EXECUÇÃO
E EXECUTORES
A própria degolação de D.ª Inês é contestada por muitos. Embora a degolação ou decapitação fosse considerada a forma de execução mais honrosa desde a Antiguidade, reservada habitualmente aos indivíduos de alta estirpe, raramente foi aplicada (na Europa) a mulheres até à Revolução Francesa. Ana Bolena, mulher de Henrique VIII foi uma das poucas excepções; mas exigiu ser executada por um carrasco francês, que usava espada, em vez de um carrasco inglês, que usava machado. Ana Bolena terá declarado que queria morrer de pé e não de joelhos.
Em Portugal, essa não era uma forma de
execução aplicada às mulheres no tempo de D. Afonso IV. O enforcamento era a
pena mais comum. Aliás, a pena de morte aplicada a mulheres era raríssima,
excepto nos casos de alta-traição e lesa-majestade, como seria de facto o caso
de D.ª Inês, se considerarmos que era irmã de dois conspiradores. A traição dos
seus irmãos era notória, tanto em relação ao reino de Portugal como ao de
Castela, com a conivência do próprio D. Pedro I de Portugal. A decapitação era
sim aplicada aos homens mas apenas reservada a “crimes políticos”, traição e
conspiração. Segundo Paulo Jorge de Sousa Pinto, o enforcamento era a forma de
execução mais comum prescrita pelas Ordenações Afonsinas (A pena de morte em Portugal e no mundo: debate na História, combate
atual, 2017):
«As
Ordenações Afonsinas listam o conjunto de crimes puníveis com a morte por enforcamento: traição, moeda falsa, homicídio,
adultério, sodomia, falsificação, feitiçaria ou roubo são alguns dos crimes
sujeitos ao veredicto «morra porém» ou «morra por isso». Todavia, a sua aplicação na prática parece ter sido reduzida,
substituída na esmagadora maioria dos casos por degredo,
penas pecuniárias ou açoites públicos.»
Também não é crível que D. Inês tenha sido enforcada e não foi certamente esquartejada. É, na verdade, mais provável, que D.ª Inês tenha sido assassinada com um punhal ou pequena espada. Apesar de todos estes argumentos, no túmulo de D.ª Inês está gravada uma cena que representa a degolação de uma mulher e outra em que um carrasco abre o peito de um homem e lhe arranca o coração. Mas o que diz a pedra esculpida será História ou mera alegoria que alimentou a lenda? O que se constata é que uma parte das gravuras que poderão representar D. Pedro e D.ª Inês foram “decapitadas” actos de vandalismo, cometidos sobretudo no início do século XIX, aquando das Invasões Francesas.
Ainda não consegui averiguar se D. Pedro
aplicou este modo de execução (decapitação) a mulheres, mas aplicou outros igualmente
cruéis, como queimar mulheres vivas (cf. Crónica
de D. Pedro I, Cap. IX, Fernão Lopes).
As fontes literárias contradizem a ideia
de decapitação, falando quase sempre da espada ou do punhal que trespassou o
peito de D.ª Inês. Entre muitos outros textos, vejam-se, por exemplo, os
sonetos dedicados À Morte de D. Ignez de
Castro pelo poeta arcádico, António Ribeiro dos Santos (1745-1818,
conhecido pelo pseudónimo arcádico Elpino
Duriense; cf. Poesias de Elpino
Duriense, Lisboa, 1812, págs. 290-298). Aí, o autor fala do “bárbaro punhal”, de “duros punhais” que “seus peitos trespassaram”, do “duro
ferro” que “o peito lhe passava”,
do “ferro homicida” que “seus peitos trespassou”.
Poesias de Elpino Duriense, pseudónimo arcádico de António Ribeiro dos Santos, 1745-1818, Na Impressão Regia, Lisboa, 1812. Três tomos. No tomo II, págs. 290-298, vêm oito sonetos dedicados à morte de D. Inês de Castro. Logo a seguir (p. 299) vem um soneto dedicado a D. João de Castro, o 4.º Vice-rei da Índia.
O que era comum naquele tempo era o uso da
espada, do punhal e dos venenos, que tiravam a vida sem deixar grandes marcas
físicas; eram usados sobretudo quando o alvo era um nobre ou membro da realeza.
Há suspeitas de que os irmãos Castro (irmãos de D.ª Inês) terão tentado
envenenar o infante D. Fernando, filho legítimo de D. Pedro e D.ª Constança,
para que o herdeiro do trono português pudesse ser um dos filhos bastardos de
D.ª Inês (D. João ou D. Dinis). Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, e
seu predilecto, terá tentado fazer o mesmo a D. Afonso IV; primeiro para o
impedir de ascender ao trono e, depois, para o eliminar e usurpar o trono. Mais
tarde, D. Leonor de Aragão, mulher do falecido rei D. Duarte, e bisneta de D.ª
Inês de Castro, terá morrido por envenenamento por se temer que pusesse em
perigo a independência nacional após a morte do rei. Nas notas à bibliografia
refiro outros envenenamentos.
