quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

TEATRO NA ESCOLA XXXI

 O DOM DA SINGULARIDADE

O Estranho Mundo de Jack / The Nightmare Before Christmas de Tim Burton (excerto). Interpretado pelos alunos de Artes do Espectáculo da Escola Secundária D. Pedro V (11.º 13). Encenação de Gonçalo Barata. Captação de imagem e montagem de vídeo: São Ludovino. Lisboa, 10 de Dezembro de 2019.

     Esta adaptação do texto e filme de Tim Burton apresentava, à partida, inúmeras dificuldades. Os múltiplos lugares ficam reduzidos a um único espaço, o palco. O espaço estreita-se e dificulta o movimento. A escuridão e a luz tornam-se mais presentes e recaem fisicamente sobre o próprio espectador. O grande plano ou o plano geral é ditado pelo movimento dos actores e pelo confronto com o próprio público que se sente olhado olhos nos olhos. Em alguns momentos é o público ― ingénuos mortais ― que é observado pelos rostos fantasmagóricos das almas penadas que avançam em movimentos cadenciados até à fronteira final. 

O Estranho Mundo de Jack - Tim Burton, photography by São Ludovino.

      Embora apenas um fragmento tenha sido encenado, a gestão do espaço foi um problema, resolvido com a utilização da luz e da sombra como fronteira. Foi também a utilização da luz que permitiu a construção da sequência de cenas; as saídas de cena foram geralmente feitas sob a escuridão e as entradas sob focos de luz de menor ou maior intensidade.

     As personagens não estão vivas mas são uma metáfora da vida; também na vida a luz e a escuridão coabitam. Tal como os vivos, estas personagens têm sentimentos, emoções, sonhos, conflitos, contradições.

     Jack é o mais vivo de todos, é ele que quer mudar o mundo imutável dos mortos (metáfora dos vivos). Quer, planeia, executa um plano que visa devolver àquele mundo lúgubre e sinistro um pouco de alegria, de justiça, de claridade, de transformação simplesmente (levar o Pai Natal à terra dos mortos, ser ele próprio o Pai Natal que gera alegria). Neste paralelismo entre os felizes (vivos) e os infelizes (mortos) está configurada a analogia social e psicológica, entre os grupos dos vivos. Entre os vivos, só alguns têm acesso à alegria, à dignidade, à vida autêntica, a serem verdadeiramente humanos. Outros, embora vivos, é como se já estivessem parcialmente mortos, nunca chegam a viver verdadeiramente.

O Estranho Mundo de Jack - Tim Burton, photography by São Ludovino.

      Nesta perspectiva, Jack não é apenas um rebelde individualista, é um revolucionário com consciência social e empatia colectiva que tenta mudar o estado de coisas a que muitos estão submetidos. Para o conseguir, tem de interferir no mundo dos vivos e roubar-lhes um pouco da fantasia que faz a sua felicidade; raptar o Pai Natal e tomar o seu lugar. E se a felicidade plena de todos é inatingível, pelo menos é possível gerar a felicidade de alguns, aquela felicidade que provém da fantasia, das crenças e das emoções. Partilhar a fantasia é, pois, uma forma de gerar felicidade.

     Ao primeiro olhar, este texto / filme /peça tem muito pouco de natalício, parece mesmo um assassinato desse espírito já que o Pai Natal, um dos símbolos convencionais do Natal (comercial), é raptado e substituído por Jack, alguém que já não está vivo. Até o título original – A Nightmare Before Christmas – parece o oposto do espírito de paz, amor e alegria do Natal. A tradução portuguesa do título – O Estranho Mundo de Jack – aproxima-se mais do verdadeiro espírito do texto e do Natal. O mundo de Jack é estranho porque a sua condição de “morto” lhe retirou toda a liberdade, incluindo a liberdade de sonhar, sentir e ser feliz, tal como acontece com milhões de vivos pelos mais diversos motivos.

