sábado, 23 de outubro de 2021

LENDA & HISTÓRIA XII

 MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES… E AS PRÁTICAS

      A História das sociedades e das instituições, que as suportam e moldam, mostra bem como o verdadeiro Humanismo levou muitos séculos a construir-se e continua inacabado e imperfeito. Também demonstra que a tortura física e as execuções mais bárbaras eram comuns, toleradas e até consideradas uma forma adequada de praticar a justiça. Seria necessário chegar ao século XIX para que a pena de morte fosse questionada e gradualmente abandonada. Em Portugal, seria abolida em 1867, no reinado de D. Luís.





D. Luís I (1838-1889).
Retrato do rei D. Luís (1865-68), por Michele Gordigiani. Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa.



Carta de Abolição da Pena de Morte em Portugal, 1867, reinado de D. Luís.



     Quanto aos casamentos de consanguinidade, por vezes com um grau de parentesco muito próximo, também só começaram a ser abandonados no século XIX, quando a Medicina e a Psiquiatria vieram demonstrar que a degenerescência, as taras e doenças hereditárias eram uma consequência inevitável dessa prática, sobretudo entre as famílias reais e aristocráticas.


A imbecilidade e degenerescencia nas familias reaes, Dr. Antão de Mello, 
Livraria Central de Gomes de Carvalho, Lisboa,1908.

A imbecilidade e degenerescencia nas familias reaes, Dr. Antão de Mello, Livraria Central de Gomes de Carvalho, Lisboa,1908.

     Segundo os padrões éticos actuais, D. Pedro seria considerado um déspota e ninguém sensato se atreveria sequer a associá-lo a uma bela história de amor. Aquilo a que se chamou justiça seria hoje classificado como extrema barbárie. Os conluios, conspirações e nepotismo (que continuam a existir e de forma ainda mais generalizada) seriam hoje alvo de exame e crítica, mesmo que passassem impunes pelo largo crivo da lei, como é demasiado frequente. Os casamentos de conveniência ou a proliferação da concubinagem e de filhos bastardos seriam hoje encarados como manifestações de uma moral hipócrita, de fragmentação e destruição das relações sociais, familiares e pessoais e como causa de inúmeros traumas e crimes. D. Pedro e D. Inês foram também um produto do seu tempo, um tempo em que a barbárie coexistia por vezes com laivos de humanidade imprescindíveis à construção e sobrevivência de todas as lendas.

D. Pedro I, ilustração de António Costa Pinheiro.



LENDA & HISTÓRIA XI

 A ESQUIVA INTRIGA POLÍTICA E OS CASAMENTOS DE CONVENIÊNCIA

 

     Com D.ª Inês, D. Pedro teve quatro filhos (Afonso, João, Dinis e Beatriz). De outras mulheres, algumas também servidoras de D.ª Constança e de D.ª Inês, teve outros filhos. Cerca de dois anos após a morte de D.ª Inês, teve, com Teresa Lourenço, D. João, também filho bastardo, que viria a tornar-se Mestre de Avis, D. João I, o pai da Ínclita Geração. D. João I nasceria em Lisboa a 11 de Abril de 1357 e morreria na mesma cidade a 14 de Agosto de 1433. António Luís de Sousa Henriques Secco (1822-1892), nos Novos elogios historicos dos reis de Portugal, afirma que D. Pedro teve, pelo menos mais uma filha de mãe não identificada, contemplada no seu testamento: «(…) e ultimamente uma outra filha, como se deprehende do testamento, que fez na véspera da sua morte, cujo nome e maternidade se ignora.» A história dos filhos de D. Inês é também interessante e comprova como eram perigosos para a soberania do reino, mas não cabe neste artigo já longo. Abaixo, afloro apenas alguns episódios mais marcantes da vida de D. João de Castro no que toca à pretensão ao trono de Portugal.

      A intriga política é intrincada e extensa, não cabe aqui nem possuo todos os dados necessários para a abordar de forma adequada. Nos posts finais sobre o tema “Pedro & Inês”, apresento uma longa bibliografia e links para quem estiver interessado. Ler apenas uma parte pode significar seguir apenas o caminho da Lenda ou da História; ler a totalidade pode destruir uma das mais belas histórias de amor da Literatura Portuguesa. É só uma advertência… Ou então lê-se, descobrem-se os meandros da verdade, olha-se pelas múltiplas faces do prisma e tenta-se separar as águas. Qualquer que seja a perspectiva que se adopte, o certo é que o contexto histórico-cultural é sempre essencial para compreender as pessoas de cada época.

     É evidente, por exemplo, que o casamento enquanto laço contratual de benefício recíproco, como o que vigorava na época, não é comparável ao casamento fundado no amor, como supostamente acontece na maioria das sociedades actuais. No entanto, ao contrário do que se possa supor, para os cidadãos comuns, casar era fácil e acessível a qualquer um: bastava a presença de duas trestemunhas, nem sequer era preciso apresentar uma dispensa de consanguinidade ou registos notariais e também havia uniões consanguíneas entre as classes intermédias e mais baixas. A este tipo de casamento, à margem das burocracias civis e eclesiásticas, chamava-se casamento «por palavras de presente», isto é, bastavam as palavras dos nubentes declarando que desejavam casar um com o outro. Este tipo de casamento não era considerado completamente legítimo e era evitado, sobretudo para evitar dissabores futuros aos seus descendentes.

