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quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

TEATRO NA ESCOLA XXXIV

 

A Flor da Alma

Pedro & Inês – Movimentos de Amor

 Pedro & Inês – Movimentos de Amor, performance de Movimento e Voz inspirada na história de D. Pedro I e D.ª Inês de Castro e em tantas outras histórias de amor e desamor. Encenação / Coreografia de Victor Sezinando. Fotografia & vídeo de São Ludovino. Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 21/2/2020.

     No palco, vimos uma encenação, de Victor Sezinando, ao mesmo tempo simples e envolvente, crua e pungente, antiga e intemporal, sobretudo pela variedade de elementos que foram muito além da interpretação de um texto. O texto, na verdade, era inexistente, nem sequer foi uma colagem de várias versões desta tragédia. Foi mais a construção de um puzzle feito de silêncios, canto, dança e interpretação. A cada espectador coube o papel de combinar as “peças” como entendesse; mas qualquer que fosse a opção, a omnipresença de Pedro e Inês fez-se sentir ao longo de toda a performance. O lirismo trágico foi o sentimento dominante na luz, nas cores, nos gestos e no canto.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

     A luz, tendendo quase sempre para o vermelho, anunciou e sublinhou a dor, a perda, a morte iminente: a brancura das saias foi a marca da pureza ondulando e acompanhando os passos; as vendas brancas lembraram como o amor é ou quer ser cego para que a felicidade perdure mesmo que por breves instantes; o retirar das vendas é o prenúncio da tragédia quando já é impossível não ver o que está diante dos olhos. Os apontamentos de canto e música percorrem diversas épocas, mudando os acordes, permanecendo a força motriz intemporal do amor. Os gestos delicados de Inês, os breves passos de dança, a correria da fuga de uma ameaça que não se pode aplacar, acompanhada pelo dramatismo dos sons altissonantes e pungentes, sucederam-se de uma forma que podiam contar só por si toda a história. O diálogo silencioso entre Pedro e Inês, que se faz de olhares, gestos, dança dizendo tudo o que haveria a dizer sem uma única palavra. O carregar do corpo morto de Inês, finalmente sentada num trono, que não é terreno nem material; os passos cadenciados dos cortesãos que se vergam perante o cadáver de Inês e lhe beijam a mão, como se tudo estivesse de facto escrito e ninguém pudesse fugir ao destino, os que partem e os que ficam. A combinação de todos estes ingredientes resultou num espectáculo de emoções fortes, visualmente belo e coerente.

     Mais uma vez, só me resta aplaudir o trabalho de todos, encenador e intérpretes, e esperar pelo próximo trabalho. Uma enorme vénia para todos!


Pedro & Inês - Movimentos de Amor, Encenação de Victor Sezinando


     Abaixo, fica um poema (Flor da Alma – Maior do que o Mundo) que esta performance me inspirou.

 

Encenação & Coreografia / Staging & Choreography

Victor Sezinando

 Elenco / Cast

Beatriz Fachina 
Bernardo Ferreira
Carolina Gomes
Carolina Teodoro
Elói Pina
Florbela Figueiredo
Gabriela Rubio
Gonçalo Alves
Joana Abreu
Joana Costa
Joana Sousa
Mariana Silva
Marta Mateus
Maria Pratas
Maria Pinheiro
Nelma Barreto
Patrícia Barbosa
Rodrigo Lencastre
Rodrigo Marques
Sandra Sofia
Yannick Gomes

 Sonoplastia

Carolina Miguel

Luz

Neuza Velez

Frente de Sala

Florbela Figueiredo

Fotografia & vídeo

São ludovino

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A Flor da Alma

Maior do que o Mundo


A flor da alma ergueu-se do seu leito terreno
Abraçou as aves e as nuvens e rumou ao azul distante.
Descalça sentiu nas raízes a chuva, o calor e o frio
Caminhou por entre as florestas e os desertos
Atravessou as planícies mais férteis
Banhou-se nas cascatas ainda puras
Percorreu aldeias e cidades
Povoados silenciosos
Ouviu multidões ruidosas
Cantou e dançou com tribos festivas
Até chegar junto ao mar
Um mar antigo que mora no alto das montanhas.
Nem uma pétala perdeu pelo caminho.
Por entre a poeira
Ficaram apenas os espinhos.

Nas águas cristalinas mergulhou
E as pétalas abriram-se em círculo flutuante
E toda a cor se enlaçou na transparência
E todo o sal rebrilhou no céu estrelado.

Sem pressa de viver
A eterna borboleta pousou-lhe no veludo vermelho.
São velas as pétalas que deslizam por entre os dedos do vento.
Navega lá longe noutro mar
A flor que de tão vermelha não cabia na Terra.

Pelas noites dentro
Pelos dias afora o barco-flor-coração
Aparece nos olhos cansados do jardineiro.
Ele olha o céu do crepúsculo
Estende os braços e recebe no peito
O beijo eterno da rosa poente.
Levanta-se no dia seguinte
E a rosa amanhece-lhe na alma
Desperta cada centelha de vida
Devolve a luz ao círculo do horizonte…

São Ludovino, 23/2/2020 

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The Soul Flower

Bigger than the World

 

The soul flower rose from its earthly bed
Embraced the birds and the clouds and headed for the distant blue.
Barefoot she felt in the roots the rain, the heat and the cold
Walked through forests and deserts
Crossed the most fertile plains
Bathed in the still pure waterfalls
Coursed through villages and cities
Silent boroughs 
Heard noisy crowds
Sang and danced with festive tribes
Until she got to the sea
An ancient sea that lives high in the mountains.
Not a petal lost along the way.
Amid the dust
Only the thorns remained.

In the crystal clear waters she plunged
And the petals opened in a floating circle
And all the color intertwined in the transparency
And all the salt twinkled in the starry sky.

With no rush to live
The eternal butterfly landed on the red velvet.
Sails are the petals that slide through the fingers of the wind.
Far away she sails away in another sea
The flower that was so red it didn't fit on Earth.

