Pedro & Inês
ENTRE A LENDA & A HISTÓRIA
Os amores de D. Pedro I e de D.ª Inês de
Castro ficaram gravados na memória popular e na Literatura como símbolo do amor
eterno, um amor maior do que a vida e a morte. É pelo menos essa a perspectiva
adoptada na lenda e na maioria das obras literárias. A História, por seu lado, revela
factos que em muito contradizem a Lenda e a Literatura. Na lenda popular e nas
páginas literárias, tanto Pedro como Inês surgem como seres imaculados, vítimas
da perfídia alheia, incapazes de qualquer maldade, conduzidos apenas pelo amor.
Um amor que se torna maior também porque é proibido, condenado pela autoridade
paterna de D. Afonso IV (pai de D. Pedro) e por todos os que colocavam a
segurança e a preservação da nação acima de todas as coisas.
Poucos são os autores que escreveram sobre
os amores reais de Pedro e Inês, sobre as pessoas de carne e osso, sobre a
psicologia oculta sob os actos individuais ou que nomeiam e elucidam as
motivações políticas que se escondem por trás do assassinato de D.ª Inês de
Castro. Isso significaria destruir uma das mais belas e imortais histórias de
amor. Quem ler as crónicas históricas e algumas monografias e biografias de D.
Pedro e de D.ª Inês pode até ficar baralhado. Como é que D. Pedro, homem de
carácter doentio, propenso à violência desmedida, obcecado com a punição dos “pecados
da carne”, hipocritamente moralista, pode ser considerado um símbolo de um amor
maior? Causa um arrepio pensar que a aceitação tácita ou até a apologia de tal
carácter e forma de actuar parece corresponder a um paradigma de algo doentio
na identidade nacional e na forma como se abordam e toleram certos “crimes
passionais” como se fossem naturais e justificáveis. E chega a ser estranha a
forma como alguns autores, incluindo historiadores, tentam conciliar lenda e
história. É difícil, para não dizer absurdo, descrever num parágrafo algumas
das atrocidades mais perversas cometidas por D. Pedro e, mais adiante,
descrevê-lo como um ser “bom, generoso e justo”. A pessoa que sentia um prazer
mórbido em torturar e executar homens e mulheres é a mesma que era, de facto,
muito generosa com os seus fiéis servidores, cúmplices e mancebas. D. Pedro
tem, de facto, facetas muito contraditórias que seriam até consideradas
incompatíveis num ser são e equilibrado. Só um ser psicótico pode ser dividido
desta forma e sempre com a noção de que se trata de facto de um caso patológico.
Uma face tenta branquear ou ocultar a outra. No entanto, não há seres bons
entre as dez e o meio-dia e maus durante o resto do dia; todas as acções vêm da
mesma mente, do mesmo eu, consciente e responsabilizável. A Lenda, a Literatura
e até a História têm usado uma dualidade de critérios éticos, talvez até de
forma inconsciente, criando monstros onde eles não existem e ocultando monstros
onde eles existem de facto. Cruzar a Lenda, a Literatura e a História ajuda a
evitar estes extremos e a destrinçar interpretações subjectivas e interesses
políticos e pessoais dos factos (aqueles que se conhecem).
Embora considere a verdade como o valor
máximo em todos os domínios da vida, eu própria (como professora) sempre falei
com alguma contenção sobre esses factos ocultos ou habitualmente relegados para
um plano muito secundário. A história de amor, tal como a Literatura a
apresenta, é em si mesma um valor e um símbolo. Quem souber distinguir a História
da Lenda, poderá ler / ouvir os factos e continuar a tomar a lenda como símbolo
e inspiração. Mas normalmente, os mais jovens não estão preparados para fazer
esta distinção e chegam a sentir-se enganados pela bela Lenda e pela
Literatura. Ou então ficam muito zangados com o mensageiro que lhes trouxe a
verdade ou lhes mostrou outra face da moeda.
Tanto D. Pedro I como D.ª Inês de Castro
estão longe de ser dois seres puros e imaculados. Os amores de Pedro e Inês são
adúlteros e destrutivos desde o início, facto muito comum na época e
tacitamente aceite por muitos, mas apenas no que toca ao adultério masculino,
sobretudo nos estratos sociais mais elevados. A traição e a poligamia eram
toleradas e até consideradas naturais no homem mas inaceitáveis nas mulheres. D.
