domingo, 10 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA VI

 A SUPREMACIA DE CISTER

          D. Afonso IV foi dos poucos reis (anteriores à Revolução Liberal, séc. XIX) que tiveram a coragem de retirar bens e / ou privilégios às ordens religiosas que rivalizavam em riqueza e poder com a nobreza e a própria realeza. Contrariamente, a Ordem de Cister foi especialmente favorecida por D. Pedro I (ele e D.ª Inês estão sepultados no maior mosteiro da ordem, em Alcobaça, promovido a panteão régio por D. Pedro), não sendo, por isso, de admirar a lealdade ao seu protector e a sanha contra quem lhes retirou privilégios. A proeminência desta ordem e dos seus dirigentes fica desde logo evidente no rol de epítetos que se juntam ao nome do Abade Geral da Ordem de Cister:

     «Dom Fr. Paulo de Britto D. Abbade do Real do Mofteyro de Santa Maria de Alcobaça da Ordem de Cisfter, Senhor Donatário, & Capitão-mor das Villas de Alcobaça, Aljubarrota, Alfeyzaraõ, Alvorninha, Pederneyra, Santa Catharina, Paredes, Côs, S. Martinho, Selir do Mato, Mayorga, Évora, Cella, Turquel, & mais Lugares, & Povoaçoens de feus termos dos Coutos do dito Mofteyro, do Confelho de Sua Mageftade, & feu Efmoler môr, Geral, & Reformador da Congregação de S. Bernardo neftes Reynos, & Senhorios de Portugal, & Algarves, &c.» Veja-se, por exemplo, a Chronica de Cister, de Frei Bernardo de Brito (1602), ele próprio um cisterciense, co-autor da monumental obra Monarquia Lusitana.

Chronica de Cister - onde se contam as cousas principaes desta ordem, 
& muytas antiguidades do reyno de Portugal - primeyra parte
Bernardo de Brito, 1569-1617, Officina de Pascoal da Sylva, Lisboa, 1720.

          No segundo volume da História das Ordens Monásticas em Portugal, de Manuel Bernardes Branco, 1888, são enumerados alguns dos privilégios do Abade Geral da Ordem de Cister (vide págs. 460-461 e 463-467). Os excertos que se seguem comprovam bem como a Ordem de Cister era ambiciosa e ciosa dos privilégios conquistados. Como em quase todas as citações, foi mantida a grafia original, os destaques a vermelho são uma opção minha:

     «Em quanto esmoler mór tem os do abbade d'Alcobaça logar em cortes do mesmo posto dos outros officiaes mores da casa real.

     O mesmo nas mais funcções publicas, como são embaixadores de Príncipes, levantamentos do novo Rei, bautismo das pessoas reaes, e em outras similhantes, nos quaes assiste como creado da casa; e para isso é avisado pela secretaria do estado do dia e hora certa.

     Tem mais aposentadoria para si, e seus creados nas villas e cidades do Reino, por onde passa, pelo regimento do aposentador mór.

     Por esmoler mór se costuma dar senhoria aos D. Abbades de Alcobaça, como aos mais creados da casa real.

     Tem d'elrei cincoenta e dois mil réis por anno; e o escrivão da Esmolaria de seu ordenado vinte mil réis.

     E como o dom abbade esmoler mór deve fazar a residência pessoal no seu mosteiro de Alcobaça de que é prelado, e em razão do outro seu officio de geral tem muitos negócios e visitas da Congregação, a que é preciso assistir; por todas estas razões houveram por bem