Through the nights
Throughout the days the boat-flower-heart
It appears in the gardener's tired eyes.
He looks at the twilight sky
Stretches his arms and receives on his chest
The eternal kiss of the setting rose.
Gets up the next day
And the rose dawns in his soul
Awakens every spark of life
Returns the light to the horizon circle...

São Ludovino, 23/2/2020


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Texto que acompanha o vídeo:

Num Mundo de desamor, tudo passa veloz
Como areia numa ampulheta.
Num Mundo passageiro só o Amor é eterno
Quando vem, fica, perdura
Nas estrelas, na alma, no dia que passa...

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In a World of unlove, everything goes by swiftly
As sand in an hourglass.
In a fleeting World only love is eternal
When it arrives, stays, lasts
In the stars, in the soul, in the day that goes by…

São Ludovino, 23/2/2020

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Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.





 

TEATRO NA ESCOLA XXXIII

A Medida da Vida

 Leandro, Rei da Helíria, peça de Alice Vieira interpretada pelos alunos de Artes do Espectáculo (10.º 13) da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 7/2/2020. Encenação: Victor Sezinando. Captação de imagem e montagem de vídeo: São Ludovino.

     Todas as histórias nascem do seio da vida, de uma forma ou outra. Os primeiros mitos, as primeiras lendas, as primeiras epopeias nasceram de vivências reais e do modo como o Mundo foi interpretado num dado momento da História e da vida real dos povos. Crenças, saber e imaginação formaram o molde primordial. Lá dentro os povos verteram o seu próprio ser colectivo, mesmo que as primeiras palavras tenham saído de uma única boca. Nos contos e lendas, o individual e o colectivo tornam-se indistintos logo que cada voz se apropria deles.

     Antes de existirem escolas e instrução pública, antes da filosofia e da ética, do direito e da política, essas narrativas anónimas, que teimam em não morrer, revelaram, ensinaram, separaram o bem do mal, sintetizaram o essencial e mostraram caminhos aos anciãos e aos aprendizes, ao rei e ao escravo. Por isso, encontramos estas narrativas nos quatro cantos do mundo, são intemporais e universais. Revelam afinidades e cristalizam diferenças. A matriz é humana, a expressão diversa, o horizonte ideal e fantástico. E assim, sem alterar de modo radical a face do Mundo, construíram outros mundos, outros modos de ver e viver, denunciaram poderosos, fizeram justiça metafórica, subverteram a ordem social, esboçaram utopias, tudo em simples histórias. Através da palavra, o bem venceu o mal e a injustiça; o desconcerto, o absurdo, o desequilíbrio da ordem social, as assimetrias materiais, culturais e éticas, os actos prepotentes dos intocáveis foram banidos ou punidos por quem não tinha poder nenhum.  

     O conhecido e o desconhecido, a realidade e a fantasia, os factos e as lendas, os sonhos e as utopias entrelaçaram-se e continuaram a viver de modo indistinto nas histórias populares ou eruditas. Homero registou por escrito (Odisseia e Ilíada) as histórias e as lendas que já corriam há gerações de boca em boca. Garrett fez o mesmo no Romanceiro, tal como já o tinha feito Herculano nas Lendas e Narrativas, e, já antes dele, Gonçalo Fernandes Trancoso o tinha feito nos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575). Os Românticos (tal como Herculano ou Garrett) aperceberam-se disso melhor do que ninguém. Perceberam que cabia aos doutos ouvir a voz do povo, preservá-la, recriá-la e dar-lhe uma nova vida e um novo fôlego. Cada novo tempo recria o antigo com novas roupagens, novas linguagens e propósitos.

     Os Realistas e Positivistas, como Teófilo Braga, continuaram o trabalho de recolha dos contos tradicionais que perduravam na cultura popular. O conto número 50 dos Contos Tradicionaes do Povo Portuguez, de Teófilo Braga (1883), intitula-se O Sal e a Água (ou Comida Sem Sal) e narra uma história idêntica à que encontramos em Leandro, Rei da Helíria. Retoma, de certo modo, a lenda do Rei Leir (Rei Lear) que já aparecia no Nobiliário de D. Pedro, Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis. Narrativas idênticas aparecem na cultura popular de todos os cantos do mundo. 

     A história subjacente ao enredo da peça Leandro, Rei da Helíria, de Alice Vieira, tem a mesma origem, lá longe no tempo onde a história e a lenda se fundem, tal como o próprio Rei Lear, de Shakespeare, que se inspirou em velhas lendas britânicas. Este é pois um texto dramático feito de múltiplos ecos que vêm de um passado indefinido e longínquo e se prolongam em múltiplos presentes. Até na própria sonoridade do título encontramos o eco do nome de Lear (ou Leir): no próprio nome Leandro e no nome do reino de Helíria em que ressoa o nome de Hélade (região central da Antiga Grécia) ou Hélios (deus do Sol) mas também Lear (o rei trágico, traído pelas próprias filhas a quem entregou o reino) e lírio (a flor, símbolo da pureza e da inocência), que neste conto não é um lírio mas uma violeta.

     Nesta história, Leandro, rei da Helíria, está velho e pressente o seu fim. Um sonho inquietante e premonitório mostra-lhe que o seu reino está prestes a perecer e o seu poder real a desvanecer-se. Desabafa com o Bobo, mostra-lhe o seu medo, a angústia de sentir que tudo terá um fim próximo e ele nada pode fazer, apesar de ser rei. A transitoriedade da vida faz-se anunciar com a velhice e mostra-lhe como tudo passa: o poder, a riqueza, a solidez do reino. Tenta ancorar-se no amor das três filhas (Amarílis, a mais velha, Hortênsia, a filha do meio, e Violeta, a mais nova). Num enganador exercício de egocentrismo, tenta averiguar a medida do amor de cada uma: quanto o amam, afinal, e qual delas o ama mais. A hipocrisia e dissimulação das duas mais velhas, acompanhadas pelas hipérboles da lisonja bem-falante, convencem-no de que é amado por elas acima de todas as coisas. A simplicidade e sinceridade da mais nova chocam-no («Quero-vos como a comida quer ao sal.») Prefere a bela superficialidade das palavras lisonjeiras à simplicidade da verdade.

