segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA VII

NOITES DE INSÓNIA

     Nas suas profícuas Noites de Insónia (N.º 4, Abril de 1874), Camilo Castelo Branco escreveu um capítulo dedicado a Frei Bernardo de Brito, na sua qualidade de pretendente a poeta. Aparentemente, Frei Bernardo era mais inclinado a versejar com a língua bem afiada do que a produzir composições poéticas dignas de nota. Mas foi precisamente a veia satírica e sarcástica de Frei Bernardo que chamou a atenção do incansável Camilo; ele que raramente perdia a oportunidade de procurar e revelar a história por trás da lenda, das metáforas, dos mitos e da sátira. Neste capítulo (Inédito do Poeta Frei Bernardo de Brito, págs. 37-42), Camilo refere uma curiosa altercação poética com o autor (João Soares de Alarcão) da Infanta Coroada, obra já mencionada no post Lenda & História IV. A inimizade entre Frei Bernardo e João Soares de Alarcão prende-se indirectamente com a história de Pedro e Inês. Frei Bernardo era um venerador de ambos e João Soares de Alarcão seria… descendente de Pero Coelho, um dos supostos assassinos de Inês de Castro. Para além disso, João Soares Alarcão (1580-1618) inclinara-se para a União Ibérica e o domínio dos Filipes e o cisterciense empenhou-se em abrir caminho à Restauração e a D. João IV.  

     Tão ou mais interessante do que os poemas satíricos deste cisterciense são as informações que Camilo dá sobre João Soares de Alarcão. Sem elas. Grande parte do significado jocoso dos dois sonetos apresentados perder-se-ia, como acontece tantas vezes com a sátira. Por isso, o fragmento citado é longo mas deveras instrutivo: (foi mantida a grafia original, os sublinhados a vermelho são uma opção)

Camilo Castelo Branco, 1825-1890.

     «Escreveu o famoso cisterciense a Sylvia de Lizardo, e ninguém o trata de poeta quando o louva ou moteja. Chamam-lhe o chronista, o classico, o douto, o mentiroso, o massador, o milagreiro; poeta é que não; e houve até um frade da ordem d'elle, Fortunato de S. Boaventura, o author do Punhal dos Corcundas que positivamente desbalisou de poeta e de author da Sylvia de Lizardo o vernáculo author da Chronica de Cister.

     Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo, aquelle Balthazar de Brito de Andrade, que por amor do patriarcha se crismou em Bernardo.

     Teve elle o ruim sestro de desfazer na prosápia dos outros. Raro fidalgo lhe sahiu incólume do crisol em que por obrigação do officio de historiador, elle acendrava o fino ouro dos Trocozendos, dos Romarigues, dos Egas Bufas e outros condes das raças romana e goda.

     Nos descendentes do Espadeiro, que eram a geração dos Coelhos, beliscava elle, á conta do assassínio de Ignez de Castro. De si, dizia o frade, que os Britos em Portugal, derivavam dos Brutos de Roma.

     Um descendente de Egas Moniz, chamado João Soares de Alarcão, como era poeta, satyrisou a maledicência de fr. Bernardo de Brito com este soneto:


Aos profundos impérios d’el-rei Pluto
Irás, Bernardo, pelo que has escripto.
Pois dizes que de Bruto vem teu Brito,
Ficando tu só n'isso Brito e bruto.

Tu vens d’aquelles que a pé enxuto
Passaram, com Moysés, o mar do Egypto,
Ou vens do que com sangue do cabrito
Tantos guizados fez sem nenhum fructo.

Chamastes ao teu livro Monarchia,
Sendo Mona que cria monstros vários,
E tornastes de ferro a idade de ouro.

Não te metias em casos temerários;
Pasta nas hervas, bebe da agua fria,
Ou na velha escudela o caldo louro.

O monge de Cistér responde pelas mesmas rimas:

Maçarico dos charcos de el-rei Pluto,
Que taes marmanjarias has escripto.
Que ao douto frei Bernardo ou Bruto ou Brito
Picas com, bico infame, sujo e bruto;

Jamais será de Ignez o pranto enxuto.
Pois a fazes mais quartos que um cabrito,
Dizendo que nas mãos deu o espirito
De Coelho matador, sagaz e astuto.

Não vem da lusitana monarchia
Martinho mono, pai de cascos vários,
Sua mãi de Aguilar, águia, não de ouro.

Não te mettas em casos temerários:
Que louro não honra tua musa fria.
Mas de uma pouca de… o caldo louro.

