domingo, 31 de outubro de 2021

VERSO E REVERSO DA ALMA LUSITANA

 LIRISMO, TRAGÉDIA E REALISMO

     «Contrariamente à crença geral, a verdade não se impõe por si mesma. O erro que entra no domínio público permanece nele para sempre. As opiniões transmitem-se, hereditariamente, como as terras. Constrói-se nelas. As construções acabam por formar uma cidade - e ditar a história.» Henri Bergson (1859-1941) 

      Voltemos, agora, ao lirismo trágico que perdura na literatura e nas crenças populares. Até porque, para além de todo o contexto, aquilo que perdurou através do tempo foi a história/lenda de amor e não os meandros da intriga política ou os traços patológicos do carácter de D. Pedro. E esta memória faz sentido, porque provavelmente não há histórias mais intemporais e universais do que as histórias de amor ou aquelas que são tomadas como puras histórias de amor. Mas para que estas histórias se tornem verdadeiramente belas, às vezes, é preciso depurá-las, arrancá-las à própria realidade e aproximá-las de um ideal intangível e, ainda assim, intrinsecamente humano. Através destas histórias trágicas, não é apenas um sentimento individual que perdura, é o próprio amor, enquanto arquétipo eterno capaz de sublimar todo o mal, toda a dor e todos os erros, que ultrapassa as barreiras do tempo e das vivências individuais.

     Há algumas décadas, Jacinto do Prado Coelho (Originalidade da Literatura Portuguesa, ICALP, 1977) apontava o lirismo e a sátira como dois dos principais traços distintivos da Literatura Portuguesa e lamentava a escassez de narrativas de grande fôlego, embora considere que Portugal tem “bons autores de ficção”. O lirismo cruza-se com o saudosismo e cria uma ambiência mental inclinada para o subjectivismo e avessa à acção (o sentir que se sobrepõe ao agir). A acção é de facto o elemento estruturante da narrativa, tal como o subjectivismo e as emoções são a força vital do lirismo. Esta tendência para o lirismo e o subjectivismo seria um reflexo do próprio “ser português”. Cada literatura reflecte o povo que a cria. Mas a par da “literatura lacrimejante”, surge a sátira e a comédia, como contraponto ao carácter depressivo e também como tendência natural do temperamento português. Vista deste modo, a Literatura Portuguesa quase parece bipolar: o autor / leitor chora a beleza triste de um episódio amoroso e / ou trágico e, logo a seguir, tem de contar uma anedota para equilibrar as emoções. Hoje a comédia e o humor estão por todo o lado, no stand up, nos programas televisivos, mesmo nos de comentário e crítica, e em qualquer mesa de café. Quem não sabe contar uma anedota, às vezes absurda e até ofensiva, é enfadonho e pessimista, não tem sentido de humor. Quem não se comove com um belo poema de amor é um insensível sem coração. Estas são dicotomias radicais mas não distantes da realidade.

D. Pedro I - Feira Medieval em Santa Maria da Feira, 2018.

     Jacinto do Prado Coelho nota também a “escassez do trágico” na Literatura Portuguesa. Como verdadeiramente trágicas, e seguindo Ruben A., aponta apenas três obras: Inês de Castro (sem nomear explicitamente a Castro de António Ferreira ou outra), Frei Luís de Sousa (Almeida Garrett) e algumas “páginas da História Trágico-Marítima” (Bernardo Gomes de Brito). Mais adiante, seguindo Miguel de Unamuno, acrescenta Camilo Castelo Branco, que “exalta aquele sentido trágico da existência”. O trágico genuíno tende a esbater-se e o que fica é apenas uma aproximação à tragédia: «(…) as arestas do trágico tendem a esbater-se, na literatura portuguesa, em cambiantes do sentimental ou do elegíaco ― para não falar no melodrama».

     A lenda dos amores de Pedro e Inês é em si mesma genuinamente trágica, lírica e subjectiva; bebe a inspiração na História mas afasta-se dela. E, no entanto, quase todos os que apreciam a tragédia de Pedro e Inês tomam a lenda como história completamente factual. A História autêntica é muito mais trágica e, por isso mesmo, incompatível com o lirismo intimista que pode dilacerar a alma mas deixa o corpo vivo para continuar a experimentar a dor. A tragédia não recorre a subterfúgios, apresenta a crueza da dor e da morte que nenhuma “justiça” pode redimir. Talvez por isso, a lenda continua tão viva, como forma de tentar fazer “justiça” ao longo do tempo. Quem não se comove com os amores trágicos de Pedro e Inês, tal como a Literatura os apresenta, deve ser de facto insensível. Neles há vida autêntica, lirismo e tragédia. Apesar do apego persistente a esta tragédia específica, que já conta 665 anos, Jorge Dias, citado por J.P. Coelho, afirma: «O Português não gosta de ver sofrer e desagradam-lhe fins demasiado trágicos». Os criadores da lenda e os leitores que solicitaram a introdução da cena da coroação do cadáver de D.ª Inês na Nova Castro, de João Baptista Gomes, contrariam esta visão.