Pedro, que foi um rei adúltero desde que casou com D. Constança, foi também o
rei que puniu de forma mais raivosa e violenta o adultério (cf. Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes). D.
Pedro tinha no sangue a mesma propensão para a infidelidade que o seu avô, D.
Dinis que ― a par do seu bisavô, D. Afonso III, e de D. João V ― foi daqueles
que teve maior número de barregãs e de filhos naturais (bastardos).
Note-se que os filhos naturais ou
bastardos da realeza e da nobreza tinham, regra geral, um destino muito diferente
dos enjeitados colocados na Roda dos Expostos. Os primeiros eram tão ou mais
favorecidos do que os filhos legítimos, causando revolta, conflitos e guerras
(como aconteceu com D. Afonso IV e D. Dinis por este favorecer desmedidamente
Afonso Sanches, filho bastardo e predilecto, em detrimento do filho legítimo,
D. Afonso IV, embora essa não tenha sido a única causa do conflito). As
crianças “enjeitadas”, que tanto podiam ser filhos dos poderosos, dos humildes
ou de membros do clero, regra geral, eram colocadas na Roda dos Expostos e
recolhidos por orfanatos e instituições religiosas. Raras vezes estes
“enjeitados” eram criados e protegidos por alguém rico e poderoso, excepto
quando o “enjeitado” não era afinal filho de pais anónimos e pobres, mas de
algum(a) notável que fingia uma enorme generosidade no acto de adoptar um(a)
filho(a) que afinal era seu.
O adultério de D. Pedro com D.ª Inês era
condenado pela corte e pela maioria dos nobres por representar uma ameaça para a
independência e estabilidade do reino, não por razões morais. Mas era bem
aceite por uma parte considerável do povo, pelo menos até ao momento em que a
ambição desmedida dos irmãos Castro se tornou mais notória. Esta simpatia
popular resulta de características e comportamentos paradoxais de D. Pedro: por
um lado, D. Pedro era um folgazão que adorava festas, danças, música e grandes
caçadas; por outro lado, era um justiceiro sanguinário que tanto punia o plebeu
como o poderoso.
Esta combinação de barbárie e “justiça” férrea com a folia parecia agradar a uma parte do povo daquele tempo. Hoje, até poderíamos pensar naqueles políticos demagogos e populistas que mantêm o povo submisso e contente com umas migalhas de pão e circo, usando a retórica fácil para manipular e agradar, mesmo que a corrupção grasse por toda a parte e essa base popular se mantenha paupérrima e sem esperança à vista. Mas havia também uma parte do povo que não apreciava a relação perigosa entre D. Pedro e uma dama que consideravam leviana, ambiciosa e maquiavélica. Esta opinião negativa ficou plasmada em adágios populares que mencionam explicitamente o nome de D.ª Inês, como há outros de semelhante teor sobre D.ª Leonor Teles (mulher de D. Fernando, filho de D. Pedro I): «Inês! Às três o Diabo fez e Inês é morta!»… Como se a morte de Inês fosse a consequência natural do seu pacto com o diabo. (cf. O Grande Livro dos Provérbios, José Pedro Machado).
Afonso XI viria a ser cunhado de D. Pedro
I, já que casou com a sua irmã mais velha, D.ª Maria de Portugal, a Formosíssima Maria, 1313-1357, rainha de
Castela, também maltratada e repudiada pelo marido em prol de uma das
concubinas, Leonor de Gusmão. Antes de repudiar D.ª Maria de Portugal, Afonso
XI já tinha repudiado D.ª Constança Manuel (que viria a ser mulher de D. Pedro)
e D. Pedro já repudiara D.ª Branca de Castela, 1319-1375. Afonso XI também já tinha quebrado um
contrato matrimonial com D. Branca e assassinou o tio desta, João de Haro, o Torto, que deveria ter-se tornado seu
marido. Além disso, apropriou-se dos muitos bens de D.ª Branca e distribuiu-os
pelos seus filhos bastardos, tidos com Leonor de Gusmão. Após a morte de
Afonso XI, D. Maria de Portugal manda matar Leonor de Gusmão, não por motivos passionais
mas por motivos políticos; os bastardos de Afonso XI e de Leonor de Gusmão
tentavam usurpar a coroa, e conseguiram, quando Henrique de Trastâmara mata D.
Pedro I de Castela, filho de D. Maria de Portugal e legítimo herdeiro do trono
castelhano.
