quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA VIII

 RE-INVENÇÕES DE PEDRO & INÊS

     Mas regressemos a D.ª Inês e ao modo como terá sido morta e ressuscitada infinitas vezes pela lenda, pela literatura e pelo infindável reconto que vai acrescentando sempre mais um ponto…

     No opúsculo, Souvenirs de Coimbre (1843) o Marquês de Resende (citado por Sousa Viterbo), quando se refere à exumação do cadáver de D. Inês, não só diz que estava intacto, como acrescenta que até as tranças longas e louras estavam em bom estado e perfeitamente compostas. É também o Marquês de Resende que menciona outra “Ignez” ou “Agnes” da Baviera que terá sido morta (afogada no rio Danúbio), em 1435, por motivos idênticos aos de D.ª Inês. Sousa Viterbo, acrescenta que para a história ser igual só lhe faltou a coroação:

     «O auctor accrescentou preliminarmente um Avis aux lecteurs e nas duas paginas finaes uma nota histórica sobre uma dama allemã, chamada Ignez, por quem se apaixonou loucamente o duque Albrecht, filho unico de Capeto de Baviera. Ignez foi morta tyrannicamente a 12 de outubro de 1435, tendo sido mandada afogar no Danúbio. É uma tragédia idêntica á de D. Ignez de Castro; só lhe faltou a scena da coroação

     (In Artes e artistas em Portugal; contribuições para a historia das artes e industrias portuguezas, Francisco de Sousa Viterbo, Lisboa, 1892, págs. 20-26)

Agnes Bernauer, c. 1410 - 12 de Outubro de 1435), 
copy of a 16th-century work by an anonymous 18th century Augsburg painter.
A Inês da Baviera a quem se referem o Marquês de Resende e Sousa Viterbo.
Sobre ela voltarei a falar noutro post.

     Mesmo que D.ª Inês não tenha sido decapitada, a decapitação é um uso bárbaro milenar que persiste até hoje. Há evidências de que a decapitação já era usada há cerca de 9000 anos. Sobre este modo de execução, Paulo Mendes Pinto, director do curso de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, diz o seguinte:

     «Ao separar o órgão que se julgava do pensamento, o coração, do órgão de expressão, a boca, decreta-se ao defunto a incapacidade de proferir e realizar no Além ritos e afirmações que lhe dariam acesso à eternidade. O corpo deixa de ser uno e coeso. Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo é condição para que num dia de Juízo Final possa haver um novo tempo

     O que é indiscutível é que D. Pedro promoveu um sumptuoso cortejo (provavelmente em Abril de 1361 ou 1362) para acompanhar os restos mortais de D.ª Inês e a fez sepultar no Mosteiro de Alcobaça, coroada pela filigrana da pedra, rodeada pelas insígnias reais, e fê-lo com grande pompa e solenidade como se de facto fosse uma rainha. Ele próprio seria sepultado também aí seis anos mais tarde (1367), reforçando tudo o que a Lenda quis acrescentar à História.

Túmulo de Inês de Castro, no Mosteiro de Alcobaça.

Túmulo de D. Pedro I, no Mosteiro de Alcobaça.

     Ambos os túmulos são de extrema beleza, esculpidos com toda a perfeição em pedra calcária branca (“mármores brancos” dizem alguns). Consta que D. Pedro terá ido ao Porto encomendar estes túmulos por volta de 1360. No entanto, alguns autores consideram que os túmulos serão obra de artífices estrangeiros (franceses ou italianos). Manuel Vieira Natividade (Ignez de Castro e Pedro o Cru - Perante a iconographia dos seus túmulos, Lisboa, 1910, págs. 23 e 150, figuras 29 e 35), apresenta uma fotografia de uma “sigla” (assinatura ou marca) do autor no túmulo de D. Pedro. No início do século XX, este autor ainda não tinha conseguido decifrar aquela “sigla”, mas esperava vir a decifrá-la um dia e a identificar o rosto do próprio escultor entre as muitas figuras humanas que decoram ambos os túmulos: «E esperamos descobrir, um dia, entre as muitas figuras dos túmulos, o retrato do seu grande creador.» (idem, ibidem, pág. 107). Que eu saiba, ainda ninguém conseguiu decifrar a “sigla” do autor ou autores. Por minha parte, prefiro acreditar que foram de facto artífices portugueses, porque há outras obras escultóricas de semelhante beleza e perfeição saídas das mãos de artífices portugueses; e também porque não era fácil, naquele tempo, contratar no estrangeiro artífices que chegassem a Portugal a tempo de concluir os dois túmulos entre 1360 e 1361, quando muito até Abril de 1362 (entre a declaração de Cantanhede e a cerimónia de trasladação). 