Nova Castro, tragedia de João Baptista Gomes Junior. 
Nova ed. cor. de muitos erros, e augmentada com a brilhante scena da coroação, 
João Baptista Gomes, Typographia de Sebastião José Ferreira, Porto, 1857.

     Cada leitor ou espectador é, antes de mais, um ser humano que sente e busca emoções. O amor transcendente e sem barreiras de Pedro e Inês é muito mais mito e utopia do que História e, por isso mesmo, é também mais um reino de emoções do que uma sucessão de actos. Na vida real, poucos seriam os que aplaudiriam a morte de Inês, mesmo que ela fosse uma conspiradora maquiavélica e dissimulada. Na vida real, poucos seriam os que defenderiam o frio homicida que arranca corações. Na vida real, poucos seriam os que fariam a apologia da traição e dos traidores, pois toda a história de Pedro e Inês é fundada neste alicerce decadente e destrutivo. Na vida real, poucos seriam os que defenderiam a felicidade individual em detrimento do bem e soberania do próprio país. Mas perante a imagem idealizada de um amor maior do que o poder político, do que o interesse nacional e do que a própria vida, os factos tornam-se irrelevantes ou são interpretados com outros olhos. As emoções íntimas e subjectivas têm estas nuances contraditórias; são capazes de tolerar e justificar a cobardia, a traição, o horror, o ódio, se eles forem meios para atingir um “fim maior”: o amor, humano e divino, terreno e imortal. E nenhum espectador se sente culpado por sentir empatia, mais ou menos profunda, com os amantes trágicos; nem aqueles que jamais agiriam como eles, nem os que os consideram apenas um símbolo do excessivo sentimentalismo nacional, nem os que vêem neles sublimes heróis trágicos, nem aqueles que simplesmente sentem, interiorizam e partilham tudo o que vêem, lêem ou ouvem.

     A maior parte dos receptores e transmissores populares ao longo dos séculos tem muito deste último grupo, o dos que sentem tudo e tornam suas todas as histórias. Se não fossem estes, a lenda nunca se construiria, toda a poesia amorosa seria uma coisa árida e os escritores eruditos veriam a sua fantasia e inspiração sistematicamente destruída pela racionalidade, pela História e pelas exigências dos leitores de cada época. Mas nenhum autor passa incólume pelo seu tempo; cada vez que a história de Pedro e Inês foi reescrita, apesar de manter uma dose mais ou menos elevada e intemporal de lirismo trágico, assimilou o espírito de cada época, foi metamorfoseando a Lenda e a História.

D. Inês de Castro, António da Costa Pinheiro.

     Enquanto, até meados do século XIX, a figura principal continuou a ser D.ª Inês, vista como vítima indefesa e heroína trágica, a partir de meados desse século, D. Pedro assumiu muitas vezes o protagonismo (ex. António Patrício, Pedro o Cru, drama em 4 actos, 1918; Pierre de Portugal, tragédie en cinq actes par Lucien Émile Arnault, 1827), em grande medida devido ao avanço nos estudos historiográficos que já não permitia aos mais eruditos alimentar a lenda de forma tão ingénua. A História não mostra um D. Pedro imaculado e justo, mostra um ser humano com uma personalidade forte, com muitos excessos e máculas; vícios e virtudes passaram a coexistir na personagem e as abordagens tornaram-se menos ingénuas e facciosas. Já no século XX, houve até quem, finalmente, tenha feito de D.ª Constança (ex. Eugénio de Castro, Constança, 1900; A Morte de Constança, poema, 1902), a heroína trágica, porque de facto foi ela a primeira vítima real desta tragédia. Mais recentemente, Isabel Machado publicou Constança – A Princesa Traída por Pedro e Inês (A Esfera dos Livros, 2015).

     Até ao presente, foram escritas centenas de obras sobre a lenda de Pedro e Inês, em vários lugares, tempos e línguas. A história ficou lá atrás, a lenda não morre, não morre Pedro e Inês nem acabam os amores trágicos. Na bibliografia indico algumas dessas obras (literárias, teatrais, musicais, iconográficas) com alguns comentários, notas ou meras interpretações pessoais.


Pierre de Portugal, tragédie en cinq actes par Lucien Émile Arnault, 1787-1863. 
Chez J.N. Barba, Libraire, Paris, 1823.

Poesias escolhidas, 1889-1940, Eugénio de Castro, 1869-1944, Livraria Aillaud & C.ª, Paris-Lisboa, 1902 - A Morte de Constança.

Eugénio de Castro in Poesias Escolhidas, 1889-1940, Eugénio de Castro, 1869-1944, 
Livraria Aillaud & C.ª, Paris-Lisboa, 1902.

Pedro, o Cru - Drama em 4 actos, de António Patrício, Atlântida, Lisboa, 1918.


Sinde Filipe em Pedro, O Cru, de António Patrício, RTP, 1966.

D. Pedro I, o Cru - Esboço de estudo nosographico, Jayme Moreira. Lisboa, 
Typographia do Annuario Commercial, 1914.


Noites de Inês-Constança, Fiama Hasse Pais Brandão, Assírio & Alvim, 2005.



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