     Os casamentos complicados eram os dos membros da casa real e da nobreza, quer os das linhagens legítimas quer das ilegítimas. Estes dependiam de bulas, autorizações e perdões da Santa Sé, que deste modo controlava ainda mais a vida política das nações. Estes estabeleciam contratos pré-matrimoniais com muitas cláusulas com o objectivo de salvaguardar os direitos e privilégios das partes, tanto do ponto de vista material como político. No caso das princesas e príncipes herdeiros, as cautelas eram ainda maiores e os contratos eram redigidos por um conselho de peritos (juristas, eclesiásticos e políticos). Em teoria, quebrar um destes contratos tinha consequências sérias. Mas não parece tê-las tido quando D. Pedro quebrou o contrato matrimonial com D. Branca de Castela.

     D.ª Leonor Teles de Meneses também quebrou o contrato de casamento com o seu primeiro marido, para se casar com o herdeiro da coroa portuguesa, D. Fernando, filho de D. Pedro I. Primeiro abandonou o marido (João Lourenço da Cunha, de quem já tinha um filho), depois casou duas vezes com D. Fernando, primeiro “por palavras de presente” (1371) e depois através de um casamento público (1372), em Leça do Balio. Posteriormente, para ver reconhecido este último casamento e a legitimação da filha de ambos, D.ª Beatriz, herdeira da coroa portuguesa, conseguiu uma autorização da Santa Sé, alegando a existência de um laço consanguíneo com o seu primeiro marido que desconheceria na altura em que casou. Este pedido de dispensa foi pedido à Santa Sé pelo próprio D. Fernando. Para casar com D.ª Leonor Teles, D. Fernando quebrou o contrato matrimonial com D.ª Leonor de Trastâmara, filha de Henrique II de Castela.

D. Leonor Teles. Ilustração de Roque Gameiro.

     A infeliz irmã de D.ª Leonor Teles, D.ª Maria Teles de Meneses, casou secretamente, sem qualquer autorização ou documento específico, com D. João de Castro, filho de D.ª Inês, e meio-irmão de D. Fernando. Também ela já era casada com D. Álvaro Dias de Sousa, de quem tinha um filho. Passados sete anos de união, D. João de Castro (também designado D. João de Portugal por aqueles que consideravam ser ele o legítimo herdeiro da coroa durante a crise de 1383-1385), assassinou a mulher, D.ª Maria Teles, à punhalada. 

D. João de Castro, filho de Inês de Castro e de D. Pedro I mata a mulher, Maria Teles, irmã de Leonor Teles. Ilustração de Roque Gameiro in Leonor Telles de Marcelino Mesquita, Lisboa, 1904 (3 vols.).

     D. João de Castro, apoiado pela alta nobreza portuguesa, estaria mesmo decidido a ser rei de Portugal, casando com D.ª Beatriz (filha de D. Fernando e D.ª Leonor Teles). D.ª Leonor Teles terá sido conivente com o assassinato da irmã (segundo alguns foi a instigadora), inventando um adultério que não existia, pois desejaria ver D.ª Beatriz, sua filha, casada com o suposto herdeiro da coroa portuguesa. Segundo outros, a trama vem sobretudo de D. João de Castro que, não sendo jurado herdeiro da coroa portuguesa, poderia obtê-la casando com D.ª Beatriz. Contudo, o assassinato de D.ª Maria Teles teve graves consequências para D. João de Castro que se viu obrigado a fugir para Castela. Casa novamente, com D.ª Constança de Castela, la Rica Hembra, filha bastarda de D. Henrique II de Castela, e pega em armas contra Portugal e o Mestre de Avis, futuro D. João I de Portugal. Reclama para si o trono de Portugal em concorrência com a própria D.ª Beatriz, com quem não casou, com o Mestre de Avis (seu meio-irmão) e com o próprio D. João I de Castela. Este último, sabendo-o seu rival na pretensão ao trono português, prendeu-o em Salamanca onde acabou por morrer e foi sepultado no Mosteiro de Santo Estêvão. 

     D. João de Castro teve, pelo menos, onze filhos de cinco mulheres diferentes (4 legítimos e 7 ilegítimos). D.ª Beatriz de Portugal, filha de D. Fernando, acaba por casar com D. João I de Castela. O Mestre de Avis acaba por ascender ao trono como D. João I de Portugal e D.ª Leonor Teles, depois de ter mandado prender o Mestre de Avis em Évora, vê-se obrigada a refugiar-se em Castela e a recolher-se no Mosteiro de Tordesilhas (por ordem do seu genro, D. João I de Castela) onde viria a morrer.

Prisão do Mestre de Avis por ordem de Leonor Teles. Ilustração de Alfredo Roque Gameiro 
in História de Portugal, popular e ilustrada, por Manuel Pinheiro Chagas, (1899-1905).

     Os meandros desta intrincada história de ambição, traição e morte tem ainda muitas lacunas por preencher, mas também muitas inquietantes certezas. O contexto histórico-cultural e político ajuda a compor o puzzle e a discernir o essencial sobre os actos, as causas e as consequências.


sexta-feira, 22 de outubro de 2021

LENDA & HISTÓRIA X

 AS LENDAS PRECISAM DE SÍMBOLOS, FÁBULAS… E COINCIDÊNCIAS

     Outro erro propagado pela lenda refere-se à colocação dos túmulos, que mudaram de lugar e posição várias vezes. Inicialmente estavam colocados lado a lado e não frente a frente. Essa disposição terá sido adoptada apenas no século XVII ou até XVIII por uma mera questão de conveniência espacial, permitindo desse modo uma maior mobilidade durante as cerimónias religiosas. Este facto prova que esse detalhe só foi adicionado à lenda tardiamente. Segundo a lenda, D. Pedro terá escolhido esta disposição dos túmulos (frente a frente) para que no Dia do Juízo Final, quando ressuscitassem dos mortos, ele e D.ª Inês pudessem ver-se um ao outro desde o primeiro instante (cf. Manuel Vieira Natividade (Ignez de Castro e Pedro o Cru - Perante a iconographia dos seus túmulos, Lisboa, 1910). Os túmulos foram abertos no reinado de D. João III e no de D. Sebastião, mas não mudados de lugar nem danificados. Como já foi referido acima, os danos começaram a surgir mais tarde com as Invasões Francesas.

