A Medida da Vida
Leandro, Rei da Helíria, peça de Alice Vieira interpretada pelos alunos de Artes do Espectáculo (10.º 13) da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 7/2/2020. Encenação: Victor Sezinando. Captação de imagem e montagem de vídeo: São Ludovino.
Todas as histórias nascem
do seio da vida, de uma forma ou outra. Os primeiros mitos, as primeiras
lendas, as primeiras epopeias nasceram de vivências reais e do modo como o
Mundo foi interpretado num dado momento da História e da vida real dos povos.
Crenças, saber e imaginação formaram o molde primordial. Lá dentro os povos
verteram o seu próprio ser colectivo, mesmo que as primeiras palavras tenham
saído de uma única boca. Nos contos e lendas, o individual e o colectivo
tornam-se indistintos logo que cada voz se apropria deles.
Antes de existirem escolas e instrução
pública, antes da filosofia e da ética, do direito e da política, essas
narrativas anónimas, que teimam em não morrer, revelaram, ensinaram, separaram
o bem do mal, sintetizaram o essencial e mostraram caminhos aos anciãos e aos
aprendizes, ao rei e ao escravo. Por isso, encontramos estas narrativas nos
quatro cantos do mundo, são intemporais e universais. Revelam afinidades e
cristalizam diferenças. A matriz é humana, a expressão diversa, o horizonte
ideal e fantástico. E assim, sem alterar de modo radical a face do Mundo,
construíram outros mundos, outros modos de ver e viver, denunciaram poderosos,
fizeram justiça metafórica, subverteram a ordem social, esboçaram utopias, tudo
em simples histórias. Através da palavra, o bem venceu o mal e a injustiça; o
desconcerto, o absurdo, o desequilíbrio da ordem social, as assimetrias
materiais, culturais e éticas, os actos prepotentes dos intocáveis foram
banidos ou punidos por quem não tinha poder nenhum.
O conhecido e o desconhecido, a realidade
e a fantasia, os factos e as lendas, os sonhos e as utopias entrelaçaram-se e
continuaram a viver de modo indistinto nas histórias populares ou eruditas.
Homero registou por escrito (Odisseia
e Ilíada) as histórias e as lendas
que já corriam há gerações de boca em boca. Garrett fez o mesmo no Romanceiro, tal como já o tinha feito
Herculano nas Lendas e Narrativas, e,
já antes dele, Gonçalo Fernandes Trancoso o tinha feito nos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575). Os Românticos (tal como
Herculano ou Garrett) aperceberam-se disso melhor do que ninguém. Perceberam
que cabia aos doutos ouvir a voz do povo, preservá-la, recriá-la e dar-lhe uma
nova vida e um novo fôlego. Cada novo tempo recria o antigo com novas
roupagens, novas linguagens e propósitos.
Os Realistas e Positivistas, como Teófilo
Braga, continuaram o trabalho de recolha dos contos tradicionais que perduravam
na cultura popular. O conto número 50 dos Contos
Tradicionaes do Povo Portuguez, de Teófilo Braga (1883), intitula-se O Sal e a Água (ou Comida Sem Sal) e narra uma história idêntica à que encontramos em Leandro, Rei da Helíria. Retoma, de
certo modo, a lenda do Rei Leir (Rei
Lear) que já aparecia no Nobiliário
de D. Pedro, Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis. Narrativas
idênticas aparecem na cultura popular de todos os cantos do mundo.
A história subjacente ao enredo da peça Leandro, Rei da Helíria, de Alice
Vieira, tem a mesma origem, lá longe no tempo onde a história e a lenda se
fundem, tal como o próprio Rei Lear,
de Shakespeare, que se inspirou em velhas lendas britânicas. Este é pois um
texto dramático feito de múltiplos ecos que vêm de um passado indefinido e
longínquo e se prolongam em múltiplos presentes. Até na própria sonoridade do
título encontramos o eco do nome de Lear (ou Leir): no próprio nome Leandro e
no nome do reino de Helíria em que ressoa o nome de Hélade (região central da
Antiga Grécia) ou Hélios (deus do Sol) mas também Lear (o rei trágico, traído
pelas próprias filhas a quem entregou o reino) e lírio (a flor, símbolo da
pureza e da inocência), que neste conto não é um lírio mas uma violeta.
