quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

LENDA & HISTÓRIA II

 O CASAMENTO SECRETO

 

     Em 1360, D. Pedro declara solenemente em Cantanhede ter casado secretamente com D. Inês “há cerca de 7 anos”. O que é curioso, e tristemente divertido, é que nem ele nem as supostas testemunhas se lembrem ao certo do dia e mês em que casou! (cf. Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes). De facto, D. Pedro fez registar nesse ano (18 de Junho de 1360) um juramento escrito para legitimar este casamento. Esse documento existe ainda hoje na Torre do Tombo. Mas a sua simples existência não comprova a autenticidade do casamento secreto de Bragança, que teria ocorrido no dia 1 de Janeiro de 1354, um ano antes do assassinato de D.ª Inês. Esta data não é indicada por D. Pedro, mas por um seu “criado”, Estevão Lobato (Guarda-Roupa d’El-Rei), que, repentinamente, se lembrou da data.

Inès de Castro se jetant avec ses enfants aux pieds d'Alphonse IV roi, Eugénie Honorée Marguerite Servières, 1786. 

     Não seria este o primeiro nem o último documento forjado na História de Portugal. E, num caso específico, há até uma relação estreita com a actuação de D. Pedro (o favorecimento da Ordem de Cister). Um dos autores da Monarquia Lusitana, Frei Bernardo de Brito, clérigo cisterciense de Alcobaça, na ânsia de elucidar sobres os períodos anteriores à fundação da nacionalidade, atreve-se a escrever a História do mundo desde a sua “criação”. Para fundamentar as suas narrativas mitológicas forja cerca de duas centenas de documentos, todos referentes a um passado mítico ou tão distante que já ninguém podia confirmar com os próprios olhos nem através de documentos, que não existiam ou se perderam na poeira do tempo. Existem, contudo, múltiplos documentos que atestam que o Mosteiro de Alcobaça e os seus clérigos da Ordem de Cister foram repetidamente favorecidos por quase todos os monarcas desde a fundação de Portugal, sobretudo por um rei que não tinha grande simpatia pelo clero, D. Pedro I (cf. Chancelaria de D. Pedro I, ANTT).


Carta de confirmação pela qual o rei D. Pedro I revalidou a Alcobaça os coutos e jurisdições, e restituiu as que seu pai, D. Afonso IV, tinha tirado ao mosteiro, c. 8-9-1358 - ANTT.

     Curiosamente, o único rei que não favoreceu a ordem e o mosteiro com mais terras, bens e privilégios foi D. Afonso IV. Este monarca, pelo contrário, considerando que os clérigos de Alcobaça já tinham sido excessivamente privilegiados e tendiam a alargar cada vez mais o seu domínio e poder, retirou-lhes algumas terras e benesses. Pode haver, pois, diversos motivos para forjar documentos ou fazer apologias.

     Todos os autores da Monarquia Lusitana (oito partes, escritas entre 1597 e 1729) eram cistercienses. Curiosamente, embora D. Pedro I tenha sido um dos principais benfeitores do Mosteiro de Alcobaça, não há um capítulo dedicado a este rei; mas existe um dedicado a D. Afonso IV onde D. Pedro é mencionado (Monarquia Lusitana, Sétima Parte, Rafael de Jesus, 1683 – cf. Capítulo III, págs. 361). A oitava e última parte incide sobre os reinados de D. Fernando e D. João I. Adiante, voltarei a falar da Ordem de Cister (A SUPREMACIA DE CISTER) e dos seus conflitos com os reis de Portugal que tentaram limitar-lhe o poder, sobretudo D. Afonso IV.

     Com a publicação do suposto casamento secreto de Bragança, para além de querer honrar D.ª Inês, D. Pedro queria sobretudo legitimar os seus filhos bastardos, para justificar as benesses de príncipes que lhes concedeu e, se as circunstâncias fossem propícias, permitir que um ou outro (D. João ou D. Dinis), pudesse ser seu sucessor no trono de Portugal. Tal possibilidade assustava aqueles que conheciam melhor as motivações e a ambição da família Castro. 

Gravura fictícia, representando o casamento secreto de D. Pedro I de Portugal com Inês de Castro.

     Retornemos aos meandros da história de Pedro e Inês. As dúvidas são tantas como as certezas, o que se sabe tanto como o que não se sabe ou menos. O certo é que no caso de D. Pedro, as motivações pessoais e privadas se misturam e confundem amiúde com a imagem e os actos públicos e políticos.

     Nas notas à bibliografia, que surgem nos posts seguintes, refiro-me à instituição do beneplácito régio por D. Pedro I (alguns consideram que apenas o confirmou). Esta lei pretendia impedir a falsificação de documentos eclesiásticos (abuso praticado frequentemente pelo clero em proveito próprio ou de terceiros) e a publicação de bulas papais sem a aprovação do rei. No que toca ao casamento secreto de Bragança, esta era uma lei muito conveniente.

     Segundo alguns autores, o papa João XXII (papado de Avinhão, 1316-1334) terá recusado o pedido de dispensa de D. Pedro para casar com D.ª Inês (?), porque eram primos. A data indica que só pode tratar-se de um lapso: o pedido de dispensa não podia referir-se a D. Inês nem podia ter sido feito por D. Pedro mas por seu pai. Após esta recusa, há sim provas de que D. Pedro solicitou (nova) dispensa para casar e legitimar os filhos de D.ª Inês ao papa Inocêncio VI (papado de Avinhão, 1352-1362) e este recusou.