     Citando Ferdinand Denis, Vieira Natividade refere o suposto roubo dos cabelos de D. Inês pelos soldados franceses quando passaram por Alcobaça em 1811. Mesmo assim, algumas madeixas teriam sido salvas para depois se perderem no Brasil, quando uma rajada de vento tudo levou:

     «Ferdinand Denis dá testemunho de que vira uma carta em que o marquez de Rezende dizia que uma grande porção dos cabellos de D. Ignez fora levada á corte do Rio de Janeiro, e que, na occasião em que o conde de Linhares a estava offerecendo a D. João VI, foram arrebatados por uma forte ventania, sem que jamais fosse possível encontra-los.

     O mesmo auctor igualmente da noticia de que uma pequena madeixa de cabellos de D. Ignez de Castro, que vira n'outro tempo no gabinete de Denon, se conservava ultimamente num relicário da collecção do conde de Pourtales.

     O sr. Miguel Osório Cabral de Castro, actual proprietário da quinta das Lagrimas, possue alguns fios dos cabellos de D. Ignez de Castro em um lindo relicário.

     Em Alcobaça uma única pessoa possuía cabellos de D. Ignez. Era o sr. Bernardino Lopes d'Oliveira. Foram-lhe offerecidos, segundo nos declarou, por um velho de Alcobaça, que se dizia o próprio que collocara os restos de D. Ignez dentro do tumulo, logo que os francezes sahiram de Alcobaça.

     E temos que accrescentar á curiosa galanteria dos cabellos, pretendidos anneis, que correm como authenticos, relíquias do seu vestuário, e... um próprio seio mumificado!»

(In Ignez de Castro e Pedro o Cru - Perante a iconographia dos seus túmulos, Manuel Vieira Natividade, Lisboa, 1910, págs. 114-116)


Túmulos de D. Pedro I e D. Inês de Castro, Mosteiro de Alcobaça.
(Ignez de Castro e Pedro o Cru - Perante a iconographia dos seus túmulos, Manuel Vieira Natividade, Lisboa, 1910)



Manuel Vieira Natividade, Lisboa, 1910

     A título de curiosidade, António Pereira de Figueiredo, nos Elogios dos Reis de Portugal, menciona umas “memórias antigas” em que se conta que D. Pedro ressuscitou temporariamente, porque se tinha esquecido de confessar um pecado. Confessou esse pecado inominado e voltou a morrer. 

          «Deste Rei se acha escrito em Memorias antigas, que quando já estava para ser sepultado, ressuscitára pelos merecimentos, e orações do Apostolo São Bartholomeo, de quem fora especial devoto; e que depois de se ter confessado de certo peccado, que antes lhe tinha esquecido, tornára a expirar.

     O mesmo estando próximo à morte declarou, que elle sabía, que Diogo Lopes Pacheco estava innocente na morte de D. Ignez de Castro; e por isso mandava, que lhe fossem restituídos todos os seus bens, e elle ao Reino, donde andava fugitivo. O que tudo cumprio depois El-Rei D. Fernando à risca.» 

     Também contam vários autores que D. Pedro teve um sonho em que via um filho seu, de nome João, subir ao trono de Portugal após a sua morte. Não se sabe se nesse sonho terá reparado em quem era a mãe: Inês de Castro ou Teresa Lourenço. Após a morte de D. Fernando, foi D. João, Mestre de Avis, filho natural de D. Pedro e de Teresa Lourenço, quem subiu ao trono. D. João, filho de Inês de Castro e de D. Pedro, conjuntamente com seu irmão, D. Dinis, aliou-se a um dos partidos de Castela e pegou em armas contra Portugal. D. João de Castro casou com D.ª Maria Teles, que era aia da infanta D. Beatriz (filha de Inês de Castro) e irmã de D.ª Leonor Teles que casou com D. Fernando. D.ª Maria Teles acabou assassinada à punhalada (uma no coração, outra nas virilhas) por D. João de Castro, seu marido. D. João foge depois para Castela, indo refugiar-se junto da irmã Beatriz, que entretanto casara com o Conde de Albuquerque (irmão de Henrique II de Trastâmara, rei de Castela, filho bastardo de Afonso XI), que vivia na zona de Salamanca. Parece que pelo menos este filho de Pedro e Inês herdou a propensão para aniquilar quem menos o merecia. Mais uma vez, a violência e os punhais…  

     Outra curiosidade, que nada acrescenta à História, excepto aquela sensação de haver coincidências estranhas, é o facto de três mulheres, ligadas pela genealogia, terem morrido todas no dia 7 de Janeiro: D.ª Inês foi assassinada a 7 de Janeiro de 1355; D.ª Catarina de Aragão (filha dos Reis Católicos, Isabel I de Castela e D. Fernando II de Aragão, além de uma das seis mulheres de Henrique VIII) morreu a 7 de Janeiro de 1536; D.ª Carlota Joaquina (mulher do rei D. João VI) morreu a 7 de Janeiro de 1830. Já agora, D. Dinis também morreu no dia 7 de Janeiro, em 1325.