     A fisionomia de D.ª Inês, gravada na pedra, será muito próxima do real, pois D. Pedro terá mandado fazer “um retrato ao natural”, a partir do qual os artífices terão esculpido a pedra. Quem fez esse retrato e como não se sabe. Se, de facto, esse retrato foi feito “ao natural” a partir do cadáver de D.ª Inês, então é pouco provável que o corpo tivesse sido decapitado. Sabe-se que era dotada de uma rara beleza, com cabelos louros muito longos e linhas elegantes. A beleza do pescoço e peito (“colo”) levou alguns a chamar-lhe “colo de garça”. D. Pedro seria de elevada estatura, teria cabelos ruivos ou louros escuros, olhos negros, “boca não pequena” e era extremamente gago desde a nascença. No domínio médico e psíquico, alguns encontram nele traços psicóticos, mudanças súbitas de humor, ataques incontroláveis de raiva, sadismo, insónias recorrentes e prováveis sinais de epilepsia.

     Diogo Barbosa Machado descreve-o assim, no Tomo III da Bibliotheca Lusitana, Lisboa, 1762, p. 539:

      «Teve estatura grande, aspecto gentil, testa dilatada, olhos fermosos, e pretos, cabelo da cabeça, e barba compridos de cor castanha que mais declinava a loura, que negra, boca larga, e engraçada, rosto corado, e tão balbuciente nas palavras como maduro nas respostas

D. Pedro I, o Justiceiro por Roque Gameiro.

      São-lhe atribuídos diversos textos poéticos. Tal atribuição é completamente negada por Carolina Michaëlis de Vasconcellos (cf. A Saudade Portuguesa, Porto, 1914). Barbosa Machado transcreve um excerto de um deles que teria surgido no Cancioneiro do P.e Pedro Ribeiro, 1577, conservado na biblioteca do Duque de Lafões (Bibliotheca Lusitana, Tomo III, p.540):


A dò hallarà holgança
Mis amores:
Adò mis graves temores
Segurança:
Pues mi suerte
De una en outra cumbre llevantado
legome a ver d’elado tu hermosura
Despues la frente para frente a frente
Vi en blando acidente amortecido:
Passome el sentido tan a dentro
Que hà llegado al centro dò amor vive:
Mas como nò recibe mi razon
Tu fiera condicion entre las manos
Desechos mis deseos
De un sobresaltado
El alma hás arrazada;
Los montes echos llamos
Dò toda mi esperança era fundada:
Si esto das por vida, que por muerte
Dar Señora podrà pecho tan fuerte.

     Afonso Sanches, filho bastardo e predilecto de D. Dinis, também teve inclinação para a poesia, tal como seu pai, o Rei Trovador. Nos Cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Vaticana surge uma cantiga de amigo que lhe é atribuída: “Dizia la fremozinha”

Poesia trovadoresca de Afonso Sanches.

Dizia la fremozinha:
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
Dizia la ben talhada:
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor coitada!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Como estou d’amor ferida!
— Ai Deus, val!
Não vem o que ben queria!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Como estou d’amor coitada!
— Ai Deus, val!
Não vem o que muit’amava!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!


Afonso Sanches
Cancioneiro da Biblioteca Nacional – N.º 784
Cancioneiro da Vaticana – N.º 368


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