quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

TEATRO NA ESCOLA XXXIII

A Medida da Vida

 Leandro, Rei da Helíria, peça de Alice Vieira interpretada pelos alunos de Artes do Espectáculo (10.º 13) da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 7/2/2020. Encenação: Victor Sezinando. Captação de imagem e montagem de vídeo: São Ludovino.

     Todas as histórias nascem do seio da vida, de uma forma ou outra. Os primeiros mitos, as primeiras lendas, as primeiras epopeias nasceram de vivências reais e do modo como o Mundo foi interpretado num dado momento da História e da vida real dos povos. Crenças, saber e imaginação formaram o molde primordial. Lá dentro os povos verteram o seu próprio ser colectivo, mesmo que as primeiras palavras tenham saído de uma única boca. Nos contos e lendas, o individual e o colectivo tornam-se indistintos logo que cada voz se apropria deles.

     Antes de existirem escolas e instrução pública, antes da filosofia e da ética, do direito e da política, essas narrativas anónimas, que teimam em não morrer, revelaram, ensinaram, separaram o bem do mal, sintetizaram o essencial e mostraram caminhos aos anciãos e aos aprendizes, ao rei e ao escravo. Por isso, encontramos estas narrativas nos quatro cantos do mundo, são intemporais e universais. Revelam afinidades e cristalizam diferenças. A matriz é humana, a expressão diversa, o horizonte ideal e fantástico. E assim, sem alterar de modo radical a face do Mundo, construíram outros mundos, outros modos de ver e viver, denunciaram poderosos, fizeram justiça metafórica, subverteram a ordem social, esboçaram utopias, tudo em simples histórias. Através da palavra, o bem venceu o mal e a injustiça; o desconcerto, o absurdo, o desequilíbrio da ordem social, as assimetrias materiais, culturais e éticas, os actos prepotentes dos intocáveis foram banidos ou punidos por quem não tinha poder nenhum.  

     O conhecido e o desconhecido, a realidade e a fantasia, os factos e as lendas, os sonhos e as utopias entrelaçaram-se e continuaram a viver de modo indistinto nas histórias populares ou eruditas. Homero registou por escrito (Odisseia e Ilíada) as histórias e as lendas que já corriam há gerações de boca em boca. Garrett fez o mesmo no Romanceiro, tal como já o tinha feito Herculano nas Lendas e Narrativas, e, já antes dele, Gonçalo Fernandes Trancoso o tinha feito nos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575). Os Românticos (tal como Herculano ou Garrett) aperceberam-se disso melhor do que ninguém. Perceberam que cabia aos doutos ouvir a voz do povo, preservá-la, recriá-la e dar-lhe uma nova vida e um novo fôlego. Cada novo tempo recria o antigo com novas roupagens, novas linguagens e propósitos.

     Os Realistas e Positivistas, como Teófilo Braga, continuaram o trabalho de recolha dos contos tradicionais que perduravam na cultura popular. O conto número 50 dos Contos Tradicionaes do Povo Portuguez, de Teófilo Braga (1883), intitula-se O Sal e a Água (ou Comida Sem Sal) e narra uma história idêntica à que encontramos em Leandro, Rei da Helíria. Retoma, de certo modo, a lenda do Rei Leir (Rei Lear) que já aparecia no Nobiliário de D. Pedro, Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis. Narrativas idênticas aparecem na cultura popular de todos os cantos do mundo. 

     A história subjacente ao enredo da peça Leandro, Rei da Helíria, de Alice Vieira, tem a mesma origem, lá longe no tempo onde a história e a lenda se fundem, tal como o próprio Rei Lear, de Shakespeare, que se inspirou em velhas lendas britânicas. Este é pois um texto dramático feito de múltiplos ecos que vêm de um passado indefinido e longínquo e se prolongam em múltiplos presentes. Até na própria sonoridade do título encontramos o eco do nome de Lear (ou Leir): no próprio nome Leandro e no nome do reino de Helíria em que ressoa o nome de Hélade (região central da Antiga Grécia) ou Hélios (deus do Sol) mas também Lear (o rei trágico, traído pelas próprias filhas a quem entregou o reino) e lírio (a flor, símbolo da pureza e da inocência), que neste conto não é um lírio mas uma violeta.