Catherine of Aragon by Michel Sittow, 1468-1525, n.d.


LENDA & HISTÓRIA IX

 A NUNCA ESQUECIDA CONSTANÇA

 

     D.ª Constança, também descrita como muito “bela e discreta”, não foi sepultada num panteão real mas num túmulo singelo (“arca pétrea”) em Santarém. O facto de ter sido a mãe do futuro rei de Portugal, D. Fernando, não foi suficiente para que D. Pedro a honrasse ou homenageasse. Pelo contrário, a sua memória parece ter sido completamente apagada. D.ª Constança foi inicialmente (1345) sepultada no Convento de S. Domingos das Donas (ou Convento das Donas). Posteriormente, em 1376, D. Fernando, seu filho, ordenou que os seus restos mortais fossem trasladados para o Convento de São Francisco, também em Santarém, para serem sepultados numa zona nobre da igreja, o coro-alto. Foi, aliás, D. Fernando quem se preocupou em restaurar e ampliar este convento, construindo o coro-alto e o claustro. Além disso, elevou este convento à qualidade de “panteão régio”, recusando que sua mãe fosse sepultada em Alcobaça e fosse novamente humilhada, mesmo depois de morta. Por vontade sua, D. Fernando viria a ser sepultado ao lado da mãe, a mãe que ele nunca conheceu, pois D.ª Constança morreu duas semanas após o parto e o infante seria criado pelos avós, D. Afonso IV e D.ª Beatriz.

     No final do século XIX (1875), ambos os túmulos foram transferidos para o Museu Arqueológico do Convento do Carmo, em Lisboa. Motivo? Os sucessivos actos de vandalismo contra estes túmulos, quer durante as Invasões Francesas, quer durante a Revolução Liberal, quer durante o processo de extinção das ordens religiosas e, mais tarde, com a instalação do Regimento de Cavalaria n.º 4 que assentou arraiais no Convento de São Francisco (Santarém) em 1844. Os militares decidiram usar os túmulos de D. Fernando e D.ª Constança como “cavalete de selas”, um apoio para as selas dos seus cavalos quando não estavam a ser usadas!!! Almeida Garrett, ele próprio um liberal, lamenta, nas Viagens na Minha Terra, o estado de decadência em que se encontrava o Convento de São Francisco e os túmulos reais nessa mesma altura (1846): «O belo jazido do rei formoso e frívolo (D. Fernando), tão dado às delícias do prazer como foi seu pai às austeridades da justiça, em que estado ele está! Oh nação de bárbaros! Oh maldito povo de iconoclastas que é este

 

D. Fernando I - Portret van koning Ferdinand I van Portugal.


Túmulo gótico de Fernando I de Portugal - convento do Carmo, Lisboa. Fotografia de Stephan Classen.


A SEMPRE ESQUECIDA CONSTANÇA

 

     D. Pedro não humilhou apenas D.ª Constança, em vida e depois de morta; humilhou também a sua avó, a rainha D.ª Isabel, mulher de D. Dinis (1261-1325). D.ª Isabel (1271-1336) mandou erigir o paço real de Coimbra, junto ao Mosteiro de Santa Clara, para se proteger das constantes infidelidades e maus tratos de D. Dinis, que chegou a exilá-la em Alenquer e a retirar-lhe as terras e bens que lhe pertenciam. Pois foi precisamente nesse paço de Coimbra, onde a fiel (D.ª Isabel) se refugiava do infiel (D. Dinis), que D. Pedro, o eterno infiel, se instalou com D.ª Inês após a morte de D.ª Constança, e foi no cemitério desse mosteiro que, segundo alguns, D.ª Inês foi inicialmente sepultada, em campa rasa. D.ª Isabel, que falecera em Estremoz, foi sepultada precisamente no Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra. Não surpreende, portanto, que tal comportamento de D. Pedro tivesse suscitado tanta revolta, não apenas pela relação que mantinha com D.ª Inês, mas porque com cada acto parecia querer humilhar e ofender a memória dos que já tinham partido. Antes de Coimbra, D. Pedro e D.ª Inês viveram temporariamente em outros locais, como Moledo, Canidelo, Jarmelo (Guarda), entre outros, mas a escolha do paço real de Coimbra foi certamente um acto premeditado e intolerável.   

     D. Fernando mandou gravar no túmulo da mãe o brasão dos Manuel (família de D.ª Constança Manuel) e da casa real portuguesa (casa de Borgonha, dinastia Afonsina). Mandou ainda gravar diversas cenas da vida de S. Francisco, incluindo uma em que este fala com os animais como seus iguais.

     D. Pedro, entre outros motivos decorativos, mandou gravar no seu túmulo uma Roda da Fortuna e, no de D.ª Inês, uma representação do Juízo Final em que uma fila de mortais caminha para cima, em direcção ao Paraíso, e outra fila caminha para baixo, em direcção ao Inferno. Como é natural, depreende-se que D. Pedro se imagina, a si e a D.ª Inês, entre aqueles que caminham para o Paraíso. Uma estranha consciência dos próprios actos que o leva a pensar que merecia a recompensa celestial. Entre os motivos religiosos gravados, um parece estranhamente violento: o diabo abre o ventre a Judas para lhe roubar a alma. De entre os elementos profanos, é curiosa a presença de vários instrumentos musicais no túmulo de D.ª Inês; D. Pedro sempre gostara de música, danças e divertimentos. No túmulo de D. Pedro está também a inscrição “Até ao fim do mundo”, um epitáfio perfeito. O facto de o túmulo de D.ª Inês ser ligeiramente menos sumptuoso e ter menos detalhes gravados deve-se, provavelmente, à determinação de a sepultar em Alcobaça com a máxima brevidade, após a declaração de Cantanhede.


