quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

ECOS DA LENDA

 Poemas inspirados na lenda de Pedro & Inês

Pedro & Inês

Poemas


Antes do fim do mundo, despertar,
Sem D. Pedro sentir,
E dizer às donzelas que o luar
E o aceno do amado que há de vir...

E mostrar-lhes que o amor contrariado
Triunfa até da própria sepultura:
O amante, mais terno e apaixonado,
Ergue a noiva caída à sua altura.

E pedir-lhes, depois fidelidade humana
Ao mito do poeta, à linda Inês...
À eterna Julieta castelhana
Do Romeu português.

Miguel Torga, Poemas ibéricos, 1965

(Nota: este Romeu (D. Pedro I) era de facto português, mas esta Julieta (D.ª Inês) era galega, não castelhana)

Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'

Inês morreu e nem se defendeu

Inês morreu e nem se defendeu
da morte com as asas das andorinha
pois diminuta era a morte que esperava
aquela que de amor morria cada dia
aquela ovelha mansa que até mesmo cansa
olhar vestir de si o dia-a-dia
aquele colo claro sob o qual se erguia
o rosto envolto em loura cabeleira
Pedro distante soube tudo num instante
que tudo terminou e mais do que a Inês
o frio ferro matou a ele.
Nunca havia chorado é a primeira vez que chora
agora quando a terra já encerra
aquele monumento de beleza
que pode Pedro achar em toda a natureza
que pode Pedro esperar senão ouvir chorar
as próprias pedras já que da beleza
se comovam talvez uma vez que os humanos
corações consentiram na morte da inocente Inês
E Pedro pouco diz só diz talvez
Satanás excedeu o seu poder em mim
deixem-me só na morte só na vida
a morte é sem nenhuma dúvida a melhor jogada
que o sangue limpe agora as minhas mãos
cheias de nada
ó vida ó madrugada coisas do princípio vida
começada logo terminada.

Ruy Belo


Pedro e Inês

Tu amavas o sol perdidamente
e tudo te pedia um pouco do perfume do pomar
aurora não do dia aurora do amor
alegria tão forte que causava dor
nave de pedra em luz transfigurada
Há cotovias já no teu silêncio
há coisas de outra idade neste dia
que afogentou os rouxinóis da noite
É manhã nas estrelas vai alguém casar
pedra de pedra pedra intensamente
testamento lavrado sendo já alto o serão
alguém casou alguém morreu de amor
após a sua postrimeira dor
Talvez um dia eu volte lá dessa cidade
somente minha e de mais ninguém
A vida era a mágoa para mim que só pedia
a beleza contida num pequeno copo de água
Ninguém profundamente me conhece
nem talvez isso interesse a alguém
e aos íntimos menos que a ninguém
Bailador e monteiro e justiceiro
pedro primeiro pedro derradeiro

Ruy Belo, “A Margem da Alegria”, 1973, (fragmento final) in Obra Poética de Ruy Belo, vol.2, Ed. Presença


Soneto de Inês

Dos olhos corre a água do Mondego
os cabelos parecem os choupais
Inês! Inês! Rainha sem sossego
dum rei que por amor não pode mais.

Amor imenso que também é cego
amor que torna os homens imortais.
Inês! Inês! Distância a que não chego
morta tão cedo por viver demais.

Os teus gestos são verdes
os teus braços são gaivotas poisadas no regaço
dum mar azul turquesa intemporal.

As andorinhas seguem os teus passos
e tu morrendo com os olhos baços
Inês! Inês! Inês de Portugal.

José Carlos Ary dos Santos, in Poemas de Ary dos Santos

Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'

 
CHOVE!

Chove... Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta«
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira, in As Tormentas


A Ferida inesgotável

Na combustão de Inês a cânfora como se
sob a oxidação da luz o cordão umbilical
agora o amor prefigura-nos melhor sobre
as águas as pedras da fonte continuam
desencarnadas nos golfos do crime

as águas ainda na exatidão enregelada das
lâminas nos veios cintilantes da sílaba
o poema íngreme no equilíbrio do sangue
a fulguração do fogo inteiramente vencido
nas mãos do assombro sob os líquidos a
clara magnólia inteira a ferida ainda fresca.

João Rasteiro, in Triplov.org

Da triste, bela Inês

Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos céus andas pedindo
justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se ainda na fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morta formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza, e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa
A malfadada Inês na sepultura.
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos céus andas pedindo
justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se ainda na fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morta formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza, e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa
A malfadada Inês na sepultura.