     Nesta história, Leandro, rei da Helíria, está velho e pressente o seu fim. Um sonho inquietante e premonitório mostra-lhe que o seu reino está prestes a perecer e o seu poder real a desvanecer-se. Desabafa com o Bobo, mostra-lhe o seu medo, a angústia de sentir que tudo terá um fim próximo e ele nada pode fazer, apesar de ser rei. A transitoriedade da vida faz-se anunciar com a velhice e mostra-lhe como tudo passa: o poder, a riqueza, a solidez do reino. Tenta ancorar-se no amor das três filhas (Amarílis, a mais velha, Hortênsia, a filha do meio, e Violeta, a mais nova). Num enganador exercício de egocentrismo, tenta averiguar a medida do amor de cada uma: quanto o amam, afinal, e qual delas o ama mais. A hipocrisia e dissimulação das duas mais velhas, acompanhadas pelas hipérboles da lisonja bem-falante, convencem-no de que é amado por elas acima de todas as coisas. A simplicidade e sinceridade da mais nova chocam-no («Quero-vos como a comida quer ao sal.») Prefere a bela superficialidade das palavras lisonjeiras à simplicidade da verdade.

     Tal como não consegue interiorizar verdadeiramente a ideia de que tudo é efémero (o poder, a riqueza material, a própria vida) também não percebe que os verdadeiros sentimentos não se escondem sob máscaras, são simples e autênticos, transcendem as palavras e o jogo das aparências. Medir o amor das filhas é uma forma vã de ludibriar a finitude de tudo e se convencer que, se for amado acima de todas as coisas, continuará a ser poderoso e imperecível. Está certo e errado. O amor verdadeiro não morre, mas o “amor interesseiro morre quando acaba o interesse”. Depois de dividir o reino entre as duas filhas mais velhas, acaba por ser repudiado por elas, que não têm paciência para “aturar velhos”. Deambula durante longo tempo por montes e vales, sempre acompanhado pelo Bobo, até chegar a um reino muito diferente (o reino de Reginaldo e Violeta, a filha mais nova). Nesse reino não há pelourinhos ou chibatas, não há escravatura, cada um é livre de pensar e ser quem é e as portas do palácio real abrem-se para todos.    

     Se o ponto de partida é uma história da tradição popular (um rei tenta medir o amor das filhas por si, acabando por repudiar a mais nova, a única que realmente o amava), o curso da peça percorre muitos outros caminhos. Mais do que a “lição de vida” ou a “lição moral” dos contos tradicionais, o mais importante é o confronto entre múltiplas visões da vida, condicionadas quer pelo carácter das personagens quer pelo meio social que representam. Ao longo de toda a acção, o Bobo comenta os acontecimentos, reflecte, critica e satiriza à maneira de certas personagens vicentinas. Adapta-se, porque não pode mudar o Mundo radicalmente (Bobos e Reis não podem trocar verdadeiramente de lugar, como o Rei diz desejar em certo momento de desespero), e contesta jocosamente porque essa é a única forma de provocar a mudança possível. Ele é o crítico do rei mas também o seu guia. Revela simplicidade e sabedoria, lirismo e sarcasmo, a persistência e o optimismo dos pessimistas, acreditando que a longa caminhada, a fome e a intempérie, a escuridão da gruta do pastor onde se abriga com o rei o hão-de levar a um desenlace feliz e redentor.

     Enquanto o Bobo mantém a lucidez, o rei parece alucinado. Esfomeado e envolto em andrajos ainda lhe perpassa pela mente a ilusão de ser rei e poderoso, de ter ainda o seu reino e poder fazer “justiça” com as próprias filhas que o escorraçaram. Logo a seguir nega sequer ter filhas, apenas tem um reino onde regressará. E assim, sem haver efectivamente troca de papéis sociais, o rei torna-se bobo e o Bobo torna-se rei. É ele, o Bobo-Rei, que mostra o caminho e conduz Leandro, o Rei-Bobo, à redenção possível. Não é o rei que faz “justiça”, é Violeta, a filha banida, que sem chibatas nem pelourinhos, mostra a evidência da verdade, a única que realmente importa, a justiça possível. Servindo ao rei, seu pai, sucessivos pratos cozinhados sem sal, mostra aquilo que realmente lhe fazia falta: o amor que, mesmo invisível e simples, tudo transformava. Este é, pois, mais um conto sobre o egoísmo, o perigo das aparências e o poder transformador do amor, o verdadeiro, o único que pode ser chamado amor. 

Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.