     Tal como não consegue interiorizar verdadeiramente a ideia de que tudo é efémero (o poder, a riqueza material, a própria vida) também não percebe que os verdadeiros sentimentos não se escondem sob máscaras, são simples e autênticos, transcendem as palavras e o jogo das aparências. Medir o amor das filhas é uma forma vã de ludibriar a finitude de tudo e se convencer que, se for amado acima de todas as coisas, continuará a ser poderoso e imperecível. Está certo e errado. O amor verdadeiro não morre, mas o “amor interesseiro morre quando acaba o interesse”. Depois de dividir o reino entre as duas filhas mais velhas, acaba por ser repudiado por elas, que não têm paciência para “aturar velhos”. Deambula durante longo tempo por montes e vales, sempre acompanhado pelo Bobo, até chegar a um reino muito diferente (o reino de Reginaldo e Violeta, a filha mais nova). Nesse reino não há pelourinhos ou chibatas, não há escravatura, cada um é livre de pensar e ser quem é e as portas do palácio real abrem-se para todos.    

     Se o ponto de partida é uma história da tradição popular (um rei tenta medir o amor das filhas por si, acabando por repudiar a mais nova, a única que realmente o amava), o curso da peça percorre muitos outros caminhos. Mais do que a “lição de vida” ou a “lição moral” dos contos tradicionais, o mais importante é o confronto entre múltiplas visões da vida, condicionadas quer pelo carácter das personagens quer pelo meio social que representam. Ao longo de toda a acção, o Bobo comenta os acontecimentos, reflecte, critica e satiriza à maneira de certas personagens vicentinas. Adapta-se, porque não pode mudar o Mundo radicalmente (Bobos e Reis não podem trocar verdadeiramente de lugar, como o Rei diz desejar em certo momento de desespero), e contesta jocosamente porque essa é a única forma de provocar a mudança possível. Ele é o crítico do rei mas também o seu guia. Revela simplicidade e sabedoria, lirismo e sarcasmo, a persistência e o optimismo dos pessimistas, acreditando que a longa caminhada, a fome e a intempérie, a escuridão da gruta do pastor onde se abriga com o rei o hão-de levar a um desenlace feliz e redentor.

     Enquanto o Bobo mantém a lucidez, o rei parece alucinado. Esfomeado e envolto em andrajos ainda lhe perpassa pela mente a ilusão de ser rei e poderoso, de ter ainda o seu reino e poder fazer “justiça” com as próprias filhas que o escorraçaram. Logo a seguir nega sequer ter filhas, apenas tem um reino onde regressará. E assim, sem haver efectivamente troca de papéis sociais, o rei torna-se bobo e o Bobo torna-se rei. É ele, o Bobo-Rei, que mostra o caminho e conduz Leandro, o Rei-Bobo, à redenção possível. Não é o rei que faz “justiça”, é Violeta, a filha banida, que sem chibatas nem pelourinhos, mostra a evidência da verdade, a única que realmente importa, a justiça possível. Servindo ao rei, seu pai, sucessivos pratos cozinhados sem sal, mostra aquilo que realmente lhe fazia falta: o amor que, mesmo invisível e simples, tudo transformava. Este é, pois, mais um conto sobre o egoísmo, o perigo das aparências e o poder transformador do amor, o verdadeiro, o único que pode ser chamado amor. 

Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.

     No palco, despojado, simétrico e minimalista, o Bobo e Leandro, são os principais interlocutores, mas o verdadeiro protagonista é o amor personificado por Violeta. Veste-se da cor das violetas, é sincera e emotiva. O roxo, que simboliza a paixão, o sofrimento (a cor do manto de Cristo prestes a ser crucificado), prenuncia desde logo o triste fado que a espera. Nem por um momento vacila, aceita a desdita e a injustiça e segue o seu caminho, que será futuramente bem mais auspicioso do que o do pai que a repudiara. 

     As irmãs mais velhas, Amarílis e Hortência, surgem como caricaturas de si mesmas. De modos enfatuados, deixam transparecer nos gestos e nas palavras a dissimulação, o calculismo, a frivolidade e a ambição. Os seus pretendentes, os príncipes Felizardo (noivo de Amarílis, a mais velha) e Simplício (noivo de Hortênsia, a irmã do meio) são também caricaturas e tipos sociais. Felizardo é um novo-rico sem grandes princípios que mede o seu próprio valor pelo montante dos seus bens. Simplício é, como o nome indica, um indivíduo simplório com capacidades intelectuais limitadas e pouquíssima assertividade, limitando-se a corroborar o que os outros dizem com uma única frase, que repete até à exaustão, até se tornar uma bengala anedótica: «Tiraste-me as palavras da boca». Estes pretendentes não são relevantes em si mesmos, apenas enfatizam o carácter das irmãs, fazendo o espectador exclamar interiormente: “Os pares perfeitos para estas duas donzelas!»


Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.

     O único que parece conhecer tudo e todos desde o início é o Bobo. Aparece vestido como o tradicional “bobo do rei”, diz graçolas e faz cabriolas, mas também age e fala com perspicácia e discernimento, sobretudo quando se dirige ao rei e avalia a sua conduta. Por isso, a acção vai muito além da medida dos afectos; é uma história sobre a medida da própria vida e as vicissitudes da condição humana, sobre os governantes e os governados. Sem os comentários do Bobo, as relações sociais, a fragilidade de toda a matéria e todo o poder, a busca do próprio sentido da vida perder-se-iam numa história de ambição e ingratidão em que o cerne é sempre o carácter e o amor.

     Alice Vieira (re)escreveu esta história sob a forma de um texto dramático em que funde a linguagem tradicional com a intemporalidade das relações sociais. Esta encenação, de Victor Sezinando, combina estas mesmas nuances, a linguagem e os modos de outrora e os figurinos, atitudes e fundo musical de agora.