     O “pesadelo” antes do Natal é o rapto do Pai Natal do mundo dos vivos, não é a revelação da infelicidade dos que vivem no mundo das sombras. O rapto é um pesadelo para os vivos, não para os “mortos”. Estes vivem uma espécie de pesadelo constante a que acabaram por se habituar. O rapto do Pai Natal é também um acto contra a indiferença dos que reduzem o Natal (a vida) à sua dimensão material / comercial e vivem completamente alheados das dificuldades dos que nem sequer conseguem acreditar no Pai Natal. Não podem fantasiar e sonhar, porque a sua condição não lhes permite ser humanos a esse ponto, são apenas semi-humanos. Se não é possível ter tudo o que os outros têm, Jack reivindica pelo menos o direito a sonhar. E os sonhos podem muito bem mudar o mundo, só é preciso agir, ousar raptar o Pai Natal e dar-lhe uma dimensão mais humana.

     O cenário quase completamente negro contribui para tornar quase invisíveis a maioria das personagens, também elas vestidas de negro. Esta invisibilidade condiz com a indiferença a que são votados. Mas mesmo no meio do negrume, as luzes acendem-se, a fantasia entra, o coração desperta e aqueles que pouco antes estavam “mortos” começam a viver.

O Estranho Mundo de Jack - Tim Burton, photography by São Ludovino.

     Encenador e intérpretes estão de parabéns! Uma vénia para todos. No final, ninguém saiu com pesadelos, apenas mais disposto a ver o mundo e os outros com outros olhos, a fantasiar e a partilhar a fantasia.


O Estranho Mundo de Jack - Encenação de Gonçalo Barata

     A história que se segue, embora pareça ter pouco a ver com O Estranho Mundo de Jack, foi inspirada nele e busca o mesmo tipo de redenção. Todos têm direito à felicidade, estes, aqueles, os outros, os que nem sequer conseguem imaginar o que é ou pode ser a felicidade.       

 

O DOM DA SINGULARIDADE

      Com um empenho desmedido a criança construía o seu puzzle. Olhava para dentro, olhava para fora, olhava em redor, olhava para longe e fazia mais uma peça. Cuidadosamente, tentava encaixá-la no extenso painel de visões e pensamentos. Aqui e além, aparecia ele próprio, tão distinto de todos os outros e ainda assim, o mais invisível. Tão invisível que às vezes não se encontrava naquele mapa desenhado pelo seu próprio pensamento.

     Às vezes sentava-se a olhar para os continentes, as ilhas, as penínsulas, os lagos, os rios, mares e oceanos que já existiam e para as manchas vazias onde ainda nada existia. Será que algum dia ia terminar aquele imenso exercício de cartografia? Será que era mesmo invisível? Isso, tudo isso, ele ainda não sabia.

     Olhava os seres que povoavam o seu puzzle e via ou pensava ver cada um com toda a nitidez. Conhecia sobretudo os animais, as plantas, as rochas e os elementos da Natureza. Os outros, que de algum modo se assemelhavam a ele, pareciam-lhe deveras estranhos, muito mais estranhos do que ele.

     Os outros tinham hábitos e rotinas. Riam ou choravam sempre à mesma hora. Vestiam roupas idênticas e caminhavam com passos meticulosamente iguais. Até as suas casas e jardins eram tão iguais que pareciam apenas uma imagem multiplicada num jogo de espelhos. Eram tão semelhantes em tudo que às vezes lhe parecia que deveria ser um apenas com muitas sombras, tão densas que pareciam gente feita de basalto ou lama de algum pântano.

     Tanta semelhança contrastava com tudo o resto que via e sentia em redor. O vento nunca soprava duas vezes da mesma maneira e até cada raio de sol lhe parecia diferente de todos os outros. Pelo menos aquecia e brilhava de maneira diferente. O mapa-puzzle que continuava a preencher, pedaço a pedaço, também era bem diverso em tudo o que continha. Só aqueles pontos que caminhavam para cá e para lá eram semelhantes. Talvez fosse por isso que não conseguia completar o mapa e tantos buracos persistiam. Se tudo fosse idêntico, não havia formas, nem seres, nem identidade, nem alma. Era preciso procurar a diferença… ou então criá-la e dar-lhe vida.

     Começou por um jardim ao acaso. Podia ser um qualquer, pouco importava. Fez enxertos nas árvores e novas folhas bens diferentes nasceram. Plantou flores novas nos canteiros monótonos e descoloridos e as borboletas e abelhas apareceram vindas do nada. Espalhou grilos na erva, regou-a cuidadosamente e o chão reverdecido começou a ondular alegremente. Assobiou uma canção de rouxinol e dezenas de aves vieram pousar nas árvores, nos telhados e peitoris até que o ar se encheu de sons novos e todo o jardim sorria.

