NOITES DE INSÓNIA
Nas suas profícuas Noites de Insónia (N.º 4, Abril de 1874), Camilo Castelo Branco escreveu
um capítulo dedicado a Frei Bernardo de Brito, na sua qualidade de pretendente
a poeta. Aparentemente, Frei Bernardo era mais inclinado a versejar com a
língua bem afiada do que a produzir composições poéticas dignas de nota. Mas
foi precisamente a veia satírica e sarcástica de Frei Bernardo que chamou a atenção
do incansável Camilo; ele que raramente perdia a oportunidade de procurar e
revelar a história por trás da lenda, das metáforas, dos mitos e da sátira. Neste
capítulo (Inédito do Poeta Frei Bernardo
de Brito, págs. 37-42), Camilo refere uma curiosa altercação poética com o
autor (João Soares de Alarcão) da Infanta
Coroada, obra já mencionada no post Lenda & História IV. A inimizade
entre Frei Bernardo e João Soares de Alarcão prende-se indirectamente com a
história de Pedro e Inês. Frei Bernardo era um venerador de ambos e João Soares
de Alarcão seria… descendente de Pero Coelho, um dos supostos assassinos de
Inês de Castro. Para além disso, João Soares Alarcão (1580-1618) inclinara-se para a
União Ibérica e o domínio dos Filipes e o cisterciense empenhou-se em abrir
caminho à Restauração e a D. João IV.
Tão ou mais interessante do que os poemas
satíricos deste cisterciense são as informações que Camilo dá sobre João Soares
de Alarcão. Sem elas. Grande parte do significado jocoso dos dois sonetos
apresentados perder-se-ia, como acontece tantas vezes com a sátira. Por isso, o
fragmento citado é longo mas deveras instrutivo: (foi mantida a grafia
original, os sublinhados a vermelho são uma opção)
«Escreveu o famoso cisterciense a Sylvia de Lizardo, e ninguém o trata de
poeta quando o louva ou moteja. Chamam-lhe o
chronista, o classico, o douto, o mentiroso, o massador, o milagreiro; poeta é
que não; e houve até um frade da ordem d'elle, Fortunato de S.
Boaventura, o author do Punhal dos Corcundas que positivamente
desbalisou de poeta e de author da Sylvia
de Lizardo o vernáculo author da Chronica
de Cister.
Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo,
aquelle Balthazar de Brito de Andrade, que
por amor do patriarcha se crismou em Bernardo.
Teve elle o ruim sestro de desfazer na
prosápia dos outros. Raro fidalgo lhe sahiu incólume do crisol em que por
obrigação do officio de historiador, elle acendrava o fino ouro dos
Trocozendos, dos Romarigues, dos Egas Bufas e outros condes das raças romana e
goda.
Nos descendentes do Espadeiro, que eram a geração dos Coelhos, beliscava elle, á conta do assassínio de Ignez de Castro. De si, dizia o frade, que
os Britos em Portugal, derivavam dos Brutos de Roma.
Um descendente de Egas
Moniz, chamado João Soares de Alarcão,
como era poeta, satyrisou a maledicência de fr.
Bernardo de Brito com este soneto:
Aos profundos impérios d’el-rei Pluto
Irás, Bernardo, pelo que has escripto.
Pois dizes que de Bruto vem teu Brito,
Ficando tu só n'isso Brito e bruto.
Tu vens d’aquelles que a pé enxuto
Passaram, com Moysés, o mar do Egypto,
Ou vens do que com sangue do cabrito
Tantos guizados fez sem nenhum fructo.
Chamastes ao teu livro Monarchia,
Sendo Mona que cria monstros vários,
E tornastes de ferro a idade de ouro.
Não te metias em casos temerários;
Pasta nas hervas, bebe da agua fria,
Ou na velha escudela o caldo louro.
O monge de Cistér responde pelas mesmas rimas:
Maçarico dos charcos de el-rei Pluto,
Que taes marmanjarias has escripto.
Que ao douto frei Bernardo ou Bruto ou Brito
Picas com, bico infame, sujo e bruto;
Jamais será de Ignez o pranto enxuto.
Pois a fazes mais quartos que um cabrito,
Dizendo que nas mãos deu o espirito
De Coelho matador, sagaz e astuto.
Não vem da lusitana monarchia
Martinho mono, pai de cascos vários,
Sua mãi de Aguilar, águia, não de ouro.
Não te mettas em casos temerários:
Que louro não honra tua musa fria.
Mas de uma pouca de… o caldo louro.
As injurias do primeiro terceto entendem com os progenitores de João Soares de Alarcão. Martinho, se era mono, sobrava-lhe direito a ser da monarchia lusitana; mas também o outro se demasiára, vituperando de mona a Monarchia do frade. Tratavam-se de macacões um ao outro. Pai de cascos vários, invectiva o poeta de Alcobaça. Pela variedade da cascaria, entende-se que capitulava de cavalgadura o adversário: saldo bem ajustado com o outro que lhe chamara bruto.
Entra no soneto a mãi do poeta, que devia
ser da familia de Aguilares: e era com effeito, sem ser de raça desprimorosa.
Chamava-se D. Cecília de Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe de Aguilar,
mestre-sala de D. Sebastião, de D. Henrique, de D.
Philippe, e tão amigo de Castella que
chegou á mordomia-mór do rei intruso. Estes
Aguilares e Aguiares foram sempre muito dos
hespanhoes, e logo contarei um caso do mais notável.
