domingo, 31 de outubro de 2021

LENDA & HISTÓRIA XIII

 INTERROGAR FAZ BEM

     Leia-se a História e a Lenda com a mesma dedicação e o mesmo bom senso. Quem quiser, pode também colocar interrogações e tentar responder-lhes de diversos modos, conforme a face ou faces do prisma por onde olhar. E se D.ª Inês nunca tivesse vindo para Portugal, acompanhada pelos seus ambiciosos irmãos? E se D. Pedro tivesse colocado a soberania do reino acima dos seus sentimentos, interesses e ambições? E se D.ª Inês tivesse respeitado e amado a princesa (D.ª Constança) que a incluiu no seu séquito e tivesse respeitado a nação que a acolheu? E se as rivalidades entre Castros, Pachecos, Teles de Meneses, Pereiras e outros tivessem seguido um rumo diferente e tivessem colocado sempre Portugal e o Povo, uno e diverso, à frente das suas ambições? E se D.ª Inês não tivesse sido assassinada ou se um dos seus filhos tivesse, de facto, subido ao trono de Portugal? O mais provável é que Portugal deixasse mesmo de existir e fosse engolido por Castela e Leão. Portugal seria uma outra Catalunha, uma Galiza, um País Basco, uma Andaluzia, um território sempre em busca de mais autonomia ou da independência há muito perdida. A Língua Portuguesa desapareceria; quando muito assemelhar-se-ia ao que é hoje o galego. D. João I, Mestre de Avis, nunca teria sido rei, nunca teria casado com D.ª Filipa de Lencastre e a Ínclita Geração nunca teria nascido. Não teria havido um Infante D. Henrique, uma Escola Náutica de Sagres, viagens até aos quatro cantos do mundo, excepto nas caravelas castelhanas. Talvez o genocídio dos povos nativos dos territórios conquistados tivesse sido menor ou maior, talvez tivesse havido menos ou mais tráfico de escravos, menos ou mais “cobiça e glória de mandar” (Camões, Os Lusíadas, Canto IV). Não teria havido um Brasil ou nações africanas que falam Português. Provavelmente, a colonização de todos os territórios conquistados teria sido idêntica, mas muito mais ampla e destrutiva, sem o Tratado de Tordesilhas… e um dia, sabe-se lá quando, uma geração de jovens perguntaria “Por que morreu Portugal quando era ainda tão jovem?”. Ou então, não. A maioria esqueceria quem era e quem tinham sido os seus antepassados ou ficaria simplesmente feliz com a abolição de fronteiras e a ilusão de pertencer a uma nação maior e “melhor”, embora a Espanha só tenha sido realmente unificada e assumido o nome que tem hoje no século XVIII. Certos sectores da nobreza, sempre ambiciosa, comodista e parasitária, com o tácito e estratégico apoio de grande parte do clero, rejubilariam com a União Ibérica, a Monarquia Dual ou Única. E se as elites ficassem felizes, pouco importaria a voz do Povo. O Povo não é português, castelhano, francês, inglês… é o Povo. 


Ilustração de Cândido Portinari (1903-1962).

Ilustração de Manuel Ribeiro Pavia (1907-1957) in Fanga de Alves Redol.

     Seja qual for a perspectiva que se adopte, o efeito do tempo acaba por vencer, pelo menos parcialmente. O tempo, que transforma a História em lenda e mito, há muito que transformou os amores de Pedro e Inês num dos mais queridos mitos nacionais. Para isso contribuiu a Literatura, mas também certos traços do ser lusitano, o lirismo, o saudosismo e a tragédia. Camões já conhecia bem esses traços colectivos, que também faziam parte do seu próprio carácter individual, ou não teria incluído o episódio lírico-trágico dos amores de Pedro e Inês (Canto III) na maior epopeia nacional (Os Lusíadas).

Os Lusíadas, Luís Vaz de Camões, Lisboa, 1572 (1.ª edição).



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