Consta que, desde o início, D. Pedro se
terá apaixonado por D.ª Inês e terá desde logo estabelecido uma relação amorosa
com ela. Ainda assim, aceita casar com D.ª Constança, respeitando o contrato
matrimonial previamente estabelecido por seu pai, D. Afonso IV. D. Pedro, um
homem tão determinado e aguerrido noutras situações, não teve coragem para
recusar o casamento com D.ª Constança, tal como já tinha recusado casar com D.ª
Branca de Castela (recusa partilhada por D. Afonso IV), por esta ser considerada
“imbecil” e frágil. Justificação curiosa que soa falsa, pois logo em seguida D.ª
Branca foi nomeada senhora do Mosteiro
de Santa María la Real de Las Huelgas, em Burgos, instituição que dirigiu até à
sua morte. Este mosteiro era o mais importante de Castela na Idade Média;
estava reservado às donzelas e senhoras nobres e possuía uma das melhores
bibliotecas da época, que continha até obras proibidas pelo índice
expurgatório.
D.ª Constança Manuel (1316-1345), que já
passara também pela humilhação de ser repudiada por Afonso XI de Castela, após
dois anos de casamento, humilhação e clausura, não tinha qualquer escolha. As
decisões respeitantes ao matrimónio eram tomadas pelos pais quando as crianças
eram ainda de tenra idade. Não foi exactamente o caso de D.ª Constança, neste
segundo casamento, quando já tinha cerca de 23 anos (D. Pedro, 1320-1367, tinha
apenas 19 anos e D.ª Inês tinha 15 ou 16). Mas foi o caso do próprio D. Afonso
IV (1291-1357) que casou com D.ª Beatriz de Castela (1293-1359) em 1309, quando
tinha apenas 18 anos e o contrato matrimonial já estava estabelecido desde os
seus seis anos de idade.
Como era hábito, após a assinatura do
contrato matrimonial, a futura mulher, D.ª Beatriz, veio para Portugal com
apenas 4 anos (tinha D. Afonso 6) e foi criada pelos futuros sogros, sobretudo
por D.ª Isabel de Aragão (mulher de D. Dinis). Assim, D. Afonso IV e D.ª
Beatriz cresceram juntos desde a mais tenra idade. O casamento durou até à
morte (48 anos de vida comum) e, que se saiba, D. Afonso IV (além de D. Sancho
II e do Cardeal D. Henrique) foi o único rei de Portugal que não teve uma única
“barregã” ou “manceba” (amante). Por que será que ainda ninguém se lembrou
ainda de escrever uma obra sobre este verdadeiro e eterno amor? Talvez porque
não fez correr sangue, não foi violento, não destruiu a vida de ninguém e não
constitui um motivo literário atractivo como, regra geral, acontece com as
tragédias.
D.ª Constança Manuel, mulher já sofrida e
desgastada, tinha uma saúde muito débil, agravada com o sofrimento permanente
que lhe causava a pública infidelidade de D. Pedro. Após o casamento, só durou mais
cinco anos; morreu cerca de duas semanas após dar à luz o futuro rei D.
Fernando (1345). Antes, já fora mãe de D.ª Maria (de Aragão) que casou com D.
Fernando de Aragão e do infante Luís de Portugal, que morreu uma semana após o
nascimento.
Cerca de um ano após a morte de D.ª
Constança, D. Afonso IV ainda tentou casar D. Pedro de novo com uma ou outra dama
da corte portuguesa, aragonesa ou castelhana, mas D. Pedro recusou, alegando
não ter feito ainda o luto da sua mulher (D. Constança) o que soava a pretexto
falso uma vez que mantinha uma relação amorosa com D.ª Inês desde que esta
chegara com D.ª Constança.