     No entanto, a bula apresentada (no juramento de Cantanhede) por D. Pedro é a de João XXII. Caso deveras estranho, já que o papa João XXII faleceu em 1334, mais de vinte e cinco anos antes da declaração de Cantanhede! Nesta bula refere-se que o pedido é feito por D. Afonso IV em nome de D. Pedro, mas não menciona explicitamente o nome de D.ª Inês nem o de outra mulher. Fernão Lopes transcreve o juramento de Cantanhede em que se inclui esta bula, deixando a impressão de que não acredita na sua autenticidade. Na verdade, no capítulo (Crónica de D. Pedro I) referente às objecções e dúvidas sobre este casamento, fica bem claro que os argumentos dos que o negavam eram bem mais credíveis do que o embuste montado por D. Pedro. Para que D.ª Inês recebesse as honras de rainha, tinha de ser forjado um documento que comprovasse a existência de um casamento enquanto ela foi viva. E os filhos de uma rainha eram necessariamente pretendentes ao trono português.

Juramento de D. Pedro I do matrimónio celebrado com D. Inês de Castro. Portugal, Torre do Tombo, 18-6-1360 - ANTT.

      «Ora, assim é, que emquanto Dona Ignez foi viva, nem depois da morte d'ella emquanto el-rei seu padre viveu, nem depois que elle reinou até este presente tempo, nunca el-rei Dom Pedro a nomeou por sua mulher; antes dizem que muitas vezes lhe enviava el-rei Dom Affonso perguntar se a recebera, e honral-a-ia como sua mulher, e elle respondia sempre que a não recebera, nem o era

      In Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes, Capítulo XXVII (Como el-rei Dom Pedro de Portugal disse por Dona Ignes que fora sua mulher recebida, e da maneira que em ello teve.)

     A bula de João XXII foi apresentada como prova ao longo dos séculos pelos mais diversos autores. Alguns copiam apenas Fernão Lopes ou Rui de Pina. Eis o texto da bula numa versão do século XVIII, legitimada pela Real Academia da História:

     «(…) e à ſua viſta deo conta o Conde de Barcellos de todo este facto com as circunstancias, que nelle houve, e para tirar algum escrupulo, que podesse haver nesta materia, leo a Bulla da Santidade de Joaõ XXII. dada em Avinhão aos 18. de Fevereiro do nono anno do ſeu Pontificado, que he o de 1325. pela qual o dispenfava para contrahir matrimonio com parenta sua, ainda que fosse no grao mais chegado. A copia da dita BulIa tirada da Chronica del Rey D. Pedro, que escreveo Ruy de Pina no cap. 26. he a que se segue:

     Joanne Biſpo servo dos servos de Deos. Ao muito amado filho Infante D. Pedro primogenito do muito amado em Christo nosso filho muy caro Rey de Portugal, e do Algarve Affonso saude, e apostolica bençaõ. Se o rigor dos Santos Canones poem defeza, e interdito sobre a copula do matrimonial ajuntamento, querendo que se não faça entre aquelles que por algum devido de parentesco são conjuntos para guarda da publica honestidade: aquelle porém, que he às vezes Bispo De Roma, de poderio absoluto (em lugar de Deos)  dispensando pode por especial graça poer temperança sobre tal rigor. E porém Nós demovido acerca de tua Pessoa com especial favor; com algumas rezoens, de que adiante esperamos paz, e folgança com esses Reynos: querendo condescender a tuas preces, e del Rey D. Affonso teu Padre, que por tuas preces por ti a Nós humildosamente suplicou para cazares com qualquer nobre mulher devota à Santa Igreja de Roma, ainda que por linha transversa de huma parte no segundo grão, e de outra no terceiro sejais dividos, e parentes. E isto ainda mesmo que por rezão de outras linhas colaterais seja embargo de parentesco, ou cunhadío antre vós no quarto grão licitamente por matrimonio vos podeis ajuntar. Nós por apostolica authoridade de especial graça todo tiramos, e removemos, e dispensamos contigo, e com aquella, com quem assim cazares de nosso apostolico poderio, que a geração, que de vós ambos nacer, seja lidima sem outro impedimento. Porém nenhum homem seja ouzado presumtuosamente contra esta nossa dispensação hir. Doutra guisa certo seja na ira, e sanha do todo poderoso Deos, e dos Bemaventurados S. Pedro, e S. Paulo Apostolos encorrer. Dada em Avinhão aos doze das Calendas de Março do nosso pontificado anno nono

(in Catalogo chronologico, historico, genealogico, e critico, das rainhas de Portugal, e seus filhos, D. José Barbosa, Academia Real da História Portuguesa, Na Officina de José António da Silva, Lisboa, 1727, págs. 311-312)

     Note-se a disparidade nas datas: “18 de Fevereiro de 1325” ou “doze das Calendas de Março”?

     Por acaso ou não, esta bula é datada “aos doze das calendas de Março”, pormenor bem divertido, já que a expressão “ficar para as calendas gregas” remete para algo que nunca existirá, uma promessa não cumprida ou impossível de cumprir. Os Romanos tinham no seu calendário as “calendas” (étimo que originou a palavra calendário) e os “idos”, mas não os Gregos. Para estes não havia calendas; as calendas eram um tempo que nunca chegaria a existir… O ano nono do pontificado de João XXII foi o ano de 1325 (quando D. Pedro tinha 5 anos); o ano nono do pontificado de Inocêncio VI foi o ano de 1361 (sensivelmente na mesma altura em que D. Pedro faz a declaração de Cantanhede). Inocêncio VI recusou o pedido de dispensa que D. Pedro terá de facto feito. Seja como for, a bula apresentada por D. Pedro em Cantanhede responde a um pedido de facto feito por D. Afonso IV para casar D. Pedro, com D.ª Branca (depois repudiada) ou com D.ª Constança, mas não certamente com D.ª Inês.

Casamento Clandestino de D. Pedro e D. Inês - desenho de Charles-Abraham Chasselat, 
gravado por J. Duthé.


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