Nesta história, Leandro, rei da Helíria,
está velho e pressente o seu fim. Um sonho inquietante e premonitório
mostra-lhe que o seu reino está prestes a perecer e o seu poder real a
desvanecer-se. Desabafa com o Bobo, mostra-lhe o seu medo, a angústia de sentir
que tudo terá um fim próximo e ele nada pode fazer, apesar de ser rei. A
transitoriedade da vida faz-se anunciar com a velhice e mostra-lhe como tudo
passa: o poder, a riqueza, a solidez do reino. Tenta ancorar-se no amor das
três filhas (Amarílis, a mais velha, Hortênsia, a filha do meio, e Violeta, a
mais nova). Num enganador exercício de egocentrismo, tenta averiguar a medida
do amor de cada uma: quanto o amam, afinal, e qual delas o ama mais. A
hipocrisia e dissimulação das duas mais velhas, acompanhadas pelas hipérboles
da lisonja bem-falante, convencem-no de que é amado por elas acima de todas as
coisas. A simplicidade e sinceridade da mais nova chocam-no («Quero-vos como a comida quer ao sal.»)
Prefere a bela superficialidade das palavras lisonjeiras à simplicidade da
verdade.
Tal como não consegue interiorizar verdadeiramente
a ideia de que tudo é efémero (o poder, a riqueza material, a própria vida)
também não percebe que os verdadeiros sentimentos não se escondem sob máscaras,
são simples e autênticos, transcendem as palavras e o jogo das aparências.
Medir o amor das filhas é uma forma vã de ludibriar a finitude de tudo e se
convencer que, se for amado acima de todas as coisas, continuará a ser poderoso
e imperecível. Está certo e errado. O amor verdadeiro não morre, mas o “amor
interesseiro morre quando acaba o interesse”. Depois de dividir o reino entre
as duas filhas mais velhas, acaba por ser repudiado por elas, que não têm
paciência para “aturar velhos”. Deambula durante longo tempo por montes e
vales, sempre acompanhado pelo Bobo, até chegar a um reino muito diferente (o
reino de Reginaldo e Violeta, a filha mais nova). Nesse reino não há pelourinhos
ou chibatas, não há escravatura, cada um é livre de pensar e ser quem é e as
portas do palácio real abrem-se para todos.
Se o ponto de partida é uma história da
tradição popular (um rei tenta medir o amor das filhas por si, acabando por repudiar
a mais nova, a única que realmente o amava), o curso da peça percorre muitos
outros caminhos. Mais do que a “lição de vida” ou a “lição moral” dos contos
tradicionais, o mais importante é o confronto entre múltiplas visões da vida,
condicionadas quer pelo carácter das personagens quer pelo meio social que
representam. Ao longo de toda a acção, o Bobo comenta os acontecimentos,
reflecte, critica e satiriza à maneira de certas personagens vicentinas.
Adapta-se, porque não pode mudar o Mundo radicalmente (Bobos e Reis não podem
trocar verdadeiramente de lugar, como o Rei diz desejar em certo momento de
desespero), e contesta jocosamente porque essa é a única forma de provocar a
mudança possível. Ele é o crítico do rei mas também o seu guia. Revela simplicidade
e sabedoria, lirismo e sarcasmo, a persistência e o optimismo dos pessimistas,
acreditando que a longa caminhada, a fome e a intempérie, a escuridão da gruta
do pastor onde se abriga com o rei o hão-de levar a um desenlace feliz e
redentor.
Enquanto o Bobo mantém a lucidez, o rei
parece alucinado. Esfomeado e envolto em andrajos ainda lhe perpassa pela mente
a ilusão de ser rei e poderoso, de ter ainda o seu reino e poder fazer
“justiça” com as próprias filhas que o escorraçaram. Logo a seguir nega sequer
ter filhas, apenas tem um reino onde regressará. E assim, sem haver
efectivamente troca de papéis sociais, o rei torna-se bobo e o Bobo torna-se
rei. É ele, o Bobo-Rei, que mostra o caminho e conduz Leandro, o Rei-Bobo, à
redenção possível. Não é o rei que faz “justiça”, é Violeta, a filha banida,
que sem chibatas nem pelourinhos, mostra a evidência da verdade, a única que
realmente importa, a justiça possível. Servindo ao rei, seu pai, sucessivos
pratos cozinhados sem sal, mostra aquilo que realmente lhe fazia falta: o amor
que, mesmo invisível e simples, tudo transformava. Este é, pois, mais um conto
sobre o egoísmo, o perigo das aparências e o poder transformador do amor, o
verdadeiro, o único que pode ser chamado amor.