     Os jovens intérpretes, que se encontram no primeiro ano do curso de Artes do Espectáculo, corresponderam com empenho à especificidade dos seus papéis, mantendo-se entre a contenção, que permite que o outro fale e seja visto, e o exagero do tom e dos gestos que contribuíram para acentuar a comicidade de algumas situações e das personagens em si mesmas. O resultado final foi o de um espectáculo completo, unindo o entretenimento às emoções humanas e à reflexão introspectiva. Uma respeitosa vénia para o encenador e todos os participantes. Continuem empenhados e certamente terão ainda muito para dar!

São Ludovino, 9/2/2020

Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.

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Leandro, Rei da Helíria - Encenação de Victor Sezinando

Encenação / Staging

Victor Sezinando

 Elenco / Cast

Rei - Sandro Brandão
Bobo - Marta Gomes
Hortênsia - Luana Lobo
Amarílis - Jéssica Gomes
Violeta - Rafaela Cruz
Príncipe Felizardo - Luana Santos (noivo de Amarílis)
Príncipe Simplício - José Barata (noivo de Hortênsia)
Príncipe Reginaldo - Márcia Carvalho
Pastor, Conselheiro, Arauto & Escrivão - Sofia Nunes
Aias - Joana Martins & Érica Soutelos

Fotografia & Vídeo

São Ludovino

 

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     Seguem-se algumas páginas do Diário de Um Idiota, escritas cerca de três meses após ter assistido à peça. Podia ter escrito muitas mais páginas. Estas linhas são apenas uma pequena manifestação de solidariedade para com o Bobo do Rei da Helíria, um ser que nada tem de insignificante embora seja permanentemente tratado como se fosse “ninguém”.

 

DIÁRIO DE UM IDIOTA

(fragmentos)

 

* Dia de ventania, poeira e frutos silvestres

     Pouco importa que dia é hoje. Os pensamentos não se sujeitam à cronologia dos calendários ou à cadência das horas canónicas. Quando muito, sujeitam-se à cadência dos passos do meu amo e ao desvario das suas alucinações.

     Não é doido, bem sei, nem sequer é tido por crédulo ou idiota. Por definição o idiota sou eu. E ainda bem que assim é, pois é desse estatuto que me advém a pouca liberdade de que efectivamente disponho nos meus dias. Só os meus pensamentos continuam livres. Ora são um vendaval que tento amainar, ora são grãos de poeira que me fazem chorar.

     ― Porque choras? ― Pergunta o meu amo. ― Tu não tens preocupações, nada tens, nada perdes e nada ganhas…

     ― É só a poeira dos vossos passos que entra para os meus olhos quando caminho atrás de vós.

     ― Ora, ainda bem que caminhas atrás ou seria eu a receber a tua poeira.

     ― Mas poderia eu caminhar a vosso lado, majestade? Ainda mais sendo o vosso guia… Como posso guiar-vos ou amparar os vossos passos incertos, se escondeis de mim o horizonte? ― Perguntei-lhe.

     ― O horizonte só a mim pertence. Sou eu o rei e senhor de todas as terras e caminhos…

    Pobre diabo, nem sabe para onde caminha. Anunciei-lhe que se aproximava a hora do almoço e afastei-me para colher amoras. Caminhei bem adiante dele. Olhei-o coberto pelos seus andrajos e não vi rei algum em parte alguma. Mas eu sou um pobre idiota com um coração mole, um idiota sem qualquer credibilidade. Nunca menti na minha vida. Ainda assim, todos tomam por patranhas e graçolas as minhas palavras mais sinceras.

     Sua majestade almoçou uma mão-cheia de amoras, sentado numa pedra a meu lado, sempre convencido de que estava à minha frente. Só em movimento, enquanto caminhamos por algum caminho, se pode dizer que um vai à frente e o outro vai atrás… e apenas se for o caminho certo… ou então será tudo ao contrário. Mas quando nos sentamos, imóveis, sob alguma árvore, ninguém conseguiria dizer quem está à frente e quem está atrás.

     Respirei fundo e saboreei a minha mão-cheia de amoras, em nada menos saborosas ou nutritivas do que as que dei ao meu amo.

 

* Dia de falar com as pedras e abençoar o Sol

 

     Depois de muitas horas caminhando sob a chuva, tinha a roupa ensopada e os ossos enregelados. O meu amo ia praguejando enquanto tropeçava em quase todas pedras do caminho. Eu preferia contorná-las ou chutá-las para a berma, um método fácil de evitar a dor e alguma queda de consequências imprevisíveis. Lembrei-me de um dos sonhos do meu amo: caminhava pelas veredas do jardim do seu palácio, muito limpas e aplanadas. Ainda assim, a cada passo que dava, sentia que pedras pontiagudas lhe rompiam as solas dos sapatos de couro e veludo e lhe penetravam na carne, deixando-lhe os pés cobertos de feridas. Na altura, observei que, talvez, se andasse descalço, tal não aconteceria, talvez as pedras afiadas estivessem dentro dos sapatos e não fora, porque as veredas estavam de facto muito limpas. Claro que o meu amo me chamou idiota e ameaçou enclausurar-me durante longos dias numa masmorra escura.

     Sabendo que era bem capaz de cumprir a ameaça, não insisti no meu argumento, embora estivesse razoavelmente convencido de que estava certo.

     Entretanto, as nuvens afastaram-se ligeiramente e o Sol começou a brilhar. O meu amo decidiu fazer uma pausa para secar a roupa e dormir uma sesta. Aproveitei a ocasião para lhe guardar os sapatos já rotos na minha bolsa e pus a roupa a secar nos ramos de uma árvore. Não sabia então se tivera algum sonho auspicioso durante a sesta, o certo é que acordou mais bem-disposto e afável comigo. Deixou-me vesti-lo sem resmungar e ergueu-se para continuar a caminhada. Os sapatos continuavam na minha bolsa.

