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sexta-feira, 22 de outubro de 2021

LENDA & HISTÓRIA IX

 A NUNCA ESQUECIDA CONSTANÇA

 

     D.ª Constança, também descrita como muito “bela e discreta”, não foi sepultada num panteão real mas num túmulo singelo (“arca pétrea”) em Santarém. O facto de ter sido a mãe do futuro rei de Portugal, D. Fernando, não foi suficiente para que D. Pedro a honrasse ou homenageasse. Pelo contrário, a sua memória parece ter sido completamente apagada. D.ª Constança foi inicialmente (1345) sepultada no Convento de S. Domingos das Donas (ou Convento das Donas). Posteriormente, em 1376, D. Fernando, seu filho, ordenou que os seus restos mortais fossem trasladados para o Convento de São Francisco, também em Santarém, para serem sepultados numa zona nobre da igreja, o coro-alto. Foi, aliás, D. Fernando quem se preocupou em restaurar e ampliar este convento, construindo o coro-alto e o claustro. Além disso, elevou este convento à qualidade de “panteão régio”, recusando que sua mãe fosse sepultada em Alcobaça e fosse novamente humilhada, mesmo depois de morta. Por vontade sua, D. Fernando viria a ser sepultado ao lado da mãe, a mãe que ele nunca conheceu, pois D.ª Constança morreu duas semanas após o parto e o infante seria criado pelos avós, D. Afonso IV e D.ª Beatriz.

     No final do século XIX (1875), ambos os túmulos foram transferidos para o Museu Arqueológico do Convento do Carmo, em Lisboa. Motivo? Os sucessivos actos de vandalismo contra estes túmulos, quer durante as Invasões Francesas, quer durante a Revolução Liberal, quer durante o processo de extinção das ordens religiosas e, mais tarde, com a instalação do Regimento de Cavalaria n.º 4 que assentou arraiais no Convento de São Francisco (Santarém) em 1844. Os militares decidiram usar os túmulos de D. Fernando e D.ª Constança como “cavalete de selas”, um apoio para as selas dos seus cavalos quando não estavam a ser usadas!!! Almeida Garrett, ele próprio um liberal, lamenta, nas Viagens na Minha Terra, o estado de decadência em que se encontrava o Convento de São Francisco e os túmulos reais nessa mesma altura (1846): «O belo jazido do rei formoso e frívolo (D. Fernando), tão dado às delícias do prazer como foi seu pai às austeridades da justiça, em que estado ele está! Oh nação de bárbaros! Oh maldito povo de iconoclastas que é este

 

D. Fernando I - Portret van koning Ferdinand I van Portugal.


Túmulo gótico de Fernando I de Portugal - convento do Carmo, Lisboa. Fotografia de Stephan Classen.


A SEMPRE ESQUECIDA CONSTANÇA

 

     D. Pedro não humilhou apenas D.ª Constança, em vida e depois de morta; humilhou também a sua avó, a rainha D.ª Isabel, mulher de D. Dinis (1261-1325). D.ª Isabel (1271-1336) mandou erigir o paço real de Coimbra, junto ao Mosteiro de Santa Clara, para se proteger das constantes infidelidades e maus tratos de D. Dinis, que chegou a exilá-la em Alenquer e a retirar-lhe as terras e bens que lhe pertenciam. Pois foi precisamente nesse paço de Coimbra, onde a fiel (D.ª Isabel) se refugiava do infiel (D. Dinis), que D. Pedro, o eterno infiel, se instalou com D.ª Inês após a morte de D.ª Constança, e foi no cemitério desse mosteiro que, segundo alguns, D.ª Inês foi inicialmente sepultada, em campa rasa. D.ª Isabel, que falecera em Estremoz, foi sepultada precisamente no Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra. Não surpreende, portanto, que tal comportamento de D. Pedro tivesse suscitado tanta revolta, não apenas pela relação que mantinha com D.ª Inês, mas porque com cada acto parecia querer humilhar e ofender a memória dos que já tinham partido. Antes de Coimbra, D. Pedro e D.ª Inês viveram temporariamente em outros locais, como Moledo, Canidelo, Jarmelo (Guarda), entre outros, mas a escolha do paço real de Coimbra foi certamente um acto premeditado e intolerável.   

     D. Fernando mandou gravar no túmulo da mãe o brasão dos Manuel (família de D.ª Constança Manuel) e da casa real portuguesa (casa de Borgonha, dinastia Afonsina). Mandou ainda gravar diversas cenas da vida de S. Francisco, incluindo uma em que este fala com os animais como seus iguais.

     D. Pedro, entre outros motivos decorativos, mandou gravar no seu túmulo uma Roda da Fortuna e, no de D.ª Inês, uma representação do Juízo Final em que uma fila de mortais caminha para cima, em direcção ao Paraíso, e outra fila caminha para baixo, em direcção ao Inferno. Como é natural, depreende-se que D. Pedro se imagina, a si e a D.ª Inês, entre aqueles que caminham para o Paraíso. Uma estranha consciência dos próprios actos que o leva a pensar que merecia a recompensa celestial. Entre os motivos religiosos gravados, um parece estranhamente violento: o diabo abre o ventre a Judas para lhe roubar a alma. De entre os elementos profanos, é curiosa a presença de vários instrumentos musicais no túmulo de D.ª Inês; D. Pedro sempre gostara de música, danças e divertimentos. No túmulo de D. Pedro está também a inscrição “Até ao fim do mundo”, um epitáfio perfeito. O facto de o túmulo de D.ª Inês ser ligeiramente menos sumptuoso e ter menos detalhes gravados deve-se, provavelmente, à determinação de a sepultar em Alcobaça com a máxima brevidade, após a declaração de Cantanhede.


"D. Constança, primeira mulher de D. Pedro I" por Roque Gameiro.

Constança – A Princesa Traída por Pedro e Inês, Isabel Machado, A Esfera dos Livros, 2015

 

Visita Guiada às Ruínas do Carmo, em Lisboa – Portugal

(D. Fernando I, a partir dos 11:57 minutos)

 

OTúmulo de D. Fernando I é um documento político (apenas o excerto referente a D. Fernando I) 

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA VIII

 RE-INVENÇÕES DE PEDRO & INÊS

     Mas regressemos a D.ª Inês e ao modo como terá sido morta e ressuscitada infinitas vezes pela lenda, pela literatura e pelo infindável reconto que vai acrescentando sempre mais um ponto…

     No opúsculo, Souvenirs de Coimbre (1843) o Marquês de Resende (citado por Sousa Viterbo), quando se refere à exumação do cadáver de D. Inês, não só diz que estava intacto, como acrescenta que até as tranças longas e louras estavam em bom estado e perfeitamente compostas. É também o Marquês de Resende que menciona outra “Ignez” ou “Agnes” da Baviera que terá sido morta (afogada no rio Danúbio), em 1435, por motivos idênticos aos de D.ª Inês. Sousa Viterbo, acrescenta que para a história ser igual só lhe faltou a coroação:

     «O auctor accrescentou preliminarmente um Avis aux lecteurs e nas duas paginas finaes uma nota histórica sobre uma dama allemã, chamada Ignez, por quem se apaixonou loucamente o duque Albrecht, filho unico de Capeto de Baviera. Ignez foi morta tyrannicamente a 12 de outubro de 1435, tendo sido mandada afogar no Danúbio. É uma tragédia idêntica á de D. Ignez de Castro; só lhe faltou a scena da coroação

     (In Artes e artistas em Portugal; contribuições para a historia das artes e industrias portuguezas, Francisco de Sousa Viterbo, Lisboa, 1892, págs. 20-26)

Agnes Bernauer, c. 1410 - 12 de Outubro de 1435), 
copy of a 16th-century work by an anonymous 18th century Augsburg painter.
A Inês da Baviera a quem se referem o Marquês de Resende e Sousa Viterbo.
Sobre ela voltarei a falar noutro post.