Bocage

 

A lamentável catástrofe de D. Inês de Castro

Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos Céus andas pedindo
Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se inda na Fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morte formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c'roa
A malfadada Inês na sepultura.

Bocage

Inês de Castro.
(In Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza,
Tomo I, Pedro José de Figueiredo, 1762-1826, Lisboa, 1817). 

 

A Ulina
Soneto dedicatório


Da miseranda Inês o caso triste
Nos tristes sons, que a mágoa desafina,
Envia o terno Elmano à terna Ulina,
Em cujos olhos seu prazer consiste.

Paixão, que, se a sentir, não lhe resiste
Nem nos brutos sertões alma ferina,
Beleza funestou quase divina,
De que a memória em lágrimas existe.

Lê, suspira, meu bem, vendo um composto
De raras perfeições aniquilado
Por mãos do Crime, à Natureza oposto.

Tu és cópia de Inês, encanto amado;
Tu tens seu coração, tu tens seu rosto...
Ah!, defendam-te os Céus de ter seu fado!


Bocage

Longe do caro esposo Inês formosa


Longe do caro Esposo Inês formosa
Na margem do Mondego
As amorosas faces aljofrava
De mavioso pranto.
Os melindrosos, cândidos penhores
Do tálamo furtivo,
Os filhinhos gentis, imagem dela,
No regaço da mãe serenos gozam
O sono da inocência.
Coro subtil de alígeros Favónios
Que os ares embrandece,
Ora enlevado afaga
Com as plumas azuis o par mimoso,
Ora solto, inquieto,
Em leda travessura, em doce brinco,
Pela amante saudosa,
Pelos ternos meninos se reparte,
E com ténue murmúrio vai prender-se
Das áureas tranças nos anéis brilhantes.
Primavera louçã, quadra macia
Da ternura e das flores,
Que à bela Natureza o seio esmaltas,
Que no prazer de Amor ao mundo apuras
O prazer da existência,
Tu de Inês lacrimosa
As mágoas não distrais com teus encantos.
Debalde o rouxinol, cantor de amores,
Nos versos naturais os sons varia;
O límpido Mondego em vão serpeia
Co'um benigno sussurro, entre boninas
De lustroso matiz, almo perfume;
Em vão se doira o Sol de luz mais viva,
Os céus de mais pureza em vão se adornam
Por divertir-te, ó Castro;
Objectos de alegria Amor enjoam,
Se Amor é desgraçado.
A meiga voz dos Zéfiros, do rio,
Não te convida o sono:
Só de já fatigada
Na luta de amargosos pensamentos
Cerras, mísera, os olhos;
Mas não há para ti, para os amantes
Sono plácido e mudo;
Não dorme a fantasia, Amor não dorme:
Ou gratas ilusões, ou negros sonhos
Assomando na ideia, espertam, rompem
O silêncio da Morte.
Ah!, que fausta visão de Inês se apossa!
Que cena, que espectáculo assombroso
A paixão lhe afigura aos olhos d'alma!
Em marmóreo salão de altas colunas,
A sólio majestoso e rutilante
Junto ao régio amador se crê subida;
Graças de neve a púrpura lhe envolve,
Pende augusto dossel do tecto de oiro,
Rico diadema de radioso esmalte
Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;
Nos luzentes degraus do trono excelso
Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
A lisonja sagaz lhe adoça os lábios;
O monstro da política se aterra
E, se Inês perseguia, Inês adora.
Ela escuta os extremos,
Os vivas populares; vê o amante
Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;
O prazer a transporta, amor a encanta;
Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio
Magnânima confere;
Rainha esquece o que sofreu vassala:
De sublimes acções orna a grandeza,
Felicita os mortais; do ceptro é digna,
Impera em corações... Mas, Céus! Que estrondo
O sonho encantador lhe desvanece!
Inês sobressaltada
Desperta, e de repente aos olhos turvos
Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
Ministros do Furor, três vis algozes,
De buídos punhais a dextra armada,
Contra a bela infeliz, bramando, avançam.
Ela grita, ela treme, ela descora;
Os frutos da ternura ao seio aperta,
Invocando a piedade, os Céus, o amante;
Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto,
À suave atracção da formosura,
Vós, brutos assassinos,
No peito lhe enterrais os ímpios ferros.
Cai nas sombras da morte
A vítima de Amor lavada em sangue;
As rosas, os jasmins da face amena
Para sempre desbotam;
Dos olhos se lhe some o doce lume;
E no fatal momento
Balbucia, arquejando: «Esposo! Esposo!»
Os tristes inocentes
À triste mãe se abraçam,
E soltam de agonia inútil choro.
Ao suspiro exalado,
Final suspiro da formosa extinta,
Os amores acodem.
Mostra a prole de Inês, e tua, ó Vénus,
Igual consternação e igual beleza:
Uns dos outros os cândidos meninos
Só nas asas diferem
(Que jazem pelo campo em mil pedaços
Carcases de marfim, virotes de oiro).
Súbito voam dois do coro alado:
Este, raivoso, a demandar vingança
No tribunal de Jove;
Aquele a conduzir o infausto anúncio
Ao descuidado amante.
Nas cem tubas da Fama o grão desastre
Irá pelo Universo.
Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres;
No torrado sertão da Líbia fera,
As serpes, os leões hão-de chorar-te.
Do Mondego, que atónito recua,
Do sentido Mondego as alvas filhas
Em tropel doloroso
Das urnas de cristal eis vêm surgindo;
Eis, atentas no horror do caso infando,
Terríveis maldições dos lábios vibram
Aos monstros infernais, que vão fugindo,
Já c'roam de cipreste a malfadada,
E, arrepelando as nítidas madeixas,
Lhe urdem saudosas, lúgubres endeixas.
Tu, Eco, as decoraste,
E, cortadas dos ais, assim ressoam
Nos côncavos penedos, que magoam.