     Até onde os meus olhos conseguiam abarcar, via bem que o caminho era bem incerto e pedregoso. Agora era chegada a ocasião de verificar se o meu argumento estava realmente certo. Mais do que na fé, confiei na sabedoria do espírito e na coragem.

     Sua majestade caminhava bastante lesto e determinado. Quase não olhava o chão e, ainda assim, quase não pisou uma única pedra, e eram muitas. Em dado momento, chamou-me para próximo de si e disse-me que tivera um sonho sobre um caminho pedregoso. Sonhara que caminhava descalço e que, mesmo assim, não se feria nos pés, não tropeçava nem caía.

     ― Acho que este sonho me fez bem porque agora nem sinto as pedras do caminho. E agora, diz-me tu, por que razão já não me magoam as pedras?

     ― Perdoai-me a ousadia, majestade, mas a razão é muito simples. Acontece que enquanto sonháveis, eu andei adiante por esse caminho e conversei com todas as pedras. Contei-lhes quem éreis, o grande rei de todo este território e de todos os caminhos, e elas acederam prontamente a desviar-se dos teus passos, por muito incertos que fossem.

     ― Por uma vez, acredito em ti, meu bobo. Até as pedras se afastam para deixar passar um grande rei.

     ― Claro, majestade, nem podia ser de outra forma ― anui sorrindo para os poucos botões que ainda me restam.  

     Nessa noite, voltei a calçar-lhe os sapatos e sua majestade continuou a acreditar que até as pedras o veneravam.

     Sendo eu o mais leal e sincero dos bobos, espero que ninguém duvide da minha palavra, porque eu falei de facto com as pedras, só não posso revelar inteiramente o que lhes disse.

 

* Dia de semear ventos e colher tempestades

 

     O conceito que sua majestade fazia de si mesmo era inalterável, acontecesse o que acontecesse. Não sei quantas fronteiras já atravessáramos nem quem vivia e reinava naquelas paragens. Do seu ponto de vista, aquelas terras, aquelas florestas, aquelas gentes eram suas e sobre tudo podia exercer o seu poder ilimitado.

     Após uma curva estreita do caminho, deparámos com um magote de gente que comia e conversava à sombra de uma árvore. Sua majestade quis saber o que faziam ali aqueles maltrapilhos. Por que não estavam a trabalhar nos campos, por que não estavam acorrentados, por que ousavam levantar os olhos daquele modo quando o olhavam. Não se pode dizer que aqueles pobres camponeses tenham sido insolentes ou provocadores, mas foi assim que sua majestade os viu.

     Perguntou-lhes quem eram e sem esperar resposta, ordenou que fossem trabalhar os campos, que lhe trouxessem o melhor das suas colheitas, que se ajoelhassem e lhe beijassem o manto. A mim ordenou-me que acorrentasse aqueles que lhe pareciam os mais rebeldes e os possíveis instigadores daquele movimento de insurreição contra a sua propriedade e autoridade.

     Sem contestar, baixei-me e enrolei alguns juncos tenros aos tornozelos de alguns. Ao mesmo tempo, fiz-lhes sinal para que fossem beijar o manto de sua majestade, que não passava de um trapo esfrangalhado.

     Satisfeito com os salamaleques, sua majestade, dirigiu-se então ao aglomerado:

     ― Porque sou bondoso e misericordioso, aceito a vossa submissão e perdoo-vos. Ide agora trabalhar e trazei-me o melhor das colheitas destas terras que são minhas.

     Um deles, com menos disposição para alinhar em farsas, não esteve com meias palavras.

     ― Os homens nascem, os reis fazem-se. Nenhum de nós fez de ti nosso rei e nenhum de nós te deu as nossas terras. São nossas porque o nosso rei, muito diferente de ti, no-las deu e porque somos nós quem as trabalha. Retira-te, pois para o teu reino, seja ele onde for, ou vem trabalhar connosco e terás direito ao teu quinhão legítimo.

     Voltaram-lhe costas e prosseguiram o seu caminho. Sua majestade ficou furibunda e praguejou a plenos pulmões: “Para a roda, para a fogueira! Que não reste um único desta espécie!” Ordenou que os seus exércitos dizimassem aquela escumalha e exigiu-me que lhe trouxesse o seu cavalo para que ele mesmo lhes desse caçada e os trespassasse com a sua espada invencível.

     No tom mais humilde que me foi possível adoptar, disse-lhe que provavelmente os seus exércitos, se existissem, ainda iam levar muitos dias até chegarem àquele território. Podia até dar-se o caso de se perderem pelo caminho ou decidirem desertar mal chegassem a um lugar tão pacífico e justo. Quanto ao seu cavalo, tão transparente como o próprio vento, como ele podia constatar com os seus próprios olhos, corria livremente por entre o feno verdejante.

     Penso que nem terá ouvido as minhas explicações porque logo a seguir vi-o caminhar a galope, aos solavancos como quem vai na garupa de um cavalo, manejando furiosamente uma espada imaginária que ia cortando o ar.

     Às vezes, ainda me pergunto por que mantenho este diário. Ninguém acreditará nestas narrativas, excepto, talvez, algum idiota como eu.

São Ludovino, 3/5/2020

 

TEATRO NA ESCOLA XXXII

 

LÍNGUA PRIMEIRA

COCO – Adaptação do filme Coco da Disney / Pixar. Interpretação: alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo (12.º 13) da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa. Encenação: Gonçalo Barata. Captação de imagem e edição de vídeo: São Ludovino. Apresentação pública de 28/1/2020.

Coco (Disney / Pixar, 2017), realização de Lee Unkrich e Adrian Molina, ganhou o Óscar de Melhor Filme de Animação.