     No palco, despojado, simétrico e minimalista, o Bobo e Leandro, são os principais interlocutores, mas o verdadeiro protagonista é o amor personificado por Violeta. Veste-se da cor das violetas, é sincera e emotiva. O roxo, que simboliza a paixão, o sofrimento (a cor do manto de Cristo prestes a ser crucificado), prenuncia desde logo o triste fado que a espera. Nem por um momento vacila, aceita a desdita e a injustiça e segue o seu caminho, que será futuramente bem mais auspicioso do que o do pai que a repudiara. 

     As irmãs mais velhas, Amarílis e Hortência, surgem como caricaturas de si mesmas. De modos enfatuados, deixam transparecer nos gestos e nas palavras a dissimulação, o calculismo, a frivolidade e a ambição. Os seus pretendentes, os príncipes Felizardo (noivo de Amarílis, a mais velha) e Simplício (noivo de Hortênsia, a irmã do meio) são também caricaturas e tipos sociais. Felizardo é um novo-rico sem grandes princípios que mede o seu próprio valor pelo montante dos seus bens. Simplício é, como o nome indica, um indivíduo simplório com capacidades intelectuais limitadas e pouquíssima assertividade, limitando-se a corroborar o que os outros dizem com uma única frase, que repete até à exaustão, até se tornar uma bengala anedótica: «Tiraste-me as palavras da boca». Estes pretendentes não são relevantes em si mesmos, apenas enfatizam o carácter das irmãs, fazendo o espectador exclamar interiormente: “Os pares perfeitos para estas duas donzelas!»


Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.

     O único que parece conhecer tudo e todos desde o início é o Bobo. Aparece vestido como o tradicional “bobo do rei”, diz graçolas e faz cabriolas, mas também age e fala com perspicácia e discernimento, sobretudo quando se dirige ao rei e avalia a sua conduta. Por isso, a acção vai muito além da medida dos afectos; é uma história sobre a medida da própria vida e as vicissitudes da condição humana, sobre os governantes e os governados. Sem os comentários do Bobo, as relações sociais, a fragilidade de toda a matéria e todo o poder, a busca do próprio sentido da vida perder-se-iam numa história de ambição e ingratidão em que o cerne é sempre o carácter e o amor.

     Alice Vieira (re)escreveu esta história sob a forma de um texto dramático em que funde a linguagem tradicional com a intemporalidade das relações sociais. Esta encenação, de Victor Sezinando, combina estas mesmas nuances, a linguagem e os modos de outrora e os figurinos, atitudes e fundo musical de agora.

     Os jovens intérpretes, que se encontram no primeiro ano do curso de Artes do Espectáculo, corresponderam com empenho à especificidade dos seus papéis, mantendo-se entre a contenção, que permite que o outro fale e seja visto, e o exagero do tom e dos gestos que contribuíram para acentuar a comicidade de algumas situações e das personagens em si mesmas. O resultado final foi o de um espectáculo completo, unindo o entretenimento às emoções humanas e à reflexão introspectiva. Uma respeitosa vénia para o encenador e todos os participantes. Continuem empenhados e certamente terão ainda muito para dar!

São Ludovino, 9/2/2020

Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.

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Leandro, Rei da Helíria - Encenação de Victor Sezinando

Encenação / Staging

Victor Sezinando

 Elenco / Cast

Rei - Sandro Brandão
Bobo - Marta Gomes
Hortênsia - Luana Lobo
Amarílis - Jéssica Gomes
Violeta - Rafaela Cruz
Príncipe Felizardo - Luana Santos (noivo de Amarílis)
Príncipe Simplício - José Barata (noivo de Hortênsia)
Príncipe Reginaldo - Márcia Carvalho
Pastor, Conselheiro, Arauto & Escrivão - Sofia Nunes
Aias - Joana Martins & Érica Soutelos

Fotografia & Vídeo

São Ludovino

 

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     Seguem-se algumas páginas do Diário de Um Idiota, escritas cerca de três meses após ter assistido à peça. Podia ter escrito muitas mais páginas. Estas linhas são apenas uma pequena manifestação de solidariedade para com o Bobo do Rei da Helíria, um ser que nada tem de insignificante embora seja permanentemente tratado como se fosse “ninguém”.

 

DIÁRIO DE UM IDIOTA

(fragmentos)

 

* Dia de ventania, poeira e frutos silvestres

     Pouco importa que dia é hoje. Os pensamentos não se sujeitam à cronologia dos calendários ou à cadência das horas canónicas. Quando muito, sujeitam-se à cadência dos passos do meu amo e ao desvario das suas alucinações.

