sexta-feira, 22 de outubro de 2021

LENDA & HISTÓRIA IX

 A NUNCA ESQUECIDA CONSTANÇA

 

     D.ª Constança, também descrita como muito “bela e discreta”, não foi sepultada num panteão real mas num túmulo singelo (“arca pétrea”) em Santarém. O facto de ter sido a mãe do futuro rei de Portugal, D. Fernando, não foi suficiente para que D. Pedro a honrasse ou homenageasse. Pelo contrário, a sua memória parece ter sido completamente apagada. D.ª Constança foi inicialmente (1345) sepultada no Convento de S. Domingos das Donas (ou Convento das Donas). Posteriormente, em 1376, D. Fernando, seu filho, ordenou que os seus restos mortais fossem trasladados para o Convento de São Francisco, também em Santarém, para serem sepultados numa zona nobre da igreja, o coro-alto. Foi, aliás, D. Fernando quem se preocupou em restaurar e ampliar este convento, construindo o coro-alto e o claustro. Além disso, elevou este convento à qualidade de “panteão régio”, recusando que sua mãe fosse sepultada em Alcobaça e fosse novamente humilhada, mesmo depois de morta. Por vontade sua, D. Fernando viria a ser sepultado ao lado da mãe, a mãe que ele nunca conheceu, pois D.ª Constança morreu duas semanas após o parto e o infante seria criado pelos avós, D. Afonso IV e D.ª Beatriz.

     No final do século XIX (1875), ambos os túmulos foram transferidos para o Museu Arqueológico do Convento do Carmo, em Lisboa. Motivo? Os sucessivos actos de vandalismo contra estes túmulos, quer durante as Invasões Francesas, quer durante a Revolução Liberal, quer durante o processo de extinção das ordens religiosas e, mais tarde, com a instalação do Regimento de Cavalaria n.º 4 que assentou arraiais no Convento de São Francisco (Santarém) em 1844. Os militares decidiram usar os túmulos de D. Fernando e D.ª Constança como “cavalete de selas”, um apoio para as selas dos seus cavalos quando não estavam a ser usadas!!! Almeida Garrett, ele próprio um liberal, lamenta, nas Viagens na Minha Terra, o estado de decadência em que se encontrava o Convento de São Francisco e os túmulos reais nessa mesma altura (1846): «O belo jazido do rei formoso e frívolo (D. Fernando), tão dado às delícias do prazer como foi seu pai às austeridades da justiça, em que estado ele está! Oh nação de bárbaros! Oh maldito povo de iconoclastas que é este

 

D. Fernando I - Portret van koning Ferdinand I van Portugal.


Túmulo gótico de Fernando I de Portugal - convento do Carmo, Lisboa. Fotografia de Stephan Classen.


A SEMPRE ESQUECIDA CONSTANÇA

 

     D. Pedro não humilhou apenas D.ª Constança, em vida e depois de morta; humilhou também a sua avó, a rainha D.ª Isabel, mulher de D. Dinis (1261-1325). D.ª Isabel (1271-1336) mandou erigir o paço real de Coimbra, junto ao Mosteiro de Santa Clara, para se proteger das constantes infidelidades e maus tratos de D. Dinis, que chegou a exilá-la em Alenquer e a retirar-lhe as terras e bens que lhe pertenciam. Pois foi precisamente nesse paço de Coimbra, onde a fiel (D.ª Isabel) se refugiava do infiel (D. Dinis), que D. Pedro, o eterno infiel, se instalou com D.ª Inês após a morte de D.ª Constança, e foi no cemitério desse mosteiro que, segundo alguns, D.ª Inês foi inicialmente sepultada, em campa rasa. D.ª Isabel, que falecera em Estremoz, foi sepultada precisamente no Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra. Não surpreende, portanto, que tal comportamento de D. Pedro tivesse suscitado tanta revolta, não apenas pela relação que mantinha com D.ª Inês, mas porque com cada acto parecia querer humilhar e ofender a memória dos que já tinham partido. Antes de Coimbra, D. Pedro e D.ª Inês viveram temporariamente em outros locais, como Moledo, Canidelo, Jarmelo (Guarda), entre outros, mas a escolha do paço real de Coimbra foi certamente um acto premeditado e intolerável.   

     D. Fernando mandou gravar no túmulo da mãe o brasão dos Manuel (família de D.ª Constança Manuel) e da casa real portuguesa (casa de Borgonha, dinastia Afonsina). Mandou ainda gravar diversas cenas da vida de S. Francisco, incluindo uma em que este fala com os animais como seus iguais.

     D. Pedro, entre outros motivos decorativos, mandou gravar no seu túmulo uma Roda da Fortuna e, no de D.ª Inês, uma representação do Juízo Final em que uma fila de mortais caminha para cima, em direcção ao Paraíso, e outra fila caminha para baixo, em direcção ao Inferno. Como é natural, depreende-se que D. Pedro se imagina, a si e a D.ª Inês, entre aqueles que caminham para o Paraíso. Uma estranha consciência dos próprios actos que o leva a pensar que merecia a recompensa celestial. Entre os motivos religiosos gravados, um parece estranhamente violento: o diabo abre o ventre a Judas para lhe roubar a alma. De entre os elementos profanos, é curiosa a presença de vários instrumentos musicais no túmulo de D.ª Inês; D. Pedro sempre gostara de música, danças e divertimentos. No túmulo de D. Pedro está também a inscrição “Até ao fim do mundo”, um epitáfio perfeito. O facto de o túmulo de D.ª Inês ser ligeiramente menos sumptuoso e ter menos detalhes gravados deve-se, provavelmente, à determinação de a sepultar em Alcobaça com a máxima brevidade, após a declaração de Cantanhede.


"D. Constança, primeira mulher de D. Pedro I" por Roque Gameiro.

Constança – A Princesa Traída por Pedro e Inês, Isabel Machado, A Esfera dos Livros, 2015

 

Visita Guiada às Ruínas do Carmo, em Lisboa – Portugal

(D. Fernando I, a partir dos 11:57 minutos)

 

OTúmulo de D. Fernando I é um documento político (apenas o excerto referente a D. Fernando I) 

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