     Mesmo que D.ª Inês não tenha sido decapitada, a decapitação é um uso bárbaro milenar que persiste até hoje. Há evidências de que a decapitação já era usada há cerca de 9000 anos. Sobre este modo de execução, Paulo Mendes Pinto, director do curso de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, diz o seguinte:

     «Ao separar o órgão que se julgava do pensamento, o coração, do órgão de expressão, a boca, decreta-se ao defunto a incapacidade de proferir e realizar no Além ritos e afirmações que lhe dariam acesso à eternidade. O corpo deixa de ser uno e coeso. Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo é condição para que num dia de Juízo Final possa haver um novo tempo

     O que é indiscutível é que D. Pedro promoveu um sumptuoso cortejo (provavelmente em Abril de 1361 ou 1362) para acompanhar os restos mortais de D.ª Inês e a fez sepultar no Mosteiro de Alcobaça, coroada pela filigrana da pedra, rodeada pelas insígnias reais, e fê-lo com grande pompa e solenidade como se de facto fosse uma rainha. Ele próprio seria sepultado também aí seis anos mais tarde (1367), reforçando tudo o que a Lenda quis acrescentar à História.

Túmulo de Inês de Castro, no Mosteiro de Alcobaça.

Túmulo de D. Pedro I, no Mosteiro de Alcobaça.

     Ambos os túmulos são de extrema beleza, esculpidos com toda a perfeição em pedra calcária branca (“mármores brancos” dizem alguns). Consta que D. Pedro terá ido ao Porto encomendar estes túmulos por volta de 1360. No entanto, alguns autores consideram que os túmulos serão obra de artífices estrangeiros (franceses ou italianos). Manuel Vieira Natividade (Ignez de Castro e Pedro o Cru - Perante a iconographia dos seus túmulos, Lisboa, 1910, págs. 23 e 150, figuras 29 e 35), apresenta uma fotografia de uma “sigla” (assinatura ou marca) do autor no túmulo de D. Pedro. No início do século XX, este autor ainda não tinha conseguido decifrar aquela “sigla”, mas esperava vir a decifrá-la um dia e a identificar o rosto do próprio escultor entre as muitas figuras humanas que decoram ambos os túmulos: «E esperamos descobrir, um dia, entre as muitas figuras dos túmulos, o retrato do seu grande creador.» (idem, ibidem, pág. 107). Que eu saiba, ainda ninguém conseguiu decifrar a “sigla” do autor ou autores. Por minha parte, prefiro acreditar que foram de facto artífices portugueses, porque há outras obras escultóricas de semelhante beleza e perfeição saídas das mãos de artífices portugueses; e também porque não era fácil, naquele tempo, contratar no estrangeiro artífices que chegassem a Portugal a tempo de concluir os dois túmulos entre 1360 e 1361, quando muito até Abril de 1362 (entre a declaração de Cantanhede e a cerimónia de trasladação). 

     A fisionomia de D.ª Inês, gravada na pedra, será muito próxima do real, pois D. Pedro terá mandado fazer “um retrato ao natural”, a partir do qual os artífices terão esculpido a pedra. Quem fez esse retrato e como não se sabe. Se, de facto, esse retrato foi feito “ao natural” a partir do cadáver de D.ª Inês, então é pouco provável que o corpo tivesse sido decapitado. Sabe-se que era dotada de uma rara beleza, com cabelos louros muito longos e linhas elegantes. A beleza do pescoço e peito (“colo”) levou alguns a chamar-lhe “colo de garça”. D. Pedro seria de elevada estatura, teria cabelos ruivos ou louros escuros, olhos negros, “boca não pequena” e era extremamente gago desde a nascença. No domínio médico e psíquico, alguns encontram nele traços psicóticos, mudanças súbitas de humor, ataques incontroláveis de raiva, sadismo, insónias recorrentes e prováveis sinais de epilepsia.

     Diogo Barbosa Machado descreve-o assim, no Tomo III da Bibliotheca Lusitana, Lisboa, 1762, p. 539:

      «Teve estatura grande, aspecto gentil, testa dilatada, olhos fermosos, e pretos, cabelo da cabeça, e barba compridos de cor castanha que mais declinava a loura, que negra, boca larga, e engraçada, rosto corado, e tão balbuciente nas palavras como maduro nas respostas

D. Pedro I, o Justiceiro por Roque Gameiro.

      São-lhe atribuídos diversos textos poéticos. Tal atribuição é completamente negada por Carolina Michaëlis de Vasconcellos (cf. A Saudade Portuguesa, Porto, 1914). Barbosa Machado transcreve um excerto de um deles que teria surgido no Cancioneiro do P.e Pedro Ribeiro, 1577, conservado na biblioteca do Duque de Lafões (Bibliotheca Lusitana, Tomo III, p.540):


A dò hallarà holgança
Mis amores:
Adò mis graves temores
Segurança:
Pues mi suerte
De una en outra cumbre llevantado
legome a ver d’elado tu hermosura
Despues la frente para frente a frente
Vi en blando acidente amortecido:
Passome el sentido tan a dentro
Que hà llegado al centro dò amor vive:
Mas como nò recibe mi razon
Tu fiera condicion entre las manos
Desechos mis deseos
De un sobresaltado
El alma hás arrazada;
Los montes echos llamos
Dò toda mi esperança era fundada:
Si esto das por vida, que por muerte
Dar Señora podrà pecho tan fuerte.

     Afonso Sanches, filho bastardo e predilecto de D. Dinis, também teve inclinação para a poesia, tal como seu pai, o Rei Trovador. Nos Cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Vaticana surge uma cantiga de amigo que lhe é atribuída: “Dizia la fremozinha”

Poesia trovadoresca de Afonso Sanches.

Dizia la fremozinha:
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
Dizia la ben talhada:
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor coitada!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Como estou d’amor ferida!
— Ai Deus, val!
Não vem o que ben queria!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Como estou d’amor coitada!
— Ai Deus, val!
Não vem o que muit’amava!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!