Frei Bernardo de Brito, 1569-1617 por Roque Gameiro.
 

     As injurias do primeiro terceto entendem com os progenitores de João Soares de Alarcão. Martinho, se era mono, sobrava-lhe direito a ser da monarchia lusitana; mas também o outro se demasiára, vituperando de mona a Monarchia do frade. Tratavam-se de macacões um ao outro. Pai de cascos vários, invectiva o poeta de Alcobaça. Pela variedade da cascaria, entende-se que capitulava de cavalgadura o adversário: saldo bem ajustado com o outro que lhe chamara bruto.

     Entra no soneto a mãi do poeta, que devia ser da familia de Aguilares: e era com effeito, sem ser de raça desprimorosa. Chamava-se D. Cecília de Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe de Aguilar, mestre-sala de D. Sebastião, de D. Henrique, de D. Philippe, e tão amigo de Castella que chegou á mordomia-mór do rei intruso. Estes Aguilares e Aguiares foram sempre muito dos hespanhoes, e logo contarei um caso do mais notável.

     Martinho, mono, diz frei Bernardo. Que o pai do poeta era Martinho Soares de Alarcão e Mello, 6.º senhor da casa de Torres-Vedras, não ha duvida; que fosse mono, não o inculcam os genealogistas. Seu filho, o poeta, foi alcaide-mór de Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre esses, o jesuita Francisco Soares de Alarcão, letrado eminente e guerreiro, que morreu queimado em uma explosão de pólvora, quando guarnecia Juromenha, em tempo de D. João IV, capitaneando os noviços da companhia, cujo reitor era.

     Outro filho do poeta dos cascos vários, quando D. João IV o mandava governar Ceuta, passou-se para Philippe IV; e foi condemnado á morte *.

     Teve a mãi de João Soares um primo chamado Damião de Aguiar Ribeiro, que era corregedor em Lisboa, reinando o cardeal. Como sabem, andavam então divididas as opiniões entre D. António e Philippe II, acerca da successão do throno. Damião de Aguiar era dos mais façanhosos propugnadores por Castella. Succedeu então que um homem do serviço de D. António acutilasse na Padaria um vereador que fallava soltamente no senado contra o filho de Violante Gomes. Foi preso e summariamente condemnado á forca. Á hora em que o réo era levado, soube Damião de Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se ajuntava povo intencionado a tirar-lhe o padecente. Mandou O corregedor parar o préstito; fez lançar uma corda de uma janella, e alli mesmo ordenou que se enforcasse o homem, para evitar sensaborias. Tão grato lhe ficou por isto o rei de Castella que o nomeou desembargador do paço, e depois chanceller-mór do reino, comendador de S. Matheus de Soure e de S. Cosme de Gondomar, commendas que rendiam 3:500 cruzados.

     Foi, por tanto, riquíssimo, e tão bom homem que fundou o convento das Capuchinhas da Merciana. Instituiu morgadio, comprehendendo uma extensa quinta que ia desde as portas de Santo Antão pela travessa da Annunciada até á chamada calçada de Damião de Aguiar. Casou duas vezes; procreou-se, e fez-se representar entre nós pelos snrs. condes de Povolide, de Valladares, etc. Rebello da Silva não reza bem deste Damião na Historia de Portugal. Eu não rezo bem d'elle nem por elle; confesso, todavia, que era homem expedito n'isto de enforcar a gente na janella de qualquer cidadão, mediante seis varas de corda.»

Nota: «* D. João Soares morreu em 1618, com 33 annos de idade. Escreveu e imprimiu em língua castelhana: Archimusa de varias rimas y efetos, e La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro, etc. Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pêro Coelho, avoengo do poeta

Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir, Camilo Castelo Branco, 
N.º 4 - Abril, Livraria Internacional de Ernesto Chardron & Eugenio Chardron, Porto-Braga, 1874.

Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir, Camilo Castelo Branco, 
Livraria Internacional de Ernesto Chardron & Eugenio Chardron, Porto-Braga, 1874 (Volumes, 4, 5 e 8).

    A nota final de Camilo refere-se a D. João Soares de Alarcão (1580-1618), pai, não a D. João Soares de Alarcão e Melo (c. 1600-1669), filho do anterior. A inclinação para o partido de Castela vinha já do pai e avô destes, Martinho (ou Martim) Soares de Alarcão e Melo. Logo que Filipe II de Castela se apoderou da coroa portuguesa, Martinho coloca-se de imediato a seu lado. A sua prole manterá a mesma posição e será generosamente recompensada pelos sucessivos Filipes.