     Outro filme levado ao palco, outra descida ao mundo dos que já partiram, outra aventura, outra ousadia que podia correr mal, mas correu bem, muito bem. A acção do filme decorre em múltiplos espaços fictícios, transpostos para três espaços cénicos fundamentais: o átrio do Auditório, o palco propriamente dito (divido em vários espaços destinados a cenas específicas) e as escadas da plateia. O espectador começa por acompanhar a performance ainda antes de entrar no Auditório e de se sentar. Entra, ao som de música popular mexicana, como quem entra no pátio de uma casa em festa: a comemoração anual do Dia dos Mortos em que se recordam os entes queridos que já partiram. No átrio do Auditório, o público toma contacto com Miguel, o miúdo que protagoniza a acção, e com os antecedentes da acção principal (flashback) e também o destino final de algumas personagens (Ernesto de la Cruz, a grande estrela, morre esmagado por um sino gigante enquanto recebe os aplausos do público). Serve este episódio de aviso: cuidado com a forma como “agarras o momento”. Às vezes “agarrar o momento” significa perder tudo, incluindo a própria vida. 


Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

     Coco não é apenas uma história sobre a força e a permanência dos verdadeiros afectos, é também uma história sobre o preço da fama, sobre os métodos para a alcançar e as suas consequências. São estes dois fios condutores (a fama e o modo como se conquista) que se entretecem no desenrolar da acção unidos por um fundo comum, a música, a memória e o amor. Foi a música que separou a família, foi através da música que Ernesto de la Cruz quis “agarrar o seu momento” e conquistar a fama, é a música que traz a alegria às pessoas simples da aldeia de Miguel ― usam-na para conviver, festejar e até para lembrar os entes queridos ― e é a música que conduz Miguel ao mundo dos seus antepassados para resgatar a verdade e fazer vencer o amor.

    Ernesto de la Cruz revela ser um ídolo com pés de barro que não tem talento nem honra, um indivíduo egoísta e ambicioso que não olha a meios para atingir os seus fins, a fama. Mata o verdadeiro autor das canções (Hector, pai da Mama Coco) que lhe deram celebridade e goza a fama sem quaisquer remorsos. A verdade por trás da fama de Ernesto de la Cruz deixa a nu o jogo de aparências e a credulidade do público. Não há fama sem público. É o reconhecimento de milhares que permite que alguém seja colocado num pedestal. A imagem e o marketing são as ferramentas fundamentais, hoje mais que nunca. A comunicação rápida e fácil espalha e consagra o talento, mas também a falta dele. Nessa teia de imagens e sons, o espectador-ouvinte pode ser cúmplice da farsa ou ajudar a desmontá-la. Os espectadores / ouvintes de Ernesto de la Cruz eram igualmente crédulos e manipuláveis.

     O absurdo desta fama infundada reside sobretudo no facto de, mesmo após a morte, Ernesto de la Cruz continuar a ser uma estrela; continuou a brilhar e a ser idolatrado enquanto a verdade não foi revelada. É Miguel, o miúdo que ama verdadeiramente a música e é talentoso, que tem nas veias o sangue do seu trisavô, Hector, que desmascara Ernesto e mostra que “agarrar o momento” exige mais do que uma imagem esplendorosa e fútil.  

     Miguel faz a sua viagem ao mundo dos mortos para resgatar o trisavô do esquecimento, mas também para devolver a música à sua família, de onde tinha sido banida após a partida daquele em busca da fama. Em vez da fama, Hector encontrou a traição e a morte.


Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

     É também através da música e das canções que Miguel consegue provar à Mama Coco que nunca fora esquecida e que, sem, saber, também lembrava: “Lembra-te de mim”. Quando Miguel começa a cantar esta canção, composta para ela pelo seu pai Hector, a Mama Coco acompanha-o espontaneamente como se nunca tivesse deixado de a cantar; a memória da sua infância regressa e traz-lhe de volta o amor e a alegria.

      A música preserva a memória, lembra e faz lembrar. A memória ajuda a construir a fama; a fama morre com o esquecimento. A memória faz parte do amor e da vida; só quem lembra permanentemente ama deveras. Uma das cenas mais perturbadoras é, por isto mesmo, aquela em que percebemos que ser esquecido é não ser amado e vice-versa. O velho músico, que entrega a guitarra a Miguel, volta a morrer uma segunda vez, morre verdadeiramente, quando foi esquecido por aqueles que o conheceram em vida. O trisavô de Miguel também está prestes a morrer definitivamente quando Miguel o encontra porque a velhinha Mama Coco está prestes a esquecê-lo completamente. É a música e a fabulosa viagem de Miguel que traz de volta a memória, o amor e a música.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

     Pôr de pé um espectáculo com uma produção tão complexa foi um grande desafio para o encenador, Gonçalo Barata, e para os jovens intérpretes, finalistas do Curso Profissional de Artes do Espectáculo. Foi necessária uma coordenação perfeita entre todos para ordenar tantas cenas, entradas e saídas, mudanças de espaço e de cenário, a música e o silêncio, a luz e a penumbra. O espectador foi arrancado da sua habitual passividade de receptor e teve de mover-se, de voltar a cabeça, de procurar a origem da voz ou da luz, de antecipar o que viria a seguir. É uma performance que se vê melhor à segunda vez; da primeira vez, o inesperado foi mesmo inesperado e escapou a alguns, incluindo a mim. Inesperado, dinâmico e muito exigente do ponto de vista da coordenação, este espectáculo merecia de facto ser visto mais vezes, dentro e fora da escola. Uma grande vénia para todos os construtores deste espectáculo meticulosamente inesperado. 

Coco - Encenação de Gonçalo Barata

COCO - Rehearsal & Breaks - phot. & video by São Ludovino


     A história que se segue (Língua Primeira) inspira-se na Mama Coco, mas mais ainda na sabedoria misteriosa dos velhos, sobretudo quando observada pelos olhos de uma criança.  

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LÍNGUA PRIMEIRA  

       No livro de receitas, o único livro que possuíra em toda a sua vida, a avó anotava tudo o que considerava importante: como fazer pão de milho, como tricotar um casaco, como cozer um sapato, as melhores histórias e adivinhas, as palavras bonitas ou sábias que ouvira aqui ou ali, um Verão em que não choveu um único dia, o florescer da laranjeira no quintal, os primeiros passos e as primeiras palavras dos filhos e netos. E tantas, tantas outras coisas comuns e extraordinárias que preenchem os dias.

