O DOM DA SINGULARIDADE
O Estranho Mundo de Jack /
The Nightmare Before Christmas de Tim
Burton (excerto). Interpretado pelos alunos de Artes do Espectáculo da Escola
Secundária D. Pedro V (11.º 13). Encenação de Gonçalo Barata. Captação de
imagem e montagem de vídeo: São Ludovino. Lisboa, 10 de Dezembro de 2019.
Esta adaptação do texto e filme de Tim Burton apresentava, à partida, inúmeras dificuldades. Os múltiplos lugares ficam reduzidos a um único espaço, o palco. O espaço estreita-se e dificulta o movimento. A escuridão e a luz tornam-se mais presentes e recaem fisicamente sobre o próprio espectador. O grande plano ou o plano geral é ditado pelo movimento dos actores e pelo confronto com o próprio público que se sente olhado olhos nos olhos. Em alguns momentos é o público ― ingénuos mortais ― que é observado pelos rostos fantasmagóricos das almas penadas que avançam em movimentos cadenciados até à fronteira final.
Embora apenas um fragmento tenha sido encenado, a gestão do espaço foi um problema, resolvido com a utilização da luz e da sombra como fronteira. Foi também a utilização da luz que permitiu a construção da sequência de cenas; as saídas de cena foram geralmente feitas sob a escuridão e as entradas sob focos de luz de menor ou maior intensidade.
As personagens não estão vivas mas são uma
metáfora da vida; também na vida a luz e a escuridão coabitam. Tal como os
vivos, estas personagens têm sentimentos, emoções, sonhos, conflitos,
contradições.
Jack é o mais vivo de todos, é ele que
quer mudar o mundo imutável dos mortos (metáfora dos vivos). Quer, planeia,
executa um plano que visa devolver àquele mundo lúgubre e sinistro um pouco de
alegria, de justiça, de claridade, de transformação simplesmente (levar o Pai
Natal à terra dos mortos, ser ele próprio o Pai Natal que gera alegria). Neste
paralelismo entre os felizes (vivos) e os infelizes (mortos) está configurada a
analogia social e psicológica, entre os grupos dos vivos. Entre os vivos, só
alguns têm acesso à alegria, à dignidade, à vida autêntica, a serem
verdadeiramente humanos. Outros, embora vivos, é como se já estivessem
parcialmente mortos, nunca chegam a viver verdadeiramente.
Ao primeiro olhar, este texto / filme /peça
tem muito pouco de natalício, parece mesmo um assassinato desse espírito já que
o Pai Natal, um dos símbolos convencionais do Natal (comercial), é raptado e
substituído por Jack, alguém que já não está vivo. Até o título original – A Nightmare Before Christmas – parece o
oposto do espírito de paz, amor e alegria do Natal. A tradução portuguesa do
título – O Estranho Mundo de Jack –
aproxima-se mais do verdadeiro espírito do texto e do Natal. O mundo de Jack é
estranho porque a sua condição de “morto” lhe retirou toda a liberdade,
incluindo a liberdade de sonhar, sentir e ser feliz, tal como acontece com
milhões de vivos pelos mais diversos motivos.
O “pesadelo” antes do Natal é o rapto do
Pai Natal do mundo dos vivos, não é a revelação da infelicidade dos que vivem
no mundo das sombras. O rapto é um pesadelo para os vivos, não para os
“mortos”. Estes vivem uma espécie de pesadelo constante a que acabaram por se
habituar. O rapto do Pai Natal é também um acto contra a indiferença dos que
reduzem o Natal (a vida) à sua dimensão material / comercial e vivem
completamente alheados das dificuldades dos que nem sequer conseguem acreditar
no Pai Natal. Não podem fantasiar e sonhar, porque a sua condição não lhes
permite ser humanos a esse ponto, são apenas semi-humanos. Se não é possível
ter tudo o que os outros têm, Jack reivindica pelo menos o direito a sonhar. E
os sonhos podem muito bem mudar o mundo, só é preciso agir, ousar raptar o Pai
Natal e dar-lhe uma dimensão mais humana.
O cenário quase completamente negro
contribui para tornar quase invisíveis a maioria das personagens, também elas
vestidas de negro. Esta invisibilidade condiz com a indiferença a que são
votados. Mas mesmo no meio do negrume, as luzes acendem-se, a fantasia entra, o
coração desperta e aqueles que pouco antes estavam “mortos” começam a viver.
Encenador e intérpretes estão de parabéns!
Uma vénia para todos. No final, ninguém saiu com pesadelos, apenas mais
disposto a ver o mundo e os outros com outros olhos, a fantasiar e a partilhar
a fantasia.
A história que se segue, embora pareça ter pouco a ver com O Estranho Mundo de Jack, foi inspirada nele e busca o mesmo tipo de redenção. Todos têm direito à felicidade, estes, aqueles, os outros, os que nem sequer conseguem imaginar o que é ou pode ser a felicidade.
O DOM DA SINGULARIDADE
Às vezes sentava-se a olhar para os
continentes, as ilhas, as penínsulas, os lagos, os rios, mares e oceanos que já
existiam e para as manchas vazias onde ainda nada existia. Será que algum dia
ia terminar aquele imenso exercício de cartografia? Será que era mesmo
invisível? Isso, tudo isso, ele ainda não sabia.
Olhava os seres que povoavam o seu puzzle
e via ou pensava ver cada um com toda a nitidez. Conhecia sobretudo os animais,
as plantas, as rochas e os elementos da Natureza. Os outros, que de algum modo
se assemelhavam a ele, pareciam-lhe deveras estranhos, muito mais estranhos do
que ele.