Afonso Sanches
Cancioneiro da Biblioteca Nacional – N.º 784
Cancioneiro da Vaticana – N.º 368


domingo, 10 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA VI

 A SUPREMACIA DE CISTER

          D. Afonso IV foi dos poucos reis (anteriores à Revolução Liberal, séc. XIX) que tiveram a coragem de retirar bens e / ou privilégios às ordens religiosas que rivalizavam em riqueza e poder com a nobreza e a própria realeza. Contrariamente, a Ordem de Cister foi especialmente favorecida por D. Pedro I (ele e D.ª Inês estão sepultados no maior mosteiro da ordem, em Alcobaça, promovido a panteão régio por D. Pedro), não sendo, por isso, de admirar a lealdade ao seu protector e a sanha contra quem lhes retirou privilégios. A proeminência desta ordem e dos seus dirigentes fica desde logo evidente no rol de epítetos que se juntam ao nome do Abade Geral da Ordem de Cister:

     «Dom Fr. Paulo de Britto D. Abbade do Real do Mofteyro de Santa Maria de Alcobaça da Ordem de Cisfter, Senhor Donatário, & Capitão-mor das Villas de Alcobaça, Aljubarrota, Alfeyzaraõ, Alvorninha, Pederneyra, Santa Catharina, Paredes, Côs, S. Martinho, Selir do Mato, Mayorga, Évora, Cella, Turquel, & mais Lugares, & Povoaçoens de feus termos dos Coutos do dito Mofteyro, do Confelho de Sua Mageftade, & feu Efmoler môr, Geral, & Reformador da Congregação de S. Bernardo neftes Reynos, & Senhorios de Portugal, & Algarves, &c.» Veja-se, por exemplo, a Chronica de Cister, de Frei Bernardo de Brito (1602), ele próprio um cisterciense, co-autor da monumental obra Monarquia Lusitana.

Chronica de Cister - onde se contam as cousas principaes desta ordem, 
& muytas antiguidades do reyno de Portugal - primeyra parte
Bernardo de Brito, 1569-1617, Officina de Pascoal da Sylva, Lisboa, 1720.

          No segundo volume da História das Ordens Monásticas em Portugal, de Manuel Bernardes Branco, 1888, são enumerados alguns dos privilégios do Abade Geral da Ordem de Cister (vide págs. 460-461 e 463-467). Os excertos que se seguem comprovam bem como a Ordem de Cister era ambiciosa e ciosa dos privilégios conquistados. Como em quase todas as citações, foi mantida a grafia original, os destaques a vermelho são uma opção minha:

     «Em quanto esmoler mór tem os do abbade d'Alcobaça logar em cortes do mesmo posto dos outros officiaes mores da casa real.

     O mesmo nas mais funcções publicas, como são embaixadores de Príncipes, levantamentos do novo Rei, bautismo das pessoas reaes, e em outras similhantes, nos quaes assiste como creado da casa; e para isso é avisado pela secretaria do estado do dia e hora certa.

     Tem mais aposentadoria para si, e seus creados nas villas e cidades do Reino, por onde passa, pelo regimento do aposentador mór.

     Por esmoler mór se costuma dar senhoria aos D. Abbades de Alcobaça, como aos mais creados da casa real.

     Tem d'elrei cincoenta e dois mil réis por anno; e o escrivão da Esmolaria de seu ordenado vinte mil réis.

     E como o dom abbade esmoler mór deve fazar a residência pessoal no seu mosteiro de Alcobaça de que é prelado, e em razão do outro seu officio de geral tem muitos negócios e visitas da Congregação, a que é preciso assistir; por todas estas razões houveram por bem os Reis, que elles abbades apresentassem um monge da sua casa, honesto, e a aprazimento dos Reis, o qual, em nome e ausência somente dos ditos abbades, servisse por elles de esmoler mór, e seguisse sempre a corte. Apresenta-os o dom abbade por escripto, e el Rei lhes manda passar sua carta de confirmação em forma

(…)

     «No tempo dos abbades prepetuos sempre serviram em seu nome monges professos d'Alcobaça, e ora isto é cousa tão assentada entre todos, que no tempo do primeiro administrador D. George da Costa, por muito que desejou descompô-lo el-Rei D. João II, não levou ao fim despojar a real Abbadia d'esta sua preheminencia

(…)

     «Quando el-rei manda fazer por sua conta alguma gente de guerra nas terras do Mosteiro, primeiro por sua carta especial o faz saber ao dom abbade, e lhe insinua a razão motiva, porque manda fazer a tal gente.

     Doutra sorte, e sem vir primeiro esta carta não consentem os monges que se levante gente, nem que entre nas suas terras a paga-la ministro algum da milícia, por mais apertadas ordens que traga

(…)

     «El Rei D. João IV mandou restituir ao monge d' Alcobaça todas as terras e haveres que taes monges asseveravam terem-lhes sido doados por El Rei D. Affonso Henriques, embora taes doações para a critica dos nossos dias, seja mais que duvidosa. Mas o que é certo que os frades foram restituídos à posse das terras chamadas vulgarmente os Coutos d'Alcobaça, e em terras taes tinham os abbades mero e mixto império, isto é, no civel, e crime, e todo aquelle Senhorio, que antes da doação era da Coroa

(…)

     «A voz que se levantava nas pendências era d’elles; porque se não appellidava nas terras dos Coutos a voz d'El rei; mas a voz do abbade; e não se dizia nos arroidos aqui del rei, como hoje uzamos; mas diziam: Aqui do Abbade ou do Mosteiro.

     Podiam tambem os D. abbades ir em hoste; isto é, que levantavam gente de guerra nas suas terras por authoridade próprias quando e como queriam, e pela mesma sua authoridade mandavam prender e soltar em todas as villas; punham os tabelliâes em seu nome e não d'elrei: e os removiam, quando queriam porque não eram confirmados pelo príncipe, mas sómente pelo abbade.

     Da mesma sorte os juizes e mais justiças também eram postos e confirmados pelos abbades.

     Passavam alvarás de privilégios a seus creados, ou a quem queriam, pelos quaes os faziam isentos dos encargos dos concelhos e das fintas e talhas: não davam appellação nem aggravos para el rei, senão nos casos de morte: mas dos juizes se appellava para o Ouvidor e d'este para o dom abbade; e a sentença que elle dava era a final e suprema.

     Não entravam nas villas dos Coutos ministro d'elrei, mas em logar dos corregedores punham os D. abbades seu ouvidor e quando lhes parecia era um monge, o qual e o mesmo abbade faziam audiência á porta do Mosteiro

(…)

     «Conservaram-se os D. abbades de Alcobaça n'esta sua grandeza inteiramente até o tempo d'el-rei D Affonso IV.

     E do tempo d'este principe em diante é que se foi alterando lentamente toda esta soberania e grandeza.

     Pois este monarcha (D. Afonso IV) tomou aos monges o senhorio real do mosteiro, ainda que, ao depois, o tornou a restituir seu filho el-rei D. Pedro I, com tudo na carta da restituição começou já a coartar a jurisdicção aos abbades, porque mandou que dessem appelação para el-rei; e que os corregedores da Estremadura entrassem nas villas dos coutos a fazer correição.

