de ossos. Segundo Fortunato de S. Boaventura, em 1348, num só mês morreram 150 monges do Mosteiro de Alcobaça (cf. Historia chronologica, e critica da Real Abbadia de Alcobaça, da congregação Cisterciense de Portugal, Lisboa, 1827, p. 178). E os surtos de peste continuaram a surgir ciclicamente nas décadas seguintes. É no entanto plausível pensar que D. Pedro tenha ordenado que se criasse alguma espécie de efígie pictórica que representasse simbolicamente D.ª Inês e que os membros da corte lhe tenham prestado homenagem, por vontade própria ou forçados, pois D. Pedro não se eximia de cortar cabeças, queimar pessoas vivas ou sujeitá-las a torturas horrendas. E os seus súbditos sabiam isso melhor do que ninguém.
Nesta matéria, é espantoso o poder da
opinião pública e dos leitores. Na primeira edição da Nova Castro (1803), tragédia de João Baptista Gomes Júnior (c.
1775-1803), não existia a cena da coroação de D. Inês depois de morta. Mas para
agradar a um certo número de leitores, o editor vê-se obrigado a acrescentar
essa “cena”, já depois da morte do autor. De algum modo, o editor sentiu-se
culpado por esta deturpação da obra original que não teria agradado ao autor e
chamou-lhe “mutação”, acompanhada por esta nota: «A lembrança de que muitas pessoas desejam ver no fim daquela óptima
Tragedia uma Coroação, fez com que se imprimisse esta, apesar da falta de unidade que há, o que forma um erro dramático, que
o seu Autor não desculparia se existisse, —o Editor.» Mesmo assim, o
editor não se eximiu de colocar na página de rosto um subtítulo apelativo «Correcta de muitos erros, e aumentada com a
brilhante cena da COROAÇÃO.» Não tenho dúvidas de que esta condescendência
para com o gosto de um certo público ajudou a vender muitos mais exemplares desta
obra.
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