     Certo dia, quando dormitava na cadeira de baloiço, colocada à sombra numa das extremidades do alpendre, o neto mais novo veio sorrateiramente e pegou no livro de receitas da avó. Claro que não era um livro impresso, era um caderno com folhas lisas que a avó preenchera ao longo de muitas décadas. Aquele livro era para Ruiz um grande mistério. A avó nunca se separava dele, não deixava que ninguém o lesse e usava-o sempre nos momentos importantes. Houve tempos em que chegou a pensar que a avó era uma espécie de feiticeira que anotava ali todos os segredos de magia. Porque ela fazia mesmo magia. Ele já vira muitas vezes com os seus próprios olhos.

     Naquele Verão em que não choveu, a avó andava muito apreensiva, sempre a olhar para o céu e a proferir palavras que mais ninguém entendia. Um dia, quando o mês de Setembro ia já a meio, a avó levantou-se a meio da noite e foi para o pátio acompanhada pelo seu livro de receitas. Ruiz também andava inquieto e acordava muitas vezes de noite. Ia à janela, via o céu limpo e as estrelas a cintilar. Por instantes ficava maravilhado e calmo. Mas logo que se deitava, a inquietação voltava. Com aquele céu sempre limpo nunca iria chover. Será que não voltava a chover nunca mais? Era uma ideia assustadora. Por isso dormia a sono solto na esperança de ouvir lá fora a canção da chuva.

     Naquela noite não ouviu o cair da chuva mas os passos da avó que fizeram ranger as tábuas do alpendre quando desceu para o pátio. Sem fazer barulho, ele levantou-se e foi pôr-se à janela, muito discretamente escondido atrás da cortina de renda que a avó fizera. Lá estava ela, toda iluminada pela Lua, de braços abertos, com o livro de receitas numa das mãos, a olhar para o céu. De vez em quando, apertava contra o peito o caderno de capa gasta e proferia baixinho uma oração, uma fórmula mágica, uma canção, uma história, um poema ou sabe-se lá o quê. Esteve assim várias horas, enquanto a Lua continuava a descer para Oeste até tocar as montanhas distantes. Enquanto este ritual durou, a Lua foi mudando de cor; de azul passou a amarela, depois a rosa até ficar quase vermelha e parecer um pequeno sol perdido na noite.

     Quando terminou, a avó parecia exausta mas muito calma. Voltou para dentro e foi deitar-se. Ruiz ficara completamente sem sono e decidiu ir ele para o pátio. Sentou-se numa pedra junto à laranjeira e assim ficou a perscrutar o céu enquanto a Lua se escondia pouco a pouco atrás das montanhas. O luar ia-se entrelaçando com a primeira luz da manhã anunciando um novo dia. E que dia espantoso! 

     Antes de os primeiros raios de Sol desenharem a sua sombra no chão, Ruiz viu um enorme bando de pássaros aproximar-se. Vieram pousar nas árvores em redor do pátio. Alguns decidiram instalar-se na laranjeira e chilrear numa conversa animada. Nada de extraordinário. Todos os dias acordava com o chilrear dos pássaros no pátio. Nunca apontara uma fisga a um pássaro, não porque a avó ficaria muito magoada, mas porque lhe parecia uma enorme maldade matar seres que assim de forma tão harmoniosa o acordavam para um novo dia. O que foi diferente nessa manhã é que ele estava ali, entre os pássaros, e não deitado na sua cama.

     Os pássaros desceram dos ramos e vieram chilrear nos beirais, nos peitoris das janelas, no alpendre, no chão mesmo aos seus pés. Não tinham medo, pareciam sorrir e cantavam suavemente. Por fim levantaram todos, voaram em redor da sua cabeça e voltaram a desaparecer atrás das copas das árvores mais altas. Absorvido pela dança dos pássaros, não viu o exacto instante em que o Sol surgia por trás das montanhas. Vinha envolto numa auréola branca e azulada. Quando olhou, sentiu vontade de gritar mas a voz não saía. Nuvens, eram nuvens que nasciam com o Sol. Em breve a ténue auréola foi-se adensando como uma longa cabeleira que se estendia pelo céu.

     Sem conseguir esperar mais, correu para casa aos gritos. «Nuvens, nuvens! As nuvens voltaram! Vieram com o Sol da alvorada!» Em breve todos estavam a pé e seguiam-no até ao pátio. Ainda tiveram tempo de ver o grande olho luminoso piscar entre a longa cabeleira. Depois, o Sol desapareceu por completo e todo o céu era um tecto promissor. A primeira gota tocou os lábios de Ruiz. Saboreou-a como um delicioso néctar. A avó abriu os braços de par em par e pronunciou mais uma daquelas melopeias que ninguém entendia. Estampado na cara tinha o mais belo sorriso que lhe vira.

     Desde esse dia, Ruiz passou a olhar a avó como um ser que não era inteiramente deste mundo. «Foi ela!» pensou, «Foi ela que trouxe as nuvens, trouxe a chuva! A terra vai ficar fértil de novo, vamos ter flores e uma horta cheia de legumes!»

     Passaram três anos desde esse dia e desde então Ruiz tinha um objectivo mais importante do que todos os outros: ler o livro de receitas da avó. Qual seria a receita para fazer chover?