"D. Constança, primeira mulher de D. Pedro I" por Roque Gameiro.

Constança – A Princesa Traída por Pedro e Inês, Isabel Machado, A Esfera dos Livros, 2015

 

Visita Guiada às Ruínas do Carmo, em Lisboa – Portugal

(D. Fernando I, a partir dos 11:57 minutos)

 

OTúmulo de D. Fernando I é um documento político (apenas o excerto referente a D. Fernando I) 

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA VIII

 RE-INVENÇÕES DE PEDRO & INÊS

     Mas regressemos a D.ª Inês e ao modo como terá sido morta e ressuscitada infinitas vezes pela lenda, pela literatura e pelo infindável reconto que vai acrescentando sempre mais um ponto…

     No opúsculo, Souvenirs de Coimbre (1843) o Marquês de Resende (citado por Sousa Viterbo), quando se refere à exumação do cadáver de D. Inês, não só diz que estava intacto, como acrescenta que até as tranças longas e louras estavam em bom estado e perfeitamente compostas. É também o Marquês de Resende que menciona outra “Ignez” ou “Agnes” da Baviera que terá sido morta (afogada no rio Danúbio), em 1435, por motivos idênticos aos de D.ª Inês. Sousa Viterbo, acrescenta que para a história ser igual só lhe faltou a coroação:

     «O auctor accrescentou preliminarmente um Avis aux lecteurs e nas duas paginas finaes uma nota histórica sobre uma dama allemã, chamada Ignez, por quem se apaixonou loucamente o duque Albrecht, filho unico de Capeto de Baviera. Ignez foi morta tyrannicamente a 12 de outubro de 1435, tendo sido mandada afogar no Danúbio. É uma tragédia idêntica á de D. Ignez de Castro; só lhe faltou a scena da coroação

     (In Artes e artistas em Portugal; contribuições para a historia das artes e industrias portuguezas, Francisco de Sousa Viterbo, Lisboa, 1892, págs. 20-26)

Agnes Bernauer, c. 1410 - 12 de Outubro de 1435), 
copy of a 16th-century work by an anonymous 18th century Augsburg painter.
A Inês da Baviera a quem se referem o Marquês de Resende e Sousa Viterbo.
Sobre ela voltarei a falar noutro post.

     Mesmo que D.ª Inês não tenha sido decapitada, a decapitação é um uso bárbaro milenar que persiste até hoje. Há evidências de que a decapitação já era usada há cerca de 9000 anos. Sobre este modo de execução, Paulo Mendes Pinto, director do curso de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, diz o seguinte:

     «Ao separar o órgão que se julgava do pensamento, o coração, do órgão de expressão, a boca, decreta-se ao defunto a incapacidade de proferir e realizar no Além ritos e afirmações que lhe dariam acesso à eternidade. O corpo deixa de ser uno e coeso. Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo é condição para que num dia de Juízo Final possa haver um novo tempo

     O que é indiscutível é que D. Pedro promoveu um sumptuoso cortejo (provavelmente em Abril de 1361 ou 1362) para acompanhar os restos mortais de D.ª Inês e a fez sepultar no Mosteiro de Alcobaça, coroada pela filigrana da pedra, rodeada pelas insígnias reais, e fê-lo com grande pompa e solenidade como se de facto fosse uma rainha. Ele próprio seria sepultado também aí seis anos mais tarde (1367), reforçando tudo o que a Lenda quis acrescentar à História.

Túmulo de Inês de Castro, no Mosteiro de Alcobaça.

Túmulo de D. Pedro I, no Mosteiro de Alcobaça.

     Ambos os túmulos são de extrema beleza, esculpidos com toda a perfeição em pedra calcária branca (“mármores brancos” dizem alguns). Consta que D. Pedro terá ido ao Porto encomendar estes túmulos por volta de 1360. No entanto, alguns autores consideram que os túmulos serão obra de artífices estrangeiros (franceses ou italianos). Manuel Vieira Natividade (Ignez de Castro e Pedro o Cru - Perante a iconographia dos seus túmulos, Lisboa, 1910, págs. 23 e 150, figuras 29 e 35), apresenta uma fotografia de uma “sigla” (assinatura ou marca) do autor no túmulo de D. Pedro. No início do século XX, este autor ainda não tinha conseguido decifrar aquela “sigla”, mas esperava vir a decifrá-la um dia e a identificar o rosto do próprio escultor entre as muitas figuras humanas que decoram ambos os túmulos: «E esperamos descobrir, um dia, entre as muitas figuras dos túmulos, o retrato do seu grande creador.» (idem, ibidem, pág. 107). Que eu saiba, ainda ninguém conseguiu decifrar a “sigla” do autor ou autores. Por minha parte, prefiro acreditar que foram de facto artífices portugueses, porque há outras obras escultóricas de semelhante beleza e perfeição saídas das mãos de artífices portugueses; e também porque não era fácil, naquele tempo, contratar no estrangeiro artífices que chegassem a Portugal a tempo de concluir os dois túmulos entre 1360 e 1361, quando muito até Abril de 1362 (entre a declaração de Cantanhede e a cerimónia de trasladação). 