     «Hoje por força das palavras da nova doação e confirmação do rei D. João IV teem os D. abbades de Alcobaça o mesmo Senhorio Real que se contém na primeira doação d'el-rei D. Affonso Henriques; porém modificado na praxe pelas ordenações do reino; e muito mais pela razão próxima de serem os dois abbades triennaes».

Carta de confirmação pela qual o rei D. Pedro I revalidou a Alcobaça os coutos e jurisdições, e restituiu as que seu pai, 
D. Afonso IV, tinha tirado ao mosteiro, c. 8 de Setembro de 1358. ANTT.

Cluny Y El Cister - Las Ordenes Mendicantes, 1 a 20 - 
Historia Del Mundo, Pijoan Salvat, Tomo 6, 1970.
A Ordem de Cister resulta da reforma da Ordem de Cluny.
Embora a ordem tenha sido criada por dissidentes de Cluny (Roberto de Champagne e outros monges), foi Bernardo de Claraval o grande reformador e impulsionador da Ordem de Cister, tanto em França como noutros países da Europa. A Ordem de Cister continuará a ser influente nos domínios cultural, educacional e artístico até às Revoluções Liberais do início do século XIX que vão abolir todas as ordens religiosas. O primeiro mosteiro da Ordem de Cister em Portugal (S. Cristóvão de Lafões) foi fundado em 1138, ainda antes da independência. O Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, que se tornaria o centro da ordem, seria fundado em 1153. 


Mosteiros da Ordem de Cister em Portugal.

Em 1989, o Mosteiro de Alcobaça passou a integrar o Património Mundial da Humanidade da UNESCO. (Fot. via Expresso).
Para a Fraternidade Rosacruz de Portugal, o Mosteiro de Alcobaça é um "signo artístico-simbólico",
encontrando um significado esotérico em toda a estrutura do conjunto de edifícios e nos detalhes decorativos. Sobre a rosácea que se vê na fachada principal, um artigo (Viagem Filosófica) da página da Fraternidade Rosacruz de Portugal diz o seguinte: 
«rosácea que vemos na fachada tem simbolismo solar. Embora em contradição aparente com o gosto do estilo gótico, enquadra-se perfeitamente na simbólica do estilo adoptada pelos construtores da época. Na arquitectura gótica, a rosácea associa o simbolismo da rosa (que no rosacrucianismo evoca o Graal e a redenção), com o da roda. A roda lembra a necessidade da libertação das condições impostas pelo lugar em que se nasce e pelo estado espiritual que lhe está associado por via da lei de causa-e-efeito. É, por isso, uma referência à necessidade de evolução do espírito.»


Mosteiro de Alcobaça - Refeitório, fot. de Stuart Litoff.

Mosteiro de Alcobaça - Claustro do Silêncio, fot. de C. Rozay.

Mosteiro de Alcobaça - Interior, lavatório, fot. de Manuel Alende Maceira.

Mosteiro Alcobaça - Rosácea do túmulo de D. Pedro.
Note-se que quase todas as figuras humanas foram decapitadas.
A maior parte dos actos de vandalismo contra o mosteiro e os túmulos de Pedro e Inês foram perpetrados durante as Invasões Francesas e, posteriormente durante a Revolução Liberal.

Planta do Mosteiro de Alcobaça - Portugal Monumental, via Correio da Manhã.

Planta da Sala dos Túmulos no Mosteiro de Alcobaça - Portugal Monumental, via Correio da Manhã.
Embora no presente, os túmulos de D. Pedro e D.ª Inês se encontrem frente a frente, tal como a lenda pretende, a disposição inicial era lado a lado. Segundo a lenda, D. Pedro teria mandado colocar os túmulos frente a frente para que no dia do Juízo Final, quando ambos ressuscitassem dos mortos (admitindo que ambos eram seres imaculados) o primeiro ser que cada um visse fosse o outro que estava à sua frente.

Mosteiro de Alcobaça, entre finais do século XVIII e início do século XIX.

Em 2018, Ano Europeu do Património Cultural, realizou-se o II Congresso Internacional
sobre os Mosteiros Cistercienses.





sábado, 9 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA V

EXECUÇÃO E EXECUTORES

     A própria degolação de D.ª Inês é contestada por muitos. Embora a degolação ou decapitação fosse considerada a forma de execução mais honrosa desde a Antiguidade, reservada habitualmente aos indivíduos de alta estirpe, raramente foi aplicada (na Europa) a mulheres até à Revolução Francesa. Ana Bolena, mulher de Henrique VIII foi uma das poucas excepções; mas exigiu ser executada por um carrasco francês, que usava espada, em vez de um carrasco inglês, que usava machado. Ana Bolena terá declarado que queria morrer de pé e não de joelhos.

     Em Portugal, essa não era uma forma de execução aplicada às mulheres no tempo de D. Afonso IV. O enforcamento era a pena mais comum. Aliás, a pena de morte aplicada a mulheres era raríssima, excepto nos casos de alta-traição e lesa-majestade, como seria de facto o caso de D.ª Inês, se considerarmos que era irmã de dois conspiradores. A traição dos seus irmãos era notória, tanto em relação ao reino de Portugal como ao de Castela, com a conivência do próprio D. Pedro I de Portugal. A decapitação era sim aplicada aos homens mas apenas reservada a “crimes políticos”, traição e conspiração. Segundo Paulo Jorge de Sousa Pinto, o enforcamento era a forma de execução mais comum prescrita pelas Ordenações Afonsinas (A pena de morte em Portugal e no mundo: debate na História, combate atual, 2017):

     «As Ordenações Afonsinas listam o conjunto de crimes puníveis com a morte por enforcamento: traição, moeda falsa, homicídio, adultério, sodomia, falsificação, feitiçaria ou roubo são alguns dos crimes sujeitos ao veredicto «morra porém» ou «morra por isso». Todavia, a sua aplicação na prática parece ter sido reduzida, substituída na esmagadora maioria dos casos por degredo, penas pecuniárias ou açoites públicos

The Death of Inês de Castro - O Assassínio de Inês de Castro by Karl Briullov, 1834.

     Também não é crível que D. Inês tenha sido enforcada e não foi certamente esquartejada. É, na verdade, mais provável, que D.ª Inês tenha sido assassinada com um punhal ou pequena espada. Apesar de todos estes argumentos, no túmulo de D.ª Inês está gravada uma cena que representa a degolação de uma mulher e outra em que um carrasco abre o peito de um homem e lhe arranca o coração. Mas o que diz a pedra esculpida será História ou mera alegoria que alimentou a lenda? O que se constata é que uma parte das gravuras que poderão representar D. Pedro e D.ª Inês foram “decapitadas” actos de vandalismo, cometidos sobretudo no início do século XIX, aquando das Invasões Francesas.  