     Não é doido, bem sei, nem sequer é tido por crédulo ou idiota. Por definição o idiota sou eu. E ainda bem que assim é, pois é desse estatuto que me advém a pouca liberdade de que efectivamente disponho nos meus dias. Só os meus pensamentos continuam livres. Ora são um vendaval que tento amainar, ora são grãos de poeira que me fazem chorar.

     ― Porque choras? ― Pergunta o meu amo. ― Tu não tens preocupações, nada tens, nada perdes e nada ganhas…

     ― É só a poeira dos vossos passos que entra para os meus olhos quando caminho atrás de vós.

     ― Ora, ainda bem que caminhas atrás ou seria eu a receber a tua poeira.

     ― Mas poderia eu caminhar a vosso lado, majestade? Ainda mais sendo o vosso guia… Como posso guiar-vos ou amparar os vossos passos incertos, se escondeis de mim o horizonte? ― Perguntei-lhe.

     ― O horizonte só a mim pertence. Sou eu o rei e senhor de todas as terras e caminhos…

    Pobre diabo, nem sabe para onde caminha. Anunciei-lhe que se aproximava a hora do almoço e afastei-me para colher amoras. Caminhei bem adiante dele. Olhei-o coberto pelos seus andrajos e não vi rei algum em parte alguma. Mas eu sou um pobre idiota com um coração mole, um idiota sem qualquer credibilidade. Nunca menti na minha vida. Ainda assim, todos tomam por patranhas e graçolas as minhas palavras mais sinceras.

     Sua majestade almoçou uma mão-cheia de amoras, sentado numa pedra a meu lado, sempre convencido de que estava à minha frente. Só em movimento, enquanto caminhamos por algum caminho, se pode dizer que um vai à frente e o outro vai atrás… e apenas se for o caminho certo… ou então será tudo ao contrário. Mas quando nos sentamos, imóveis, sob alguma árvore, ninguém conseguiria dizer quem está à frente e quem está atrás.

     Respirei fundo e saboreei a minha mão-cheia de amoras, em nada menos saborosas ou nutritivas do que as que dei ao meu amo.

 

* Dia de falar com as pedras e abençoar o Sol

 

     Depois de muitas horas caminhando sob a chuva, tinha a roupa ensopada e os ossos enregelados. O meu amo ia praguejando enquanto tropeçava em quase todas pedras do caminho. Eu preferia contorná-las ou chutá-las para a berma, um método fácil de evitar a dor e alguma queda de consequências imprevisíveis. Lembrei-me de um dos sonhos do meu amo: caminhava pelas veredas do jardim do seu palácio, muito limpas e aplanadas. Ainda assim, a cada passo que dava, sentia que pedras pontiagudas lhe rompiam as solas dos sapatos de couro e veludo e lhe penetravam na carne, deixando-lhe os pés cobertos de feridas. Na altura, observei que, talvez, se andasse descalço, tal não aconteceria, talvez as pedras afiadas estivessem dentro dos sapatos e não fora, porque as veredas estavam de facto muito limpas. Claro que o meu amo me chamou idiota e ameaçou enclausurar-me durante longos dias numa masmorra escura.

     Sabendo que era bem capaz de cumprir a ameaça, não insisti no meu argumento, embora estivesse razoavelmente convencido de que estava certo.

     Entretanto, as nuvens afastaram-se ligeiramente e o Sol começou a brilhar. O meu amo decidiu fazer uma pausa para secar a roupa e dormir uma sesta. Aproveitei a ocasião para lhe guardar os sapatos já rotos na minha bolsa e pus a roupa a secar nos ramos de uma árvore. Não sabia então se tivera algum sonho auspicioso durante a sesta, o certo é que acordou mais bem-disposto e afável comigo. Deixou-me vesti-lo sem resmungar e ergueu-se para continuar a caminhada. Os sapatos continuavam na minha bolsa.

     Até onde os meus olhos conseguiam abarcar, via bem que o caminho era bem incerto e pedregoso. Agora era chegada a ocasião de verificar se o meu argumento estava realmente certo. Mais do que na fé, confiei na sabedoria do espírito e na coragem.

     Sua majestade caminhava bastante lesto e determinado. Quase não olhava o chão e, ainda assim, quase não pisou uma única pedra, e eram muitas. Em dado momento, chamou-me para próximo de si e disse-me que tivera um sonho sobre um caminho pedregoso. Sonhara que caminhava descalço e que, mesmo assim, não se feria nos pés, não tropeçava nem caía.

     ― Acho que este sonho me fez bem porque agora nem sinto as pedras do caminho. E agora, diz-me tu, por que razão já não me magoam as pedras?