No palco, despojado, simétrico e
minimalista, o Bobo e Leandro, são os principais interlocutores, mas o
verdadeiro protagonista é o amor personificado por Violeta. Veste-se da cor das
violetas, é sincera e emotiva. O roxo, que simboliza a paixão, o sofrimento (a
cor do manto de Cristo prestes a ser crucificado), prenuncia desde logo o
triste fado que a espera. Nem por um momento vacila, aceita a desdita e a
injustiça e segue o seu caminho, que será futuramente bem mais auspicioso do
que o do pai que a repudiara.
As irmãs mais velhas, Amarílis e
Hortência, surgem como caricaturas de si mesmas. De modos enfatuados, deixam
transparecer nos gestos e nas palavras a dissimulação, o calculismo, a frivolidade
e a ambição. Os seus pretendentes, os príncipes Felizardo (noivo de Amarílis, a
mais velha) e Simplício (noivo de Hortênsia, a irmã do meio) são também
caricaturas e tipos sociais. Felizardo é um novo-rico sem grandes princípios
que mede o seu próprio valor pelo montante dos seus bens. Simplício é, como o
nome indica, um indivíduo simplório com capacidades intelectuais limitadas e
pouquíssima assertividade, limitando-se a corroborar o que os outros dizem com
uma única frase, que repete até à exaustão, até se tornar uma bengala
anedótica: «Tiraste-me as palavras da boca». Estes pretendentes não são
relevantes em si mesmos, apenas enfatizam o carácter das irmãs, fazendo o
espectador exclamar interiormente: “Os pares perfeitos para estas duas
donzelas!»
O único que parece conhecer tudo e todos
desde o início é o Bobo. Aparece vestido como o tradicional “bobo do rei”, diz
graçolas e faz cabriolas, mas também age e fala com perspicácia e
discernimento, sobretudo quando se dirige ao rei e avalia a sua conduta. Por
isso, a acção vai muito além da medida dos afectos; é uma história sobre a
medida da própria vida e as vicissitudes da condição humana, sobre os
governantes e os governados. Sem os comentários do Bobo, as relações sociais, a
fragilidade de toda a matéria e todo o poder, a busca do próprio sentido da
vida perder-se-iam numa história de ambição e ingratidão em que o cerne é
sempre o carácter e o amor.
Alice Vieira (re)escreveu esta história
sob a forma de um texto dramático em que funde a linguagem tradicional com a
intemporalidade das relações sociais. Esta encenação, de Victor Sezinando,
combina estas mesmas nuances, a
linguagem e os modos de outrora e os figurinos, atitudes e fundo musical de
agora.
Os jovens intérpretes, que se encontram no
primeiro ano do curso de Artes do Espectáculo, corresponderam com empenho à
especificidade dos seus papéis, mantendo-se entre a contenção, que permite que
o outro fale e seja visto, e o exagero do tom e dos gestos que contribuíram
para acentuar a comicidade de algumas situações e das personagens em si mesmas.
O resultado final foi o de um espectáculo completo, unindo o entretenimento às
emoções humanas e à reflexão introspectiva. Uma respeitosa vénia para o
encenador e todos os participantes. Continuem empenhados e certamente terão
ainda muito para dar!
São Ludovino, 9/2/2020
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Leandro, Rei da Helíria - Encenação de Victor Sezinando
Encenação / Staging
Elenco / Cast
Rei - Sandro BrandãoBobo - Marta Gomes
Hortênsia - Luana Lobo
Amarílis - Jéssica Gomes
Violeta - Rafaela Cruz
Príncipe Felizardo - Luana Santos (noivo de Amarílis)
Príncipe Simplício - José Barata (noivo de Hortênsia)
Príncipe Reginaldo - Márcia Carvalho
Pastor, Conselheiro, Arauto & Escrivão - Sofia Nunes
Aias - Joana Martins & Érica Soutelos
Fotografia & Vídeo
São Ludovino
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Seguem-se algumas páginas do Diário de Um Idiota, escritas cerca de
três meses após ter assistido à peça. Podia ter escrito muitas mais páginas.
Estas linhas são apenas uma pequena manifestação de solidariedade para com o
Bobo do Rei da Helíria, um ser que nada tem de insignificante embora seja
permanentemente tratado como se fosse “ninguém”.
DIÁRIO DE UM IDIOTA
(fragmentos)
*
Dia de ventania,
poeira e frutos silvestres
Pouco importa que dia é hoje. Os
pensamentos não se sujeitam à cronologia dos calendários ou à cadência das
horas canónicas. Quando muito, sujeitam-se à cadência dos passos do meu amo e
ao desvario das suas alucinações.