     Passou então para a casa. Ainda bem que estavam todos a dormir. Dormiam e acordavam todos ao mesmo tempo. Pintou as paredes quase negras de branco e azul. Acentuou o vermelho perdido dos beirais. Limpou o pó e envernizou a madeira das portas e janelas. Escavou um pequeno lago, revestiu-o de pedras, encheu-o de água límpida, acrescentou alguns nenúfares e meia dúzia de peixes vermelhos. Consertou o banco de jardim, sentou-se a contemplar a obra feita e deu um suspiro de contentamento.

     Pensou voltar a casa e descansar um pouco antes de continuar mas mudou logo de ideias. Tinha de continuar, tinha de tornar diferentes todas as casas e jardins, tudo tinha de ter um ser próprio e uma alma única. E assim fez. Trabalhou durante a noite inteira.

     Ao amanhecer, estava tão exausto que pensou estar a ter visões. Tudo estava tão belo e diferente. Pensou em bater a uma porta mas desistiu. Talvez fosse melhor não revelar já a autoria de toda aquela transformação. Podia até dar-se o caso de não agradar a alguns ou a ninguém. Por isso, rumou a casa sem fazer ruído. Atrás de si foi apagando as pegadas, coisa que os outros nunca deixavam no chão, apenas manchas poeirentas.

     Antes de se deitar para descansar um pouco, ainda passou pelo seu mapa. Sob a luz baixa pareceu-lhe tão diferente do que deixara antes de sair. Levou para junto dele um candeeiro. Estava mesmo diferente, muito maior, mais colorido e quase completo. Milhentos buracos tinham desaparecido e as manchas negras eram agora rochas, montanhas, florestas, aldeias e vilas soalheiras. Havia ainda zonas nebulosas. O desconhecido… pensou. E os pontos negros que até há pouco estavam imóveis começavam a mover-se, de forma semelhante mas não absolutamente idêntica.

     Poucos minutos depois, um ruído de vozes, coisa inédita por aquelas paragens, elevou-se no ar e entrou-lhe pelas janelas. Vinha misturado com o canto dos pássaros, o perpassar da brisa e a respiração profunda das árvores novas.

     Espreitou discretamente pela janela. Todos os vizinhos tinham no rosto uma expressão de espanto, mas não pareciam muito contrariados. O mais próximo aproximou-se de uma árvore e tocou a medo as folhas novas. O outro ao lado colheu uma flor e examinou-a como coisa nunca vista. Um outro tirou o chapéu e deixou a brisa despenteá-lo. Uma criança aproximou-se do lago e, pela primeira vez, viu alguém sorrir. E era tão fácil sorrir. Bastava ver como era bela cada coisa que existia. Não havia duas coisas iguais no seu mapa. E agora naquela rua tudo estava vivo porque tudo era único e irrepetível.

     Quando saiu para a rua já o sol ia alto e tudo resplandecia. Passou rente à cancela do jardim em frente e viu outra criança, aquela que sorrira para os peixes, bem diferente dele. E, no entanto, nunca encontrara ninguém tão idêntico a ele. Pelo menos foi isso que sentiu quando a menina se aproximou da cancela e perguntou.

     − Já viste peixes tão vivos e felizes como os deste lago?

    − Já! − Respondeu ele. −Vi-os ontem à noite e não foi num sonho.  

 

São Ludovino, 1/3/2020

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Encenação / Stage Direction

Gonçalo Barata

Elenco / Cast

* Beatriz Fachina
* Bernardo Ferreira
* Carolina Gomes
* Carolina Miguel
* Carolina Teodoro
* Constança Cruz
* Elói Pina
* Florbela Figueiredo
* Gabriela Rubio
* Gonçalo Alves
* Joana Costa
* Joana Abreu
* Joana Sousa
* Maria Pinheiro
* Maria Pratas
* Mariana Silva
* Marta Mateus
* Nelma Barreto
* Neuza Velez
* Patrícia Barbosa
* Rodrigo Lencastre
* Rodrigo Marques
* Sandra Sofia
* Yannick Gomes

Fotografia & Vídeo / Photography & Video

São Ludovino




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