     Ainda não consegui averiguar se D. Pedro aplicou este modo de execução (decapitação) a mulheres, mas aplicou outros igualmente cruéis, como queimar mulheres vivas (cf. Crónica de D. Pedro I, Cap. IX, Fernão Lopes).

     As fontes literárias contradizem a ideia de decapitação, falando quase sempre da espada ou do punhal que trespassou o peito de D.ª Inês. Entre muitos outros textos, vejam-se, por exemplo, os sonetos dedicados À Morte de D. Ignez de Castro pelo poeta arcádico, António Ribeiro dos Santos (1745-1818, conhecido pelo pseudónimo arcádico Elpino Duriense; cf. Poesias de Elpino Duriense, Lisboa, 1812, págs. 290-298). Aí, o autor fala do “bárbaro punhal”, de “duros punhais” que “seus peitos trespassaram”, do “duro ferro” que “o peito lhe passava”, do “ferro homicida” que “seus peitos trespassou”.


Poesias de Elpino Duriense, pseudónimo arcádico de António Ribeiro dos Santos, 1745-1818, Na Impressão Regia, Lisboa, 1812. Três tomos. No tomo II, págs. 290-298, vêm oito sonetos dedicados à morte de D. Inês de Castro. Logo a seguir (p. 299) vem um soneto dedicado a D. João de Castro, o 4.º Vice-rei da Índia.

   O que era comum naquele tempo era o uso da espada, do punhal e dos venenos, que tiravam a vida sem deixar grandes marcas físicas; eram usados sobretudo quando o alvo era um nobre ou membro da realeza. Há suspeitas de que os irmãos Castro (irmãos de D.ª Inês) terão tentado envenenar o infante D. Fernando, filho legítimo de D. Pedro e D.ª Constança, para que o herdeiro do trono português pudesse ser um dos filhos bastardos de D.ª Inês (D. João ou D. Dinis). Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, e seu predilecto, terá tentado fazer o mesmo a D. Afonso IV; primeiro para o impedir de ascender ao trono e, depois, para o eliminar e usurpar o trono. Mais tarde, D. Leonor de Aragão, mulher do falecido rei D. Duarte, e bisneta de D.ª Inês de Castro, terá morrido por envenenamento por se temer que pusesse em perigo a independência nacional após a morte do rei. Nas notas à bibliografia refiro outros envenenamentos.

D. Leonor, Aragoneza, mulher de D. Duarte por Roque Gameiro.

     Edme-Théodore Bourg (1785-1852), mais conhecido pelo pseudónimo Saint-Edme, no tomo III do seu Dictionnaire de la pénalité dans toutes les parties du monde connu, (1824-1828) dedica várias páginas a este crime (envenamento), enumera dezenas de envenenamentos com motivações políticas, começando desde logo por afirmar o que referi acima:

     «EMPOISONNEMENT. Ce crime, le plus difficile à constater, et p'ar cela même le plus dangereux, a toujours été puni du dernier supplice. (…) Le poison fut l'arme de la politique; (…). (…)  En 1461, le comte de Charolais faillit à être empoisonné par un de ses premiers domestiques; ce scélérat, qui s'appelait Constain, avait fait apporter d'Italie, par un nommé Jean d'Ivy, un poison très-énergique. Les Italiens jouissaient alors de l'affreuse réputation d'être les plus habiles empoisonneurs de l'Europe. (…) En France, sous l'ancienne législation, l'empoisonnement, qu'on appelait le crime de poison, était puni de mort, conformément aux ordonnances du royaume, et notamment à l'édit du mois de juillet 1682; mais cette loi n'a point déterminé le genre de supplice auquel devaient être condamnés les empoisonneurs. Le législateur semblait avoir voulu laisser à l'arbitrage des juges la faculté d'en augmenter ou d'en diminuer la rigueur suivant les circonstances. (…) Un empoisonnement commis, il y a peu d'années, par un homme versé dans l'art de guérir, a révélé à la multitude une substance vénéneuse qui peut donner la mort sans laisser de traces visibles de ses effets meurtriers: c'est l'acétate de morphine. A l'époque de cet attentat longuement inédité et lentement exécuté par le médecin Castaing, on craignit avec raison que la publicité donnée à cette affaire et la révélation de la substance employée, ne fissent, éclore de nouveaux crimes. C'était un avertissement donné à l’autorité de redoubler de surveillance et d’activité envers ceux qui tentent de se soustraire aux mesures de police prises pour prévenir les dangers du commerce libre des poisons ou substances vénéneuses(Tomo III, págs. 465-475).

     Apesar de ser um crime e uma forma de tirar a vida muito comum desde a Antiguidade e entre as civilizações mais remotas de todos cantos do mundo, não foi certamente um veneno que matou D.ª Inês.

     De entre todos os que registaram, narraram ou recriaram a morte de D.ª Inês, há no entanto duas fontes coevas que apontam assertivamente para a degolação ou decapitação. Ambos os autores são clérigos, um do Mosteiro de Alcobaça, da Ordem de Cister, e outro do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, da Ordem de Santo Agostinho, duas das ordens mais antigas que se sediaram em Portugal ainda no reinado de D. Afonso Henriques. As ordens religiosas, especialmente a de Cister, sempre foram largamente beneficiadas pelos monarcas portugueses até ao reinado de D. Afonso IV que lhes retirou parte dos coutos e privilégios, motivo suficiente para despertar a animosidade de algumas das ordens contra este monarca, especialmente da Ordem de Cister.

     Ambos os cronistas atribuem a D. Afonso IV a ordem da execução. Ambos os relatos estão em latim e apontam como ano da morte de D.ª Inês o de 1393, por se regerem ainda pelo calendário da Era Hispânica ou Era de César. A Era Hispânica só foi abolida, em Portugal, por D. João I, em Agosto de 1422, embora já tivesse sido abolida pela Igreja em 1180 e houvesse desde o século VI monges que usavam a datação da Era Crstã (Dionísio, o Exíguo terá sido o primeiro). A Era Cristã, Era de Cristo ou Era Comum começa 38 anos antes da Era Hispânica, isto é, o ano de 1393 corresponde ao de 1355. Portanto, tanto o ano como o dia e mês (7 de Janeiro) registados pelos cronistas de Alcobaça e Santa Cruz estão correctos. A única diferença está no vocábulo usado para designar o modo como D.ª Inês foi morta: o clérigo de Santa Cruz usa a palavra “decolata” (decapitada ou degolada) e o de Alcobaça usa o termo “occidit” (matar de uma forma genérica). Apesar destes relatos, a maioria dos investigadores e escritores não consideram credível a decapitação. Maria José Azevedo Santos, apesar de seguir a tese da decapitação, reconhece que muitos discordam:

     «Contudo, é forçoso dizer que a decapitação, bárbaro modo de assassinar, tão frequente na Idade Média, tem sido rejeitado por muitos poetas, dramaturgos e investigadores inesianos que não aceitam a amputação de um corpo imaginado, e celebrado ao longo dos séculos, pelo encanto, elegância e formosura que exibia.» (Vide D. Inês de Castro – Colo de Garça, Academia Portuguesa da História, 2011, pág. 55).