Martinho, mono, diz frei Bernardo. Que o
pai do poeta era Martinho Soares de Alarcão e Mello, 6.º
senhor da casa de Torres-Vedras, não ha duvida; que fosse mono, não o
inculcam os genealogistas. Seu filho, o poeta, foi alcaide-mór
de Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre esses, o jesuita
Francisco Soares de Alarcão, letrado eminente e guerreiro, que morreu queimado
em uma explosão de pólvora, quando guarnecia Juromenha, em tempo de D. João IV,
capitaneando os noviços da companhia, cujo reitor era.
Outro filho do poeta dos cascos vários, quando D. João IV o
mandava governar Ceuta, passou-se para Philippe IV; e foi
condemnado á morte *.
Teve a mãi de João Soares um primo chamado
Damião de Aguiar Ribeiro, que era corregedor em Lisboa, reinando o cardeal. Como
sabem, andavam então divididas as opiniões entre D. António e Philippe II,
acerca da successão do throno. Damião de Aguiar era
dos mais façanhosos propugnadores por Castella. Succedeu então que um
homem do serviço de D. António acutilasse na Padaria um vereador que fallava
soltamente no senado contra o filho de Violante Gomes. Foi
preso e summariamente condemnado á forca. Á hora em que o réo era
levado, soube Damião de Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se ajuntava povo intencionado a tirar-lhe o padecente.
Mandou O corregedor parar o préstito; fez lançar uma corda de uma janella, e
alli mesmo ordenou que se enforcasse o homem, para evitar sensaborias. Tão
grato lhe ficou por isto o rei de Castella que o nomeou desembargador do paço, e depois chanceller-mór
do reino, comendador de S. Matheus de Soure e de S. Cosme de Gondomar,
commendas que rendiam 3:500 cruzados.
Foi, por tanto, riquíssimo, e tão bom
homem que fundou o convento das Capuchinhas da Merciana. Instituiu morgadio,
comprehendendo uma extensa quinta que ia desde as portas de Santo Antão pela
travessa da Annunciada até á chamada calçada de Damião de Aguiar. Casou duas
vezes; procreou-se, e fez-se representar entre nós pelos snrs. condes de
Povolide, de Valladares, etc. Rebello da Silva não reza bem deste Damião na
Historia de Portugal. Eu não rezo bem d'elle nem por elle; confesso, todavia,
que era homem expedito n'isto de enforcar a gente na janella de qualquer
cidadão, mediante seis varas de corda.»
Nota: «* D. João Soares morreu em 1618, com 33 annos de idade. Escreveu e imprimiu em língua castelhana: Archimusa de varias rimas y efetos, e La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro, etc. Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pêro Coelho, avoengo do poeta.»
A nota final de Camilo refere-se a D. João
Soares de Alarcão (1580-1618), pai, não a D. João Soares de Alarcão e Melo (c.
1600-1669), filho do anterior. A inclinação para o partido de Castela vinha já
do pai e avô destes, Martinho (ou Martim) Soares de Alarcão e Melo. Logo que
Filipe II de Castela se apoderou da coroa portuguesa, Martinho coloca-se de
imediato a seu lado. A sua prole manterá a mesma posição e será generosamente
recompensada pelos sucessivos Filipes.
No arquivo digital da Biblioteca Nacional
encontrei a transcrição de dezenas de cartas de Filipe IV de Castela (III de
Portugal) endereçadas a D. João Soares de Alarcão e Melo (filho homónimo do “poeta”
citado por Camilo). Por essas cartas se vê a proximidade que este tinha da casa
real castelhana e o reconhecimento de Filipe IV pela lealdade e serviços
prestados a Castela. Recusou ser Governador-geral e Capitão-mor de Ceuta em
nome de D. João IV mas logo em seguida começa a desempenhar estes mesmos cargos
em nome do rei castelhano. Não esqueçamos que as guerras da Restauração se
estendem de 1640 até 1668 e nem todos os territórios foram imediatamente
recuperados pelos Portugueses.
Como general de cavalaria ao serviço de Filipe IV, D. João Soares de Alarcão e Melo entrou em Portugal, pela região das Beiras, logo em 1642 para combater e matar os seus conterrâneos. Este lamentável feito militar valeu-lhe o título de Marquês de Turcifal (concelho de Torres Vedras), acumulando com o título de Conde de Torres Vedras, concedido por Filipe II a seu avô e herdado por seu pai. Até Novembro de 1652, Filipe IV dirige-se a D. João chamando-lhe “Conde de Torres Vedras amigo meu”; a partir de 24 de Dezembro de mesmo ano, começa a usar a saudação “Honrado Marquês amigo meu”. Estas cartas revelam também que muitos outros portugueses foram recompensados por Filipe IV (com tenças, rendas, títulos e hábitos da Ordem de Cristo), por recomendação ou pedido deste D. João, pela traição a Portugal.
Durante o curto reinado de D. António, Prior do Crato, após a morte de D. Sebastião em Alcácer Quibir, o título de Conde de Torres Vedras foi retirado a Martinho Soares de Alarcão, por se ter juntado à causa castelhana, e foi concedido a D. Manuel da Silva Coutinho (1541-1583), um indefectível apoiante de D. António que o acompanhou no exílio em França. No entanto, regressou e tentou enfrentar os invasores castelhanos nos Açores. D. Manuel da Silva Coutinho acabaria por ser preso e decapitado a 13 de Agosto de 1583, em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, por ordem do general castelhano D. Álvaro de Bazán, 1.º Marquês de Santa Cruz de Mudela, o principal responsável pela derrota da armada luso-francesa.
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