Os outros tinham hábitos e rotinas. Riam
ou choravam sempre à mesma hora. Vestiam roupas idênticas e caminhavam com
passos meticulosamente iguais. Até as suas casas e jardins eram tão iguais que
pareciam apenas uma imagem multiplicada num jogo de espelhos. Eram tão
semelhantes em tudo que às vezes lhe parecia que deveria ser um apenas com
muitas sombras, tão densas que pareciam gente feita de basalto ou lama de algum
pântano.
Tanta semelhança contrastava com tudo o
resto que via e sentia em redor. O vento nunca soprava duas vezes da mesma
maneira e até cada raio de sol lhe parecia diferente de todos os outros. Pelo
menos aquecia e brilhava de maneira diferente. O mapa-puzzle que continuava a
preencher, pedaço a pedaço, também era bem diverso em tudo o que continha. Só
aqueles pontos que caminhavam para cá e para lá eram semelhantes. Talvez fosse
por isso que não conseguia completar o mapa e tantos buracos persistiam. Se
tudo fosse idêntico, não havia formas, nem seres, nem identidade, nem alma. Era
preciso procurar a diferença… ou então criá-la e dar-lhe vida.
Começou por um jardim ao acaso. Podia ser
um qualquer, pouco importava. Fez enxertos nas árvores e novas folhas bens
diferentes nasceram. Plantou flores novas nos canteiros monótonos e
descoloridos e as borboletas e abelhas apareceram vindas do nada. Espalhou grilos
na erva, regou-a cuidadosamente e o chão reverdecido começou a ondular alegremente.
Assobiou uma canção de rouxinol e dezenas de aves vieram pousar nas árvores,
nos telhados e peitoris até que o ar se encheu de sons novos e todo o jardim
sorria.
Passou então para a casa. Ainda bem que
estavam todos a dormir. Dormiam e acordavam todos ao mesmo tempo. Pintou as
paredes quase negras de branco e azul. Acentuou o vermelho perdido dos beirais.
Limpou o pó e envernizou a madeira das portas e janelas. Escavou um pequeno
lago, revestiu-o de pedras, encheu-o de água límpida, acrescentou alguns
nenúfares e meia dúzia de peixes vermelhos. Consertou o banco de jardim,
sentou-se a contemplar a obra feita e deu um suspiro de contentamento.
Pensou voltar a casa e descansar um pouco
antes de continuar mas mudou logo de ideias. Tinha de continuar, tinha de
tornar diferentes todas as casas e jardins, tudo tinha de ter um ser próprio e
uma alma única. E assim fez. Trabalhou durante a noite inteira.
Ao amanhecer, estava tão exausto que
pensou estar a ter visões. Tudo estava tão belo e diferente. Pensou em bater a
uma porta mas desistiu. Talvez fosse melhor não revelar já a autoria de toda
aquela transformação. Podia até dar-se o caso de não agradar a alguns ou a
ninguém. Por isso, rumou a casa sem fazer ruído. Atrás de si foi apagando as pegadas,
coisa que os outros nunca deixavam no chão, apenas manchas poeirentas.
Antes de se deitar para descansar um
pouco, ainda passou pelo seu mapa. Sob a luz baixa pareceu-lhe tão diferente do
que deixara antes de sair. Levou para junto dele um candeeiro. Estava mesmo
diferente, muito maior, mais colorido e quase completo. Milhentos buracos
tinham desaparecido e as manchas negras eram agora rochas, montanhas,
florestas, aldeias e vilas soalheiras. Havia ainda zonas nebulosas. O
desconhecido… pensou. E os pontos negros que até há pouco estavam imóveis
começavam a mover-se, de forma semelhante mas não absolutamente idêntica.
Poucos minutos depois, um ruído de vozes,
coisa inédita por aquelas paragens, elevou-se no ar e entrou-lhe pelas janelas.
Vinha misturado com o canto dos pássaros, o perpassar da brisa e a respiração
profunda das árvores novas.
Espreitou discretamente pela janela. Todos
os vizinhos tinham no rosto uma expressão de espanto, mas não pareciam muito
contrariados. O mais próximo aproximou-se de uma árvore e tocou a medo as
folhas novas. O outro ao lado colheu uma flor e examinou-a como coisa nunca
vista. Um outro tirou o chapéu e deixou a brisa despenteá-lo. Uma criança
aproximou-se do lago e, pela primeira vez, viu alguém sorrir. E era tão fácil
sorrir. Bastava ver como era bela cada coisa que existia. Não havia duas coisas
iguais no seu mapa. E agora naquela rua tudo estava vivo porque tudo era único
e irrepetível.
Quando saiu para a rua já o sol ia alto e
tudo resplandecia. Passou rente à cancela do jardim em frente e viu outra
criança, aquela que sorrira para os peixes, bem diferente dele. E, no entanto,
nunca encontrara ninguém tão idêntico a ele. Pelo menos foi isso que sentiu
quando a menina se aproximou da cancela e perguntou.
− Já viste peixes tão vivos e felizes como
os deste lago?
− Já! − Respondeu ele. −Vi-os ontem à noite
e não foi num sonho.
São
Ludovino, 1/3/2020
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Encenação / Stage Direction
Gonçalo BarataElenco / Cast
* Beatriz Fachina* Bernardo Ferreira
* Carolina Gomes
* Carolina Miguel
* Carolina Teodoro
* Constança Cruz
* Elói Pina
* Florbela Figueiredo
* Gabriela Rubio
* Gonçalo Alves
* Joana Costa
* Joana Abreu
* Joana Sousa
* Maria Pinheiro
* Maria Pratas
* Mariana Silva
* Marta Mateus
* Nelma Barreto
* Neuza Velez
* Patrícia Barbosa
* Rodrigo Lencastre
* Rodrigo Marques
* Sandra Sofia
* Yannick Gomes
Fotografia & Vídeo / Photography & Video
São Ludovino
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