D. Ignez de Castro por Roque Gameiro.



 

LENDA & HISTÓRIA IV

TESES LITERÁRIAS E ENGANADORAS

     Uma das teses, meramente literária e completamente descabida, defende que a morte de Inês de Castro se deveu a um amor não correspondido de Diogo Lopes Pacheco por D.ª Inês. Na perspectiva de Fernão Lopes, Diogo Lopes Pacheco apenas tenta afastar D. Pedro de D.ª Inês porque sabia que era uma relação perigosa para a paz e a soberania nacionais e que desagradava a D. Afonso IV. Na verdade, havia até uma grande proximidade entre D. Pedro e D. Diogo, já que parte da infância de ambos tinha sido passada na casa de D. Lopo Fernandes Pacheco (1280-1349), pai de D. Diogo, conselheiro de D. Afonso IV, mordomo-mor e chanceler de D.ª Beatriz (mulher de D. Afonso IV), testamenteiro de D.ª Isabel (mulher de D. Dinis), meirinho-mor e mordomo-mor do infante D. Pedro (futuro D. Pedro I), além de ter sido encarregue por D. Afonso IV da educação dos infantes D. Pedro (I) e D.ª Leonor:

     «Fernão Lopes defende outra versão, a de que Pacheco em cuja Casa o Infante Pedro foi criado por seu pai Lopo Fernandes Pacheco com quem dividiu boa parte de sua infância e juventude teria muitas vezes alertado o seu amigo e futuro rei da necessidade de afastar Inês do alcance e da sanha que contra ela alimentava Afonso IV

(In Usurpações, casamentos régios, exílios e confiscos, as agruras de um nobre português no século XIV, Fátima Fernandes, Revista de História Helikon, Curitiba, V.2, n.º 2, p. 02-15, 2º semestre, 2014)

     Júlio de Castilho foi um dos que propagou esta tese (cf. D. Ignez de Castro - drama em cinco actos e em verso, Júlio de Castilho (1840-1919), B. L. Garnier, Rio de Janeiro, 1875). No prólogo, em que traça um retrato das personagens principais e explica as suas escolhas dramáticas, dá a entender que esta perspectiva tem uma dimensão sobretudo literária e não genuinamente histórica. Comparando a forma como trata cada uma das personagens, e percebendo-se que há uma necessidade dramática de culpabilizar alguém, compreende-se por que escolheu Diogo Lopes Pacheco. Dado que D. Afonso IV revelou muitas e boas qualidades enquanto monarca, Júlio Castilho preferiu não destruir com a Literatura essa imagem histórica. De qualquer modo, Júlio de Castilho não pretendia escrever ou reescrever a História; o seu “drama” (não tragédia) situa-se entre a História e a Lenda, reclamando naturalmente a liberdade criativa a que tinha direito. Os excertos seguintes comprovam esta abordagem: (foi mantida a grafia original)


Júlio de Castilho, 1840-1919, filho de António Feliciano de Castilho, 1800-1875.

     «Nunca esta obra saberia aspirar aos altos foros litterarios de tragedia; a não ser pelo assumpto, que esse é dos mais trágicos da chronica portugueza. Não podendo pois edificar uma tragedia, na vasta significação d'essa palavra, contentou-se o autor com uma tentativa de drama.» (…)

     «Abramos o livro da nossa historia.» (…) «É essa, em dois traços, a historia-lenda da collo-de-garça.» (…)

     «Eleita a scena e chamados os actores, agrupou-os, metteu-os na sua perspectiva; depois pôz-se a escutá-los. Escutar os personagens é o melhor meio de compor um drama; é talvez o único. Os personagens não são titeres; são homens, ou foram-no. Ouvi-los é a arte

     Referindo-se a D. Pedro I, que divide em dois, o infante e o rei, de forma a atenuar a violência das atrocidades cometidas:

     «Houve de um (infante) para outro (rei) um reviramento, uma completa metamorphose. Suspeitamos até que o monstruoso Rei, a que alguns chamam Justiceiro, não tem perfeitas as faculdades mentaes. Só assim lhe atenuamos a imputação das inqualificáveis e sanguinosas demasias.» (…)

     «Assim, n'estas manifestações tão diversas do seu caracter, julgamos haver bosquejado a difficil personalidade do Justiceiro.»

D. Ignez de Castro - drama em cinco actos e em verso, Júlio de Castilho (1840-1919), 
B. L. Garnier, Rio de Janeiro, 1875 - rosto.

     Sobre D. Afonso IV diz o seguinte:

     «Quanto a El-Rei D. Affonso: disse-nos a meditação que as suas constantes tergiversações n'este demorado negocio, taes como no-las apresenta a tradição, eram um signal de que se pode ser o vencedor do Salado, e um dos homens mais valentes do seu século, e ao mesmo passo trepidar, hesitar, cair, quando a sangue frio se planeie, n'um recinto pouco menos que domestico, a morte de uma mulher que não tem culpas.

     Para explicar esse dúbio comportamento em tal homem, posémo-lo como que entalado entre a pressão enérgica dos seus conselheiros, e as persuasões suaves de uma esposa presadissima, e digna de o ser; indeciso entre o temor das suas altas responsabilidades reaes para com o povo, e a affeição paternal que dedicava a seu filho, e dedicaria á propria D. Ignez. D'essa luta de opposições saiu o caracter, que (bem ou mal) ahi supposémos a El-Rei.

     Era convencimento nosso que o seu retrato moral anda falseado por todos quantos crêem epilogar-lhe o julgamento com dizerem: foi mau filho, mau pae, mau irmão, e sogro cruel. Não; El-Rei D. Affonso IV não foi isso. Aquelle coração nobilíssimo, aberto a todos os rasgos, era (principalmente na madureza dos annos) cheio de mysteriosos cambiantes, que a poesia, bem mais do que a fria observação da historia, pode adivinhar, surprehender, e fixar. Aquella alma austera mas terna; leal, e fraca; desinteressada, e cavalleirosa, padeceu muito! e do seu estirado supplicio não poucos vestigios restam no longo, no trabalhoso fluctuar de tantos annos, entre os deveres de Monarcha, tal como lhos pintava a barbaria do tempo, e o suave pendor de pae.

     Entendeu pois o autor d'este drama dever pôr em evidencia, e com imparcialidade, o duro papel que as circumstanciás forçaram o Soberano a aceitar na inaudita condemnação de Ignez. Para quem meditar, tem consideráveis atenuações um tão brioso homem de armas, que assim se tornou, sem o querer, um algoz

     No que toca ao retrato dos três conselheiros de D. Afonso IV, Júlio de Castilho não recorreu apenas à conjectura; faz acusações directas à lealdade de Pero Coelho ao seu rei e ao seu país, apaga quase completamente Álvaro Gonçalves e coloca em Diogo Lopes Pacheco a causa principal do assassinato de D.ª Inês.   