     A fisionomia de D.ª Inês, gravada na pedra, será muito próxima do real, pois D. Pedro terá mandado fazer “um retrato ao natural”, a partir do qual os artífices terão esculpido a pedra. Quem fez esse retrato e como não se sabe. Se, de facto, esse retrato foi feito “ao natural” a partir do cadáver de D.ª Inês, então é pouco provável que o corpo tivesse sido decapitado. Sabe-se que era dotada de uma rara beleza, com cabelos louros muito longos e linhas elegantes. A beleza do pescoço e peito (“colo”) levou alguns a chamar-lhe “colo de garça”. D. Pedro seria de elevada estatura, teria cabelos ruivos ou louros escuros, olhos negros, “boca não pequena” e era extremamente gago desde a nascença. No domínio médico e psíquico, alguns encontram nele traços psicóticos, mudanças súbitas de humor, ataques incontroláveis de raiva, sadismo, insónias recorrentes e prováveis sinais de epilepsia.

     Diogo Barbosa Machado descreve-o assim, no Tomo III da Bibliotheca Lusitana, Lisboa, 1762, p. 539:

      «Teve estatura grande, aspecto gentil, testa dilatada, olhos fermosos, e pretos, cabelo da cabeça, e barba compridos de cor castanha que mais declinava a loura, que negra, boca larga, e engraçada, rosto corado, e tão balbuciente nas palavras como maduro nas respostas

D. Pedro I, o Justiceiro por Roque Gameiro.

      São-lhe atribuídos diversos textos poéticos. Tal atribuição é completamente negada por Carolina Michaëlis de Vasconcellos (cf. A Saudade Portuguesa, Porto, 1914). Barbosa Machado transcreve um excerto de um deles que teria surgido no Cancioneiro do P.e Pedro Ribeiro, 1577, conservado na biblioteca do Duque de Lafões (Bibliotheca Lusitana, Tomo III, p.540):


A dò hallarà holgança
Mis amores:
Adò mis graves temores
Segurança:
Pues mi suerte
De una en outra cumbre llevantado
legome a ver d’elado tu hermosura
Despues la frente para frente a frente
Vi en blando acidente amortecido:
Passome el sentido tan a dentro
Que hà llegado al centro dò amor vive:
Mas como nò recibe mi razon
Tu fiera condicion entre las manos
Desechos mis deseos
De un sobresaltado
El alma hás arrazada;
Los montes echos llamos
Dò toda mi esperança era fundada:
Si esto das por vida, que por muerte
Dar Señora podrà pecho tan fuerte.

     Afonso Sanches, filho bastardo e predilecto de D. Dinis, também teve inclinação para a poesia, tal como seu pai, o Rei Trovador. Nos Cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Vaticana surge uma cantiga de amigo que lhe é atribuída: “Dizia la fremozinha”

Poesia trovadoresca de Afonso Sanches.

Dizia la fremozinha:
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
Dizia la ben talhada:
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor coitada!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Como estou d’amor ferida!
— Ai Deus, val!
Não vem o que ben queria!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Como estou d’amor coitada!
— Ai Deus, val!
Não vem o que muit’amava!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!


Afonso Sanches
Cancioneiro da Biblioteca Nacional – N.º 784
Cancioneiro da Vaticana – N.º 368


segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA VII

NOITES DE INSÓNIA

     Nas suas profícuas Noites de Insónia (N.º 4, Abril de 1874), Camilo Castelo Branco escreveu um capítulo dedicado a Frei Bernardo de Brito, na sua qualidade de pretendente a poeta. Aparentemente, Frei Bernardo era mais inclinado a versejar com a língua bem afiada do que a produzir composições poéticas dignas de nota. Mas foi precisamente a veia satírica e sarcástica de Frei Bernardo que chamou a atenção do incansável Camilo; ele que raramente perdia a oportunidade de procurar e revelar a história por trás da lenda, das metáforas, dos mitos e da sátira. Neste capítulo (Inédito do Poeta Frei Bernardo de Brito, págs. 37-42), Camilo refere uma curiosa altercação poética com o autor (João Soares de Alarcão) da Infanta Coroada, obra já mencionada no post Lenda & História IV. A inimizade entre Frei Bernardo e João Soares de Alarcão prende-se indirectamente com a história de Pedro e Inês. Frei Bernardo era um venerador de ambos e João Soares de Alarcão seria… descendente de Pero Coelho, um dos supostos assassinos de Inês de Castro. Para além disso, João Soares Alarcão (1580-1618) inclinara-se para a União Ibérica e o domínio dos Filipes e o cisterciense empenhou-se em abrir caminho à Restauração e a D. João IV.  

     Tão ou mais interessante do que os poemas satíricos deste cisterciense são as informações que Camilo dá sobre João Soares de Alarcão. Sem elas. Grande parte do significado jocoso dos dois sonetos apresentados perder-se-ia, como acontece tantas vezes com a sátira. Por isso, o fragmento citado é longo mas deveras instrutivo: (foi mantida a grafia original, os sublinhados a vermelho são uma opção)

Camilo Castelo Branco, 1825-1890.

     «Escreveu o famoso cisterciense a Sylvia de Lizardo, e ninguém o trata de poeta quando o louva ou moteja. Chamam-lhe o chronista, o classico, o douto, o mentiroso, o massador, o milagreiro; poeta é que não; e houve até um frade da ordem d'elle, Fortunato de S. Boaventura, o author do Punhal dos Corcundas que positivamente desbalisou de poeta e de author da Sylvia de Lizardo o vernáculo author da Chronica de Cister.

     Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo, aquelle Balthazar de Brito de Andrade, que por amor do patriarcha se crismou em Bernardo.