Não é doido, bem sei, nem sequer é tido
por crédulo ou idiota. Por definição o idiota sou eu. E ainda bem que assim é,
pois é desse estatuto que me advém a pouca liberdade de que efectivamente
disponho nos meus dias. Só os meus pensamentos continuam livres. Ora são um
vendaval que tento amainar, ora são grãos de poeira que me fazem chorar.
― Porque choras? ― Pergunta o meu amo. ―
Tu não tens preocupações, nada tens, nada perdes e nada ganhas…
― É só a poeira dos vossos passos que
entra para os meus olhos quando caminho atrás de vós.
― Ora, ainda bem que caminhas atrás ou
seria eu a receber a tua poeira.
― Mas poderia eu caminhar a vosso lado,
majestade? Ainda mais sendo o vosso guia… Como posso guiar-vos ou amparar os
vossos passos incertos, se escondeis de mim o horizonte? ― Perguntei-lhe.
― O horizonte só a mim pertence. Sou eu o
rei e senhor de todas as terras e caminhos…
Pobre diabo, nem sabe para onde caminha.
Anunciei-lhe que se aproximava a hora do almoço e afastei-me para colher amoras.
Caminhei bem adiante dele. Olhei-o coberto pelos seus andrajos e não vi rei
algum em parte alguma. Mas eu sou um pobre idiota com um coração mole, um
idiota sem qualquer credibilidade. Nunca menti na minha vida. Ainda assim,
todos tomam por patranhas e graçolas as minhas palavras mais sinceras.
Sua majestade almoçou uma mão-cheia de
amoras, sentado numa pedra a meu lado, sempre convencido de que estava à minha
frente. Só em movimento, enquanto caminhamos por algum caminho, se pode dizer
que um vai à frente e o outro vai atrás… e apenas se for o caminho certo… ou
então será tudo ao contrário. Mas quando nos sentamos, imóveis, sob alguma
árvore, ninguém conseguiria dizer quem está à frente e quem está atrás.
Respirei fundo e saboreei a minha
mão-cheia de amoras, em nada menos saborosas ou nutritivas do que as que dei ao
meu amo.
*
Dia de falar com as
pedras e abençoar o Sol
Depois de muitas horas caminhando sob a
chuva, tinha a roupa ensopada e os ossos enregelados. O meu amo ia praguejando
enquanto tropeçava em quase todas pedras do caminho. Eu preferia contorná-las
ou chutá-las para a berma, um método fácil de evitar a dor e alguma queda de
consequências imprevisíveis. Lembrei-me de um dos sonhos do meu amo: caminhava
pelas veredas do jardim do seu palácio, muito limpas e aplanadas. Ainda assim,
a cada passo que dava, sentia que pedras pontiagudas lhe rompiam as solas dos
sapatos de couro e veludo e lhe penetravam na carne, deixando-lhe os pés
cobertos de feridas. Na altura, observei que, talvez, se andasse descalço, tal
não aconteceria, talvez as pedras afiadas estivessem dentro dos sapatos e não
fora, porque as veredas estavam de facto muito limpas. Claro que o meu amo me
chamou idiota e ameaçou enclausurar-me durante longos dias numa masmorra
escura.
Sabendo que era bem capaz de cumprir a
ameaça, não insisti no meu argumento, embora estivesse razoavelmente convencido
de que estava certo.
Entretanto, as nuvens afastaram-se
ligeiramente e o Sol começou a brilhar. O meu amo decidiu fazer uma pausa para
secar a roupa e dormir uma sesta. Aproveitei a ocasião para lhe guardar os
sapatos já rotos na minha bolsa e pus a roupa a secar nos ramos de uma árvore.
Não sabia então se tivera algum sonho auspicioso durante a sesta, o certo é que
acordou mais bem-disposto e afável comigo. Deixou-me vesti-lo sem resmungar e
ergueu-se para continuar a caminhada. Os sapatos continuavam na minha bolsa.
Até
onde os meus olhos conseguiam abarcar, via bem que o caminho era bem incerto e
pedregoso. Agora era chegada a ocasião de verificar se o meu argumento estava
realmente certo. Mais do que na fé, confiei na sabedoria do espírito e na
coragem.
Sua majestade caminhava bastante lesto e
determinado. Quase não olhava o chão e, ainda assim, quase não pisou uma única
pedra, e eram muitas. Em dado momento, chamou-me para próximo de si e disse-me
que tivera um sonho sobre um caminho pedregoso. Sonhara que caminhava descalço
e que, mesmo assim, não se feria nos pés, não tropeçava nem caía.
― Acho que este sonho me fez bem porque
agora nem sinto as pedras do caminho. E agora, diz-me tu, por que razão já não
me magoam as pedras?