     «Para variar quanto possível o caracter dos tres históricos matadores, fez-se de Pero Coelho um intrigante politico vendido aos castelhanos, e oppondo-se, pelo muito oiro que lhe chovia da banda de Castella, ao casamento do Infante com D. Ignez, casamento que, de um modo ou de outro, cedo ou tarde, podia roubar (como com effeito esteve talvez a pique de roubar) o sceptro ao primogénito, o senhor D. Fernando, vindo a caducar assim certas influencias de Castella na corte de Portugal. Alvaro Gonçalves por conveniencia scenica ficou mais em sombra, sem deixar de conspirar no mesmo conluio de rufiães.

     A alma porem da conjuração é Diogo Lopes Pacheco, que fizemos (carreguem os seus lémures com mais esta) amante repudiado da linda Ignez. É pois elle quem, por um ciúme concentrado e constante, vai movendo a trama, que perdeu a innocente; é elle quem, sempre prompto, doble e flexivel, tem na mão as chaves que lhe abrem, ora os cofres de Castella, ora o coração da Rainha, ora a annuencia pusillanime d'El-Rei (permitia-nos esse tremendo qualificativo a memoria do valoroso Monarcha).

     Poderá parecer ousadia insustentável a indole do papel que distribuimos a Diogo Pacheco; e poderá objectar-se-nos que nada auctorisa a cre-lo rival do Infante D. Pedro. Ao reparo contestaríamos o seguinte:

     No meio de tammanho esquecimento, como o que ennevoou este caso todo, a verdade guardou-a Deus para si; mas a tradição e o grande instincto nacional não desligam o Senhor de Ferreira de Aves do attentado de 1355. Assim pois, ficava á poesia dramática a liberdade ampla de fazer entrar esse cavalleiro do modo que mais conviesse.

     De tantas negruras como as que encerrou esta lugubre tragedia, inspiradora de lyras em todo o mundo, temos por certo que a historia não disse tudo. A historia calou-se com a chave de um cerrado enigma: com o verdadeiro porquê d'aquelle iniquissimo assassinamento de uma mulher. Ali havia causa latente (que hoje não sabemos rastrear) para tão acirrados odios, para enredos tão porfiados, para desfecho tão indigno dos punhaes de tres fidalgos.

     Supposémos amores n'esse motivo occulto; a cinco séculos de distancia era já licito no theatro interpretar assim livremente a historia patria; e Deus sabe se a intuição do dramaturgo não acertaria!

     Suppra mais esta conjectura em cinco actos o silencio das chronicas.»

Júlio de Castilho, 1840-1919, enquanto jovem.

     A liberdade criativa é legítima, mas é bom não confundir a ficção com a História. Esta tese dos ciúmes que conduzem à vingança e ao assassinato revestiu diversas variantes. Numa das versões francesas da história-lenda de Inês de Castro, a morte de D.ª Inês deve-se aos ciúmes desvairados de uma das suas aias, Elvira (cf. Historia de dona Ignez de Castro – Traduzida do Francês, Typographia Rollandiana, Lisboa, 1827). Nesta versão, Elvira é D.ª Elvira Gonçalves, irmã de D. Álvaro Gonçalves, um dos conselheiros de D. Afonso IV, considerado um dos responsáveis pela morte de Inês e barbaramente executado a mando de D. Pedro. Nesta versão, é Álvaro Gonçalves quem está apaixonado por D.ª Inês e ajuda a irmã, abandonada por D. Pedro, a arquitectar a morte de Inês… Para quem desconhece a História, ler e acreditar nestas histórias pode ser muito enganador… Eis alguns excertos exemplificativos:

Historia de dona Ignez de Castro – Traduzida do Francês
Typographia Rollandiana, Lisboa, 1827.
Logo na página 4, D. Pedro é descrito como um príncipe cheio de "doçura e virtude". 
De D. Branca o autor anónimo diz que  "só trouxe a Portugal enfermidades e poucos atractivos" 
e que partiu por sua própria vontade, acrescentando que, nem por isso, tinha o príncipe deixado de "viver bem com ela". 
Seria difícil distorcer mais a História, excepto no que toca à vida marital de D. Pedro com D. Branca que, 
segundo alguns autores, se terá prolongado por cerca de dois anos.

     «Não era Constança a única que devia queixar-se de D. Pedro. Antes do seu divórcio de Branca, já tivera inclinação a Elvira Gonçalves, irmã de D. Álvaro Gonçalves, favorito do Rei de Portugal, e o que apenas fora mero divertimento na mocidade deste Principe, fez nella huma tao profunda irapressão, que o infeliz estado de Branca lhe fizera esperar que poderia hum dia desposar D. Pedro. Com secreto dissabor vio ella preencher Constança o lugar de que fora lisonjeada a sua ambição, e os encantos desta Princeza lhe fizerao mui cedo perder a esperanca de agradar para o futuro ao seu esposo.

     O ciume que disso teve, lhe fez examinar com cuidado todas as acções do Principe. Percebeo facilmente a sua frieza para com sua esposa, e suspeitou com razão que tinha o coração preoccupado de novos affectos. Propoz-se fortemente a contraria-los por toda a sorte de meios, assim que pudesse descobrir qual era o seu objecto. Tinha ella hum espirito capaz de emprehender as cousas mais atrevidas, e o credito de seu irmão tornava-a tão vã, que a mesma indifferença que D. Pedro lhe testemunhava, nao era bastante para abaixar o seu orgulho. (…) Ficou Elvira furiosa ao ouvir estas palavras: representou-se-lhe ao mesmo tempo Ignez de Castro com todos os seus attractivos, e não duvidando já que fosse ella que possuisse o coração de D. Pedro, concebeo tamanho odio a esta bella rival, como o amor que a elle tinha. (…)

     (…) Inês fala com Constança: De Elvira he que o Principe está apaixonado; elle a amava já antes de ser vosso, mesmo antes do seu divorcio de Branca. Ter-vos-hão sem dúvida feito huma infiel relação desta intriga da sua rnocidade. Mas, Senhora, depois do laço sagrado que o une a vós, decerto não ama ninguem mais. (…)

    Em quanto estas tres desgracadas pessoas (Constança, Pedro e Inês) se abandonavao ao seu desgosto, Elvira, para não deixar imperfeita a sua vinganca, procurou os meios de torna-la completa. Como julgava com razão que o Rei não approvaria o amor de D. Pedro a D. Ignez de Castro, descobrio-o a D. Alvaro, seu irmao. Tinha ella tanta maior razão para contar com elle, que este lhe mostrava muita amizade, e não ignorava que o Principe a havia amado. A paixao secreta que D. Alvaro sentia por Ignez, fez-lhe tornar hum grandissimo interesse nesta novidade: o cuidado que elle tivera na sua fortuna, lhe havia impedido até então o descobrir-lha, e esperava que o seu favor junto do Rei lhe obtivesse dignidades, que tornassem mais agradavel a offerta do seu coração