     ― Perdoai-me a ousadia, majestade, mas a razão é muito simples. Acontece que enquanto sonháveis, eu andei adiante por esse caminho e conversei com todas as pedras. Contei-lhes quem éreis, o grande rei de todo este território e de todos os caminhos, e elas acederam prontamente a desviar-se dos teus passos, por muito incertos que fossem.

     ― Por uma vez, acredito em ti, meu bobo. Até as pedras se afastam para deixar passar um grande rei.

     ― Claro, majestade, nem podia ser de outra forma ― anui sorrindo para os poucos botões que ainda me restam.  

     Nessa noite, voltei a calçar-lhe os sapatos e sua majestade continuou a acreditar que até as pedras o veneravam.

     Sendo eu o mais leal e sincero dos bobos, espero que ninguém duvide da minha palavra, porque eu falei de facto com as pedras, só não posso revelar inteiramente o que lhes disse.

 

* Dia de semear ventos e colher tempestades

 

     O conceito que sua majestade fazia de si mesmo era inalterável, acontecesse o que acontecesse. Não sei quantas fronteiras já atravessáramos nem quem vivia e reinava naquelas paragens. Do seu ponto de vista, aquelas terras, aquelas florestas, aquelas gentes eram suas e sobre tudo podia exercer o seu poder ilimitado.

     Após uma curva estreita do caminho, deparámos com um magote de gente que comia e conversava à sombra de uma árvore. Sua majestade quis saber o que faziam ali aqueles maltrapilhos. Por que não estavam a trabalhar nos campos, por que não estavam acorrentados, por que ousavam levantar os olhos daquele modo quando o olhavam. Não se pode dizer que aqueles pobres camponeses tenham sido insolentes ou provocadores, mas foi assim que sua majestade os viu.

     Perguntou-lhes quem eram e sem esperar resposta, ordenou que fossem trabalhar os campos, que lhe trouxessem o melhor das suas colheitas, que se ajoelhassem e lhe beijassem o manto. A mim ordenou-me que acorrentasse aqueles que lhe pareciam os mais rebeldes e os possíveis instigadores daquele movimento de insurreição contra a sua propriedade e autoridade.

     Sem contestar, baixei-me e enrolei alguns juncos tenros aos tornozelos de alguns. Ao mesmo tempo, fiz-lhes sinal para que fossem beijar o manto de sua majestade, que não passava de um trapo esfrangalhado.

     Satisfeito com os salamaleques, sua majestade, dirigiu-se então ao aglomerado:

     ― Porque sou bondoso e misericordioso, aceito a vossa submissão e perdoo-vos. Ide agora trabalhar e trazei-me o melhor das colheitas destas terras que são minhas.

     Um deles, com menos disposição para alinhar em farsas, não esteve com meias palavras.

     ― Os homens nascem, os reis fazem-se. Nenhum de nós fez de ti nosso rei e nenhum de nós te deu as nossas terras. São nossas porque o nosso rei, muito diferente de ti, no-las deu e porque somos nós quem as trabalha. Retira-te, pois para o teu reino, seja ele onde for, ou vem trabalhar connosco e terás direito ao teu quinhão legítimo.

     Voltaram-lhe costas e prosseguiram o seu caminho. Sua majestade ficou furibunda e praguejou a plenos pulmões: “Para a roda, para a fogueira! Que não reste um único desta espécie!” Ordenou que os seus exércitos dizimassem aquela escumalha e exigiu-me que lhe trouxesse o seu cavalo para que ele mesmo lhes desse caçada e os trespassasse com a sua espada invencível.

     No tom mais humilde que me foi possível adoptar, disse-lhe que provavelmente os seus exércitos, se existissem, ainda iam levar muitos dias até chegarem àquele território. Podia até dar-se o caso de se perderem pelo caminho ou decidirem desertar mal chegassem a um lugar tão pacífico e justo. Quanto ao seu cavalo, tão transparente como o próprio vento, como ele podia constatar com os seus próprios olhos, corria livremente por entre o feno verdejante.

     Penso que nem terá ouvido as minhas explicações porque logo a seguir vi-o caminhar a galope, aos solavancos como quem vai na garupa de um cavalo, manejando furiosamente uma espada imaginária que ia cortando o ar.

     Às vezes, ainda me pergunto por que mantenho este diário. Ninguém acreditará nestas narrativas, excepto, talvez, algum idiota como eu.

São Ludovino, 3/5/2020

 

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