Edme-Théodore Bourg (1785-1852), mais
conhecido pelo pseudónimo Saint-Edme, no tomo III do seu Dictionnaire de la pénalité dans toutes les parties du monde connu,
(1824-1828) dedica várias páginas a este crime (envenamento), enumera dezenas
de envenenamentos com motivações políticas, começando desde logo por afirmar o
que referi acima:
«EMPOISONNEMENT. Ce crime, le plus difficile à constater, et p'ar cela même le plus dangereux, a toujours été puni du dernier
supplice. (…) Le poison fut l'arme de la politique; (…). (…) En 1461,
le comte de Charolais faillit à être empoisonné par un de ses premiers
domestiques; ce scélérat, qui s'appelait Constain, avait fait apporter
d'Italie, par un nommé Jean d'Ivy, un poison très-énergique. Les Italiens
jouissaient alors de l'affreuse réputation d'être les plus habiles
empoisonneurs de l'Europe. (…) En France, sous l'ancienne législation,
l'empoisonnement, qu'on appelait le crime de poison, était puni de mort,
conformément aux ordonnances du royaume, et notamment à l'édit du mois de juillet 1682; mais cette loi n'a point
déterminé le genre de supplice auquel devaient être condamnés les
empoisonneurs. Le législateur semblait avoir voulu laisser à l'arbitrage des
juges la faculté d'en augmenter ou d'en diminuer la rigueur suivant les
circonstances. (…) Un empoisonnement
commis, il y a peu d'années, par un homme versé dans l'art de guérir, a révélé
à la multitude une substance vénéneuse qui peut
donner la mort sans laisser de traces visibles de ses effets meurtriers:
c'est l'acétate de morphine. A l'époque de
cet attentat longuement inédité et lentement exécuté par le médecin Castaing,
on craignit avec raison que la publicité donnée à cette affaire et la
révélation de la substance employée, ne fissent, éclore de nouveaux crimes.
C'était un avertissement donné à l’autorité de redoubler de surveillance et
d’activité envers ceux qui tentent de se soustraire
aux mesures de police prises pour prévenir les dangers du commerce libre des
poisons ou substances vénéneuses.» (Tomo III, págs.
465-475).
Apesar de ser um crime e uma forma de
tirar a vida muito comum desde a Antiguidade e entre as civilizações mais
remotas de todos cantos do mundo, não foi certamente um veneno que matou D.ª
Inês.
De entre todos os que registaram, narraram
ou recriaram a morte de D.ª Inês, há no entanto duas fontes coevas que apontam
assertivamente para a degolação ou decapitação. Ambos os autores são clérigos,
um do Mosteiro de Alcobaça, da Ordem de Cister, e outro do Mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra, da Ordem de Santo Agostinho, duas das ordens mais antigas que
se sediaram em Portugal ainda no reinado de D. Afonso Henriques. As ordens
religiosas, especialmente a de Cister, sempre foram largamente beneficiadas
pelos monarcas portugueses até ao reinado de D. Afonso IV que lhes retirou
parte dos coutos e privilégios, motivo suficiente para despertar a animosidade
de algumas das ordens contra este monarca, especialmente da Ordem de Cister.
Ambos os cronistas atribuem a D. Afonso IV
a ordem da execução. Ambos os relatos estão em latim e apontam como ano da
morte de D.ª Inês o de 1393, por se regerem ainda pelo calendário da Era
Hispânica ou Era de César. A Era Hispânica só foi abolida, em Portugal, por D.
João I, em Agosto de 1422, embora já tivesse sido abolida pela Igreja em 1180 e
houvesse desde o século VI monges que usavam a datação da Era Crstã (Dionísio, o Exíguo terá sido o primeiro). A Era
Cristã, Era de Cristo ou Era Comum começa 38 anos antes da Era Hispânica, isto
é, o ano de 1393 corresponde ao de 1355. Portanto, tanto o ano como o dia e mês
(7 de Janeiro) registados pelos cronistas de Alcobaça e Santa Cruz estão
correctos. A única diferença está no vocábulo usado para designar o modo como
D.ª Inês foi morta: o clérigo de Santa Cruz usa a palavra “decolata” (decapitada ou degolada) e o de Alcobaça usa o termo “occidit” (matar de uma forma genérica). Apesar
destes relatos, a maioria dos investigadores e escritores não consideram
credível a decapitação. Maria José Azevedo Santos, apesar de seguir a tese da
decapitação, reconhece que muitos discordam:
«Contudo, é forçoso dizer que a decapitação, bárbaro modo de assassinar, tão frequente na Idade Média, tem sido rejeitado por muitos poetas, dramaturgos e investigadores inesianos que não aceitam a amputação de um corpo imaginado, e celebrado ao longo dos séculos, pelo encanto, elegância e formosura que exibia.» (Vide D. Inês de Castro – Colo de Garça, Academia Portuguesa da História, 2011, pág. 55).
Sem comentários:
Enviar um comentário