(In Historia de dona Ignez de Castro – Traduzida do Francês, Typographia Rollandiana, Lisboa, 1827, págs. 7-27)

      Na Nova Castro, de João Baptista Gomes, também aparece uma Elvira, mas é uma aia e confidente de D.ª Inês completamente dedicada à sua senhora. Nesta obra, Inês confessa-se culpada pelo sofrimento de Constança e merecedora do maior sofrimento e castigo. Elvira conforta-a e incentiva-a a prosseguir com a relação adúltera com D. Pedro, colocando o bem-estar e prazer de D. Pedro acima de todas as coisas:

Elvira (fala com D.ª Inês)


Oh! Ceos! Na primavera de teus annos,
Engolfada em fataes, loucos pezares,
Tu própria buscas terminar teus dias,
Sem que ao menos te lembres que depende
Da tua vida a vida do consorte;
Que huma lagrima só que tu derrames.
Se o Principe jamais a divisasse,
Seria de sobejo a envenenar-lhe
O terno coração, que affagar deves!...
Se neste estado agora elle te achasse,
Em que estado sua alma ficaria?
Por seu amor te rogo, enxuga o pranto,
As afflicções desterra, em que soçobras.

(In Nova Castro, tragedia, João Baptista Gomes (c. 1775-1803), Na Impressão Régia, Lisboa, 1815, p. 7)

 

CENA MACABRA

     Por muito que a lenda queira, também não há prova alguma de que tenha ocorrido o beija-mão da corte ao esqueleto de D.ª Inês. Em 1361, quando o cortejo fúnebre seguiu do Mosteiro de Santa Clara em Coimbra para o Mosteiro de Alcobaça, o corpo de D.ª Inês era apenas um amontoado de ossos (um corpo humano leva 5 a 6 anos a decompor-se na totalidade até só restarem alguns ossos). Alguns autores mais sensatos falam apenas na “trasladação das cinzas”; outros falam objectivamente da “trasladação do cadáver”; outros (Antero de Figueiredo) falam do “esqueleto verde e fétido de Inês de Castro”; e há ainda aqueles que falam de um corpo intacto, sem sinais de degenerescência (Marquês de Resende citado por Sousa Viterbo)... Outros dizem o mesmo de D. Pedro (um “corpo incorrupto”, cf. Historia chronologica, e critica da Real Abbadia de Alcobaça, da congregação Cisterciense de Portugal, Lisboa, 1827, p. 20).

Le Couronnement d'Inès de Castro en 1361, Pierre-Charles Comte vers 1849.

     Num tempo de excessos e acontecimentos devastadores, como os surtos de peste negra (peste bubónica), que, a partir de 1348, espalharam a morte por toda a parte, não é crível que os cortesãos se dignassem beijar um amontoado de ossos. Segundo Fortunato de S. Boaventura, em 1348, num só mês morreram 150 monges do Mosteiro de Alcobaça (cf. Historia chronologica, e critica da Real Abbadia de Alcobaça, da congregação Cisterciense de Portugal, Lisboa, 1827, p. 178). E os surtos de peste continuaram a surgir ciclicamente nas décadas seguintes. É no entanto plausível pensar que D. Pedro tenha ordenado que se criasse alguma espécie de efígie pictórica que representasse simbolicamente D.ª Inês e que os membros da corte lhe tenham prestado homenagem, por vontade própria ou forçados, pois D. Pedro não se eximia de cortar cabeças, queimar pessoas vivas ou sujeitá-las a torturas horrendas. E os seus súbditos sabiam isso melhor do que ninguém.

Le Couronnement d'Inès de Castro, Gillot Saint-Evre, 1791-1858, 1827.

     Nesta matéria, é espantoso o poder da opinião pública e dos leitores. Na primeira edição da Nova Castro (1803), tragédia de João Baptista Gomes Júnior (c. 1775-1803), não existia a cena da coroação de D. Inês depois de morta. Mas para agradar a um certo número de leitores, o editor vê-se obrigado a acrescentar essa “cena”, já depois da morte do autor. De algum modo, o editor sentiu-se culpado por esta deturpação da obra original que não teria agradado ao autor e chamou-lhe “mutação”, acompanhada por esta nota: «A lembrança de que muitas pessoas desejam ver no fim daquela óptima Tragedia uma Coroação, fez com que se imprimisse esta, apesar da falta de unidade que há, o que forma um erro dramático, que o seu Autor não desculparia se existisse, —o Editor.» Mesmo assim, o editor não se eximiu de colocar na página de rosto um subtítulo apelativo «Correcta de muitos erros, e aumentada com a brilhante cena da COROAÇÃO.» Não tenho dúvidas de que esta condescendência para com o gosto de um certo público ajudou a vender muitos mais exemplares desta obra.

Nova Castro, tragedia de João Baptista Gomes Junior
Nova edição correcta de muitos erros, e augmentada com a brilhante scena da coroação
Typographia de Sebastião José Ferreira, Porto, 1857.


Nova Castro, tragedia by Gomes, João Baptista, c. 1775-1803, 
Livraria Portugueza de J. P. Aillaud, Paris, 1848.
A nota do editor que antecede a cena da coroação.

Nova Castro, tragedia by Gomes, João Baptista, c. 1775-1803, 
Livraria Portugueza de J. P. Aillaud, Paris, 1848.

Les tableaux de M. le comte de Forbin, ou, La mort de Pline l'Ancien, et Inès de Castro. 
Nouvelles historiques, par Mme la comtesse de Genlis, Paris, 1817.


La iffanta (sic) coronada, por el Rey Don Pedro, Doña Ines de Castro - en octava rima 
por Don Juan Soares de Alarcón, Lisboa, 1606.
Embora António Ferreira, 1528-1569, (A Castro, tragédia publicada postumamente apenas em 1587 embora fosse muito anterior) já insinuasse a elevação de Inês de Castro ao estatuto de rainha, foram sobretudo os autores castelhanos (Jerónimo Bermúdez e Luis Vélez de Guevara) que propagaram a ideia da coroação e do beija-mão, depois replicada por toda a Europa. O primeiro, Jerónimo Bermúdez de Castro, copia em grande parte a obra de António Ferreira, tal como já foi demonstrado por vários estudiosos. Depois de ter estado em Lisboa e convivido com António Ferreira, e provavelmente depois de ter lido o manuscrito de Ferreira, publica em Madrid, no ano de 1577 as duas tragédias Nise lastimosa e Nise laureada, ambas sob o pseudónimo António Silva. João Soares de Alarcão, autor desta obra, embora fosse português, escreveu quase sempre em castelhano, tal como atesta Camilo Castelo Branco nas suas Noites de Insónia (N.º 4, Abril de 1874): 
«D. João Soares morreu em 1618, com 33 annos de idade. Escreveu e imprimiu em língua castelhana: Archimusa de varias rimas y efetos, e La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro, etc. Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pêro Coelho, avoengo do poeta


Historia de dona Ignez de Castro – Traduzida do Francês
Typographia Rollandiana, Lisboa, 1827.