     Hoje a avó dormia serenamente no alpendre e o caderno estava logo ali em cima do parapeito da janela. Chamava-o: «Vem, vem ler-me, se fores capaz. Vem descobrir os meus segredos…» 

     Antes de o abrir, respirou profundamente, preparando-se para a grande aventura e revelação. Na folha de rosto havia uns desenhos estranhos, pareciam plantas-animais ou talvez fosse o contrário. As folhas e as flores tinham olhos e boca e os animais tinham pernas de ramos e cabelos de algas e conchas. Também havia estrelas e palavras soltas que não conseguia decifrar, excepto o título escrito no centro: Livro de Receitas. Preparou-se então para a primeira página. De novo respirou profundamente e voltou a página. Mais desenhos e frases escritas naquela linguagem que não entendia. Não sabia que a avó desenhava, desenhava de uma forma belamente imperfeita. Não sabia o que significavam aqueles desenhos, apenas lhe pareciam belos e cheios de vida. Havia árvores cobertas de sóis e luas, pássaros com asas de gotas, flores entrelaçadas com figuras humanas, o vento inclinando a erva, uma casa feita de conchas e folhas, um caminho seguindo para o mar…

     Continuou a voltar as páginas e o espanto prosseguia até que eram já as páginas que se voltavam sozinhas e ele estava lá dentro, rolando pela erva fresca, sentindo o vento nos cabelos, molhando os pés à beira mar, chilreando nos ramos de uma árvore, atravessando montanhas, tocando as nuvens, caminhando entre as estrelas.

     Assim esteve muito tempo. O Sol descia suavemente atrás das montanhas e as sombras alongavam-se e tocavam-se numa saudação cordial. Sem dar por isso, o caderno descaiu-lhe sobre os joelhos e olhou o chão. Ao lado da sua sombra adivinhou a sombra da avó. Estava de pé atrás dele. Não tinha um ar zangado nem ralhou com ele. Apenas estendeu a mão e ele devolveu-lhe o caderno.

     ― O que aprendeste hoje de novo, Ruiz? Todos os dias aprendemos coisas novas. Hoje eu aprendi que chegou o momento de te revelar algumas páginas deste caderno. Agora que já viste o que há lá dentro, o que aprendeste, o que compreendeste do que viste? ― Perguntou a avó com toda a serenidade.

     ― Bem, não sei bem o que aprendi porque não percebi quase nada mas sei que gostei muito e que gostava de compreender. Que língua é essa em que escreves e falas às vezes? ― Inquiriu Ruiz.

     ― É a minha verdadeira língua, a primeira que aprendi logo que comecei a falar. Todas as crianças aprenderam essa língua. Só mais tarde, fomos obrigados a aprender esta língua que todos falam… uma língua de esquecimento, uma língua fronteira que nos separou das origens. Falávamos com as árvores e elas entendiam, falávamos com os pássaros e eles chilreavam de volta, falávamos com as nuvens e o vento e eles dançavam e cantavam em nosso redor… Mesmo calados, falávamos com o Sol e a Lua e eles respondiam com um brilho que dos olhos passava à alma e lá ficava a fazer-nos crescer.

     ― Avó, tu pareces tão sábia… quando crescer, quero ser como tu…

     ― Deseja antes ser simples como eu… Essa será a melhor maneira de seres sábio!

     ― Mas, diz-me, avó, o que se passou naquela madrugada daquele Verão quente e seco quando tudo parecia estar a morrer… Tu trouxeste as nuvens, sei bem que foste tu… Fizeste chover e tudo voltou a brilhar…

     ― Enganas-te. Não fui eu que fiz chover. Eu só falei com as estrelas e o esquecimento. É preciso falar sempre com o esquecimento. Se falares com ele, torna-se memória que nada esquece e tudo abarca. As estrelas nunca esquecem, sabes. Quando quiseres devolver a vida a alguma coisa tens de falar com as estrelas. Elas lembram-se de tudo e de todos… Mesmo que tu te esqueças, elas vão lembrar-se. Eu nunca deixei de falar com as estrelas… por isso me lembro ainda da minha língua primeira.

     ― Mas como podem ouvir-te as estrelas e compreender a tua língua… Tu vieste das estrelas? Foi lá que aprendeste essa língua?

     ― As estrelas não estão sós, sabes. Estão povoadas de muitos seres, seres que estiveram aqui, ali, além… Um dia, também tu hás-de caminhar pelas estrelas… Será daqui a muito, muito tempo e eu estarei lá para te receber. Caminharemos por um grande livro que contém toda a história do mundo escrita em muitas línguas e tu vais compreendê-las todas… Foram eles, os que moram agora nas estrelas que trouxeram as nuvens do mar até aqui…

     ― Mas onde é que eles estão que não os vejo?

     ― Há muito mais do que aquilo que podes ver… Não podes ver o vento, mas ele pode segredar-te muitas coisas ao ouvido… Não podes ver as nuvens que estão para lá das montanhas, mas elas estão agora mesmo a refrescar outras terras, não podes ver o Sol quando adormece mas está acordado do outro lado do mundo, não podes ver a vida quando cais no sono, mas continuas vivo e tudo continua a existir…

     ― Que bonitas que são aquelas nuvens avó! Foram também eles que as trouxeram?

     ― Foi a Mãe Natureza, é ela o elo entre todas as coisas… As estrelas são tão naturais como as gotas de água, como o teu espanto de criança ou os meus cabelos brancos…

     ― Avó, promete-me que nunca te vais esquecer dessa língua que te faz falar com tudo…

     ― Prometo! Ela não me deixaria esquecer mesmo que eu quisesse… É a língua do amor que une todas as coisas belas e essenciais… e eu nunca deixei de amar…

São Ludovino, 21/4/2020

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Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

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Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.


Encenação / Staging

Gonçalo Barata

Elenco / Cast

Adriana Loureiro
Ana Martins
Beatriz Carvalho
Cátia Castanheira
Diana Sardinha
Diogo Pereira
Filipa Lopes
Iris Sena
Joana Jorge
João Duarte
Maria Mendes
Mariana Correia
Nádia Antunes
Rafaela Alves
Raquel Simões
Samira Baldé
Sandro Dias
Sara Carvalho
Sofia Pedrosa
Tatiana Cavalheiro

Adaptação do filme Coco da Disney / Pixar

Adaptation of the Disney / Pixar Movie Coco

Gonçalo Costa
Bruno Santos
Catarina Castanhas
Constança Neves
Diogo Campos
Gil Gualota
Joana Ribeiro
José Gomes
Júlio Pinheiro
Maria Silva
Raquel Bragança
Sophia Monteiro
Tiago Sousa

Fotografia & Vídeo / Photography & Video

São Ludovino