― Perdoai-me a ousadia, majestade, mas a
razão é muito simples. Acontece que enquanto sonháveis, eu andei adiante por
esse caminho e conversei com todas as pedras. Contei-lhes quem éreis, o grande
rei de todo este território e de todos os caminhos, e elas acederam prontamente
a desviar-se dos teus passos, por muito incertos que fossem.
― Por uma vez, acredito em ti, meu bobo.
Até as pedras se afastam para deixar passar um grande rei.
― Claro, majestade, nem podia ser de outra
forma ― anui sorrindo para os poucos botões que ainda me restam.
Nessa noite, voltei a calçar-lhe os
sapatos e sua majestade continuou a acreditar que até as pedras o veneravam.
Sendo eu o mais leal e sincero dos bobos,
espero que ninguém duvide da minha palavra, porque eu falei de facto com as
pedras, só não posso revelar inteiramente o que lhes disse.
*
Dia de semear ventos e
colher tempestades
O conceito que sua majestade fazia de si
mesmo era inalterável, acontecesse o que acontecesse. Não sei quantas
fronteiras já atravessáramos nem quem vivia e reinava naquelas paragens. Do seu
ponto de vista, aquelas terras, aquelas florestas, aquelas gentes eram suas e
sobre tudo podia exercer o seu poder ilimitado.
Após uma curva estreita do caminho,
deparámos com um magote de gente que comia e conversava à sombra de uma árvore.
Sua majestade quis saber o que faziam ali aqueles maltrapilhos. Por que não
estavam a trabalhar nos campos, por que não estavam acorrentados, por que
ousavam levantar os olhos daquele modo quando o olhavam. Não se pode dizer que
aqueles pobres camponeses tenham sido insolentes ou provocadores, mas foi assim
que sua majestade os viu.
Perguntou-lhes quem eram e sem esperar
resposta, ordenou que fossem trabalhar os campos, que lhe trouxessem o melhor
das suas colheitas, que se ajoelhassem e lhe beijassem o manto. A mim
ordenou-me que acorrentasse aqueles que lhe pareciam os mais rebeldes e os possíveis
instigadores daquele movimento de insurreição contra a sua propriedade e
autoridade.
Sem contestar, baixei-me e enrolei alguns
juncos tenros aos tornozelos de alguns. Ao mesmo tempo, fiz-lhes sinal para que
fossem beijar o manto de sua majestade, que não passava de um trapo
esfrangalhado.
Satisfeito com os salamaleques, sua
majestade, dirigiu-se então ao aglomerado:
― Porque sou bondoso e misericordioso,
aceito a vossa submissão e perdoo-vos. Ide agora trabalhar e trazei-me o melhor
das colheitas destas terras que são minhas.
Um deles, com menos disposição para
alinhar em farsas, não esteve com meias palavras.
― Os homens nascem, os reis fazem-se.
Nenhum de nós fez de ti nosso rei e nenhum de nós te deu as nossas terras. São
nossas porque o nosso rei, muito diferente de ti, no-las deu e porque somos nós
quem as trabalha. Retira-te, pois para o teu reino, seja ele onde for, ou vem
trabalhar connosco e terás direito ao teu quinhão legítimo.
Voltaram-lhe costas e prosseguiram o seu
caminho. Sua majestade ficou furibunda e praguejou a plenos pulmões: “Para a
roda, para a fogueira! Que não reste um único desta espécie!” Ordenou que os
seus exércitos dizimassem aquela escumalha e exigiu-me que lhe trouxesse o seu
cavalo para que ele mesmo lhes desse caçada e os trespassasse com a sua espada
invencível.
No tom mais humilde que me foi possível
adoptar, disse-lhe que provavelmente os seus exércitos, se existissem, ainda
iam levar muitos dias até chegarem àquele território. Podia até dar-se o caso
de se perderem pelo caminho ou decidirem desertar mal chegassem a um lugar tão
pacífico e justo. Quanto ao seu cavalo, tão transparente como o próprio vento,
como ele podia constatar com os seus próprios olhos, corria livremente por
entre o feno verdejante.
Penso que nem terá ouvido as minhas
explicações porque logo a seguir vi-o caminhar a galope, aos solavancos como
quem vai na garupa de um cavalo, manejando furiosamente uma espada imaginária que
ia cortando o ar.
Às vezes, ainda me pergunto por que
mantenho este diário. Ninguém acreditará nestas narrativas, excepto, talvez,
algum idiota como eu.
São Ludovino, 3/5/2020
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