     No arquivo digital da Biblioteca Nacional encontrei a transcrição de dezenas de cartas de Filipe IV de Castela (III de Portugal) endereçadas a D. João Soares de Alarcão e Melo (filho homónimo do “poeta” citado por Camilo). Por essas cartas se vê a proximidade que este tinha da casa real castelhana e o reconhecimento de Filipe IV pela lealdade e serviços prestados a Castela. Recusou ser Governador-geral e Capitão-mor de Ceuta em nome de D. João IV mas logo em seguida começa a desempenhar estes mesmos cargos em nome do rei castelhano. Não esqueçamos que as guerras da Restauração se estendem de 1640 até 1668 e nem todos os territórios foram imediatamente recuperados pelos Portugueses.

     Como general de cavalaria ao serviço de Filipe IV, D. João Soares de Alarcão e Melo entrou em Portugal, pela região das Beiras, logo em 1642 para combater e matar os seus conterrâneos. Este lamentável feito militar valeu-lhe o título de Marquês de Turcifal (concelho de Torres Vedras), acumulando com o título de Conde de Torres Vedras, concedido por Filipe II a seu avô e herdado por seu pai. Até Novembro de 1652, Filipe IV dirige-se a D. João chamando-lhe “Conde de Torres Vedras amigo meu”; a partir de 24 de Dezembro de mesmo ano, começa a usar a saudação “Honrado Marquês amigo meu”. Estas cartas revelam também que muitos outros portugueses foram recompensados por Filipe IV (com tenças, rendas, títulos e hábitos da Ordem de Cristo), por recomendação ou pedido deste D. João, pela traição a Portugal. 

D. António, Prior do Crato (Lisboa, 20 de março de 1531 – Paris, 26 de agosto de 1595), 
cognominado o Prior do Crato, o Determinado, o Lutador ou o Independentista.

     Durante o curto reinado de D. António, Prior do Crato, após a morte de D. Sebastião em Alcácer Quibir, o título de Conde de Torres Vedras foi retirado a Martinho Soares de Alarcão, por se ter juntado à causa castelhana, e foi concedido a D. Manuel da Silva Coutinho (1541-1583), um indefectível apoiante de D. António que o acompanhou no exílio em França. No entanto, regressou e tentou enfrentar os invasores castelhanos nos Açores. D. Manuel da Silva Coutinho acabaria por ser preso e decapitado a 13 de Agosto de 1583, em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, por ordem do general castelhano D. Álvaro de Bazán, 1.º Marquês de Santa Cruz de Mudela, o principal responsável pela derrota da armada luso-francesa.

Batalha da Ilha Terceira - Desembarque das tropas espanholas na Baía das Mós 
(fresco de Niccolò Granello, Sala das Batalhas, Mosteiro de San Lorenzo de El Escorial). 
Esta batalha decorreu nos dias 26 e 27 de Julho de 1583.

Dom Álvaro de Bazán y Guzmán, 1º marquês de Santa Cruz de Mudela 
painted by Rafael Tegeo Díaz, 1828.

ALGUMAS DAS CARTAS ENVIADAS POR FILIPE IV (III de Portugal) A D. JOÃO SOARES DE ALARCÃO E MELO

     Os documentos da Biblioteca Nacional apresentam a transcrição em Português das cartas originais. Um dos documentos contém cartas enviadas de Saragoça e Madrid, datadas de 1646 a 1653 (vide Cartas de Filipe IV de Espanha para o Conde de Torres Vedras, D. João Soares de Alarcão, governador e capitão-general da cidade de Ceutahttps://purl.pt/30107). O outro contém cartas e outros documentos provenientes de Madrid, referentes ao mesmo espaço temporal (vide Documentos vários de Filipe IV de Espanha para o Conde de Torres Vedras, D. João Soares de Alarcão, capitão Geral da Cidade de Ceutahttps://purl.pt/27692). 


Primeira carta do primeiro documento, datada de Saragoça, 24 de Junho de 1646.

Carta enviada de Saragoça em 7 de Julho de 1646.

Última carta em que ainda é usado apenas o título de Conde de Torres Vedras, 
datada de 19 de Novembro de 1652.

Primeira carta em que é usado o título de Marquês de Turcifal, datada de 24 de Dezembro de 1652,
embora no sobrescrito se mantenha o título de Conde de Torres Vedras e se omita o de Marquês de Turcifal.

Carta enviada de Madrid em 7 de Outubro de 1653.

Última carta do primeiro documento, datada de 28 de Outubro de 1653.

Brasão de Armas da família Alarcão.


 

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