     Teve elle o ruim sestro de desfazer na prosápia dos outros. Raro fidalgo lhe sahiu incólume do crisol em que por obrigação do officio de historiador, elle acendrava o fino ouro dos Trocozendos, dos Romarigues, dos Egas Bufas e outros condes das raças romana e goda.

     Nos descendentes do Espadeiro, que eram a geração dos Coelhos, beliscava elle, á conta do assassínio de Ignez de Castro. De si, dizia o frade, que os Britos em Portugal, derivavam dos Brutos de Roma.

     Um descendente de Egas Moniz, chamado João Soares de Alarcão, como era poeta, satyrisou a maledicência de fr. Bernardo de Brito com este soneto:


Aos profundos impérios d’el-rei Pluto
Irás, Bernardo, pelo que has escripto.
Pois dizes que de Bruto vem teu Brito,
Ficando tu só n'isso Brito e bruto.

Tu vens d’aquelles que a pé enxuto
Passaram, com Moysés, o mar do Egypto,
Ou vens do que com sangue do cabrito
Tantos guizados fez sem nenhum fructo.

Chamastes ao teu livro Monarchia,
Sendo Mona que cria monstros vários,
E tornastes de ferro a idade de ouro.

Não te metias em casos temerários;
Pasta nas hervas, bebe da agua fria,
Ou na velha escudela o caldo louro.

O monge de Cistér responde pelas mesmas rimas:

Maçarico dos charcos de el-rei Pluto,
Que taes marmanjarias has escripto.
Que ao douto frei Bernardo ou Bruto ou Brito
Picas com, bico infame, sujo e bruto;

Jamais será de Ignez o pranto enxuto.
Pois a fazes mais quartos que um cabrito,
Dizendo que nas mãos deu o espirito
De Coelho matador, sagaz e astuto.

Não vem da lusitana monarchia
Martinho mono, pai de cascos vários,
Sua mãi de Aguilar, águia, não de ouro.

Não te mettas em casos temerários:
Que louro não honra tua musa fria.
Mas de uma pouca de… o caldo louro.

Frei Bernardo de Brito, 1569-1617 por Roque Gameiro.
 

     As injurias do primeiro terceto entendem com os progenitores de João Soares de Alarcão. Martinho, se era mono, sobrava-lhe direito a ser da monarchia lusitana; mas também o outro se demasiára, vituperando de mona a Monarchia do frade. Tratavam-se de macacões um ao outro. Pai de cascos vários, invectiva o poeta de Alcobaça. Pela variedade da cascaria, entende-se que capitulava de cavalgadura o adversário: saldo bem ajustado com o outro que lhe chamara bruto.

     Entra no soneto a mãi do poeta, que devia ser da familia de Aguilares: e era com effeito, sem ser de raça desprimorosa. Chamava-se D. Cecília de Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe de Aguilar, mestre-sala de D. Sebastião, de D. Henrique, de D. Philippe, e tão amigo de Castella que chegou á mordomia-mór do rei intruso. Estes Aguilares e Aguiares foram sempre muito dos hespanhoes, e logo contarei um caso do mais notável.

     Martinho, mono, diz frei Bernardo. Que o pai do poeta era Martinho Soares de Alarcão e Mello, 6.º senhor da casa de Torres-Vedras, não ha duvida; que fosse mono, não o inculcam os genealogistas. Seu filho, o poeta, foi alcaide-mór de Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre esses, o jesuita Francisco Soares de Alarcão, letrado eminente e guerreiro, que morreu queimado em uma explosão de pólvora, quando guarnecia Juromenha, em tempo de D. João IV, capitaneando os noviços da companhia, cujo reitor era.

     Outro filho do poeta dos cascos vários, quando D. João IV o mandava governar Ceuta, passou-se para Philippe IV; e foi condemnado á morte *.

     Teve a mãi de João Soares um primo chamado Damião de Aguiar Ribeiro, que era corregedor em Lisboa, reinando o cardeal. Como sabem, andavam então divididas as opiniões entre D. António e Philippe II, acerca da successão do throno. Damião de Aguiar era dos mais façanhosos propugnadores por Castella. Succedeu então que um homem do serviço de D. António acutilasse na Padaria um vereador que fallava soltamente no senado contra o filho de Violante Gomes. Foi preso e summariamente condemnado á forca. Á hora em que o réo era levado, soube Damião de Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se ajuntava povo intencionado a tirar-lhe o padecente. Mandou O corregedor parar o préstito; fez lançar uma corda de uma janella, e alli mesmo ordenou que se enforcasse o homem, para evitar sensaborias. Tão grato lhe ficou por isto o rei de Castella que o nomeou desembargador do paço, e depois chanceller-mór do reino, comendador de S. Matheus de Soure e de S. Cosme de Gondomar, commendas que rendiam 3:500 cruzados.

     Foi, por tanto, riquíssimo, e tão bom homem que fundou o convento das Capuchinhas da Merciana. Instituiu morgadio, comprehendendo uma extensa quinta que ia desde as portas de Santo Antão pela travessa da Annunciada até á chamada calçada de Damião de Aguiar. Casou duas vezes; procreou-se, e fez-se representar entre nós pelos snrs. condes de Povolide, de Valladares, etc. Rebello da Silva não reza bem deste Damião na Historia de Portugal. Eu não rezo bem d'elle nem por elle; confesso, todavia, que era homem expedito n'isto de enforcar a gente na janella de qualquer cidadão, mediante seis varas de corda.»