Bocage

Inês de Castro.
(In Idyllios dos reis, Alberto Pimentel, 1849-1925, 
Empreza Litteraria de Lisboa, Lisboa, 1886).

Toldam-se os ares


«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores;
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.

«Mísero esposo,
Desata o pranto,
Que o teu encanto
Já não é teu.

«Sua alma pura
Nos Céus se encerra;
Triste da Terra,
Porque a perdeu.

«Contra a cruenta
Raiva íerina,
Face divina
Não lhe valeu.

«Tem roto o seio
Tesoiro oculto,
Bárbaro insulto
Se lhe atreveu.

«De dor e espanto
No carro de oiro
O Númen loiro
Desfaleceu.

«Aves sinistras
Aqui piaram
Lobos uivaram,
O chão tremeu.

«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores:
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.»

Bocage in Cantata à Morte de Inês de Castro (excerto)

******************** 


A linda Inês de manto

Teceram-lhe o manto
para ser de morta
assim como o pranto
se tece na roca

Assim como o trono
e como o espaldar
foi igual o modo
de a chorar

Só a morte trouxe
todo o veludo
no corte da roupa
no cinto justo

Também com o choro
lhe deram um estrado
um firmal de ouro
o corpo exumado

O vestido dado
como a choravam
era de brocado
não era escarlata

Também de pranto
a vestiram toda
era como um manto
mais fino que a roupa

Fiama H. P. Brandão, in Obra Breve, Barcas Novas, 1967

Memória


Inês, Inês,
O tempo fere mais que o sangue!
Inês em nós,
Amor que as pedras amacia.
Memória, lume vivo,
Eterna melodia.
Águas do Mondego,
Que grito fatal vos rasgou o leito?!
Amor nascido sem medo,
Por isso verdadeiro.
Doces no passar ameno,
Madrigais de silêncio,
Soluços de nunca mais
Despertando ervas frias,
Testemunhas de punhais.


Eduardo Aroso in Habitante Sensível, Universitária Editora, 1997


Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'

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Cancioneiro de Coimbra, Afonso Lopes Vieira, 1878-1946, França Amado, Coimbra, 1918

GARCIA DE RESENDE

TROVAS À MORTE DE DONA INÊS DE CASTRO

que el rei Dom Afonso o quarto, de Portugal, matou em

Coimbra, por o príncipe Dom Pedro, seu filho, 

a ter como mulher, e, pelo bem que lhe queria, não queria casar 


ENDEREÇADAS À DAMAS

Senhoras, se algum senhor
vos quiser bem ou servir
quem tomar tal servidor,
eu lhe quero descobrir
o galardão do amor.
Por sua mercê saber
o que deve de fazer,
veja que fez esta dama
que de si vos dará fama
se estas trovas quereis ler.

FALA DONA INÊS

Qual será o coração
tão cru e sem piedade,
que lhe não cause paixão
uma tão grande crueldade,
e morte tão sem razão! 
Triste de mim, inocente,
que por ter muito fervente
lealdade, fé, amor
ao príncipe, meu senhor,
me mataram cruamente.

(...)

 

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