Este carácter evasivo e dissimulado
contrasta com a determinação que assumiu posteriormente quando travou uma
guerra civil de puro ódio destrutivo contra o pai (D. Afonso IV), os nobres e o
povo que se lhe opôs ou quando assistiu à tortura e execução perversa dos supostos
assassinos de Inês (Álvaro Gonçalves e Pero Coelho) enquanto comia deliciado
(cf. Crónica de D. Pedro I, Fernão
Lopes). Torturou-os, mandou arrancar-lhes o coração enquanto vivos, queimou-os
depois e, não satisfeito com a barbárie, ainda terá dado umas dentadas em cada
coração ensanguentado. Para o coração de Pero (ou Pedro) Coelho terá até pedido
sal e cebola… Tais actos evocam a imagem de uma espécie de Hannibal Lecter
medievo coroado (O Silêncio dos Inocentes,
Jonathan Demme, 1991), só que o nosso monarca, em vez de ser julgado um
psicótico sádico e amoral, é venerado e tornou-se símbolo nacional da justiça e
de um amor maior do que a própria vida…
Incomoda a imagem extremamente positiva
que a maioria dos cronistas e escritores dão de D. Pedro, incomoda a forma como
os actos mais bárbaros são justificados e até elogiados, incomoda a forma como
D. Afonso IV é denegrido, incomoda a forma como o estatuto ou a linhagem do
sangue se sobrepõe aos actos. Mas esta foi apenas uma das execuções
sanguinárias a que assistiu ou executou com as próprias mãos, sempre possuído
por um furor sádico, vingativo e insaciável. A este rol de crueldades chamaram
muitos “justiça” e a lenda que se construiu é cúmplice desta terrível visão da
Justiça. Não foi em vão que lhe atribuíram o cognome de Cru ou Cruel (e também o
de Justiceiro), mas quando se
conhecem os factos, incomoda profundamente que se atribua uma conotação
positiva a tais epítetos. Houve até alguém (William Thomas Beckford,
1760 – 1844) que lhe chamou “Pedro,
o Justo”!
Embora D. Pedro se tenha comprometido com
o seu pai, D. Afonso IV, através da assinatura da Paz de Canaveses (5 de Agosto
de 1355), a perdoar e não perseguir os que tinham estado envolvidos no
assassinato de D.ª Inês, logo que o rei morreu, D. Pedro dedicou-se
inteiramente a uma vingança cega e cruel. Estabeleceu com D. Pedro I de Castela
um pacto vergonhoso que previa a troca dos conselheiros de D. Afonso IV, que se
tinham refugiado em Castela, a conselho do próprio rei que conhecia bem o
íntimo violento do filho, por quatro fidalgos castelhanos que se tinham exilado
em Portugal para escapar à sanha vingativa do outro Pedro, o Cruel, sobrinho de
D. Pedro I de Portugal. Diogo Lopes Pacheco conseguiu escapar, mas os outros
dois foram capturados, torturados e executados de forma hedionda. Mais uma vez,
D. Pedro colocou acima de tudo o seu egoísmo e a sede de sangue e vingança. A
violência de D. Pedro foi ainda exacerbada pela dignidade dos conselheiros
capturados que se mantiveram em silêncio e de cabeça erguida, apesar da idade
já avançada e de terem passado cinco dias sem comer. Esse amor incondicional a
Portugal, D. Pedro não o compreendia. O seu amor ao reino prendia-se mais com o
prazer de ser adorado por uma parte do povo e de impor a sua vontade por todos
os meios.
Os dois conselheiros de D. Afonso IV que
foram presos, Álvaro Gonçalves (que fora meirinho-mor) e Pero Coelho (que fora
aio e tutor do próprio D. Pedro), apesar das torturas horríveis a que foram
sujeitos, nunca confessaram ser os autores do assassínio e compreende-se
porquê: porque queriam acima de tudo preservar a soberania nacional; porque
queriam salvaguardar a honra do rei D. Afonso IV, a quem tinham sido sempre
fiéis; e porque não foram certamente eles os executores materiais do
assassínio. Essa tarefa era sempre deixada a pessoas de “baixa condição”, um
carrasco ou algoz oriundo do povo. D. Pedro foi, provavelmente, o único rei
português que torturou e executou com as próprias mãos.
D. Pedro dedicava-se a uma “justiça” preventiva
que infundia terror e, contraditoriamente, adoração. Tanto lhe importava o
crime deveras cometido como a possibilidade de vir a ser cometido. Pelo terror
impunha a ordem e consolidava o poder, tal como qualquer déspota. A este
propósito, diz Fernão Lopes:
«E
quando lhe diziam que punha mui grandes penas por
mui pequenos excessos, dava resposta dizendo assim, que a pena que os
homens mais receavam era a morte, e que se por esta se não cavidassem de mal
fazer, que às outras davam passada, e que boa cousa
era enforcar um ou dois, pelos outros todos serem castigados, e que assim o
entendia por serviço de Deus e prol de seu povo.» (in Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes)
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