Nota: «* D. João Soares morreu em 1618, com 33 annos de idade. Escreveu e imprimiu em língua castelhana: Archimusa de varias rimas y efetos, e La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro, etc. Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pêro Coelho, avoengo do poeta

Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir, Camilo Castelo Branco, 
N.º 4 - Abril, Livraria Internacional de Ernesto Chardron & Eugenio Chardron, Porto-Braga, 1874.

Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir, Camilo Castelo Branco, 
Livraria Internacional de Ernesto Chardron & Eugenio Chardron, Porto-Braga, 1874 (Volumes, 4, 5 e 8).

    A nota final de Camilo refere-se a D. João Soares de Alarcão (1580-1618), pai, não a D. João Soares de Alarcão e Melo (c. 1600-1669), filho do anterior. A inclinação para o partido de Castela vinha já do pai e avô destes, Martinho (ou Martim) Soares de Alarcão e Melo. Logo que Filipe II de Castela se apoderou da coroa portuguesa, Martinho coloca-se de imediato a seu lado. A sua prole manterá a mesma posição e será generosamente recompensada pelos sucessivos Filipes.

     No arquivo digital da Biblioteca Nacional encontrei a transcrição de dezenas de cartas de Filipe IV de Castela (III de Portugal) endereçadas a D. João Soares de Alarcão e Melo (filho homónimo do “poeta” citado por Camilo). Por essas cartas se vê a proximidade que este tinha da casa real castelhana e o reconhecimento de Filipe IV pela lealdade e serviços prestados a Castela. Recusou ser Governador-geral e Capitão-mor de Ceuta em nome de D. João IV mas logo em seguida começa a desempenhar estes mesmos cargos em nome do rei castelhano. Não esqueçamos que as guerras da Restauração se estendem de 1640 até 1668 e nem todos os territórios foram imediatamente recuperados pelos Portugueses.

     Como general de cavalaria ao serviço de Filipe IV, D. João Soares de Alarcão e Melo entrou em Portugal, pela região das Beiras, logo em 1642 para combater e matar os seus conterrâneos. Este lamentável feito militar valeu-lhe o título de Marquês de Turcifal (concelho de Torres Vedras), acumulando com o título de Conde de Torres Vedras, concedido por Filipe II a seu avô e herdado por seu pai. Até Novembro de 1652, Filipe IV dirige-se a D. João chamando-lhe “Conde de Torres Vedras amigo meu”; a partir de 24 de Dezembro de mesmo ano, começa a usar a saudação “Honrado Marquês amigo meu”. Estas cartas revelam também que muitos outros portugueses foram recompensados por Filipe IV (com tenças, rendas, títulos e hábitos da Ordem de Cristo), por recomendação ou pedido deste D. João, pela traição a Portugal. 

D. António, Prior do Crato (Lisboa, 20 de março de 1531 – Paris, 26 de agosto de 1595), 
cognominado o Prior do Crato, o Determinado, o Lutador ou o Independentista.

     Durante o curto reinado de D. António, Prior do Crato, após a morte de D. Sebastião em Alcácer Quibir, o título de Conde de Torres Vedras foi retirado a Martinho Soares de Alarcão, por se ter juntado à causa castelhana, e foi concedido a D. Manuel da Silva Coutinho (1541-1583), um indefectível apoiante de D. António que o acompanhou no exílio em França. No entanto, regressou e tentou enfrentar os invasores castelhanos nos Açores. D. Manuel da Silva Coutinho acabaria por ser preso e decapitado a 13 de Agosto de 1583, em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, por ordem do general castelhano D. Álvaro de Bazán, 1.º Marquês de Santa Cruz de Mudela, o principal responsável pela derrota da armada luso-francesa.

Batalha da Ilha Terceira - Desembarque das tropas espanholas na Baía das Mós 
(fresco de Niccolò Granello, Sala das Batalhas, Mosteiro de San Lorenzo de El Escorial). 
Esta batalha decorreu nos dias 26 e 27 de Julho de 1583.

Dom Álvaro de Bazán y Guzmán, 1º marquês de Santa Cruz de Mudela 
painted by Rafael Tegeo Díaz, 1828.

ALGUMAS DAS CARTAS ENVIADAS POR FILIPE IV (III de Portugal) A D. JOÃO SOARES DE ALARCÃO E MELO

     Os documentos da Biblioteca Nacional apresentam a transcrição em Português das cartas originais. Um dos documentos contém cartas enviadas de Saragoça e Madrid, datadas de 1646 a 1653 (vide Cartas de Filipe IV de Espanha para o Conde de Torres Vedras, D. João Soares de Alarcão, governador e capitão-general da cidade de Ceutahttps://purl.pt/30107). O outro contém cartas e outros documentos provenientes de Madrid, referentes ao mesmo espaço temporal (vide Documentos vários de Filipe IV de Espanha para o Conde de Torres Vedras, D. João Soares de Alarcão, capitão Geral da Cidade de Ceutahttps://purl.pt/27692). 


Primeira carta do primeiro documento, datada de Saragoça, 24 de Junho de 1646.

Carta enviada de Saragoça em 7 de Julho de 1646.

Última carta em que ainda é usado apenas o título de Conde de Torres Vedras, 
datada de 19 de Novembro de 1652.

Primeira carta em que é usado o título de Marquês de Turcifal, datada de 24 de Dezembro de 1652,
embora no sobrescrito se mantenha o título de Conde de Torres Vedras e se omita o de Marquês de Turcifal.

Carta enviada de Madrid em 7 de Outubro de 1653.

Última carta do primeiro documento, datada de 28 de Outubro de 1653.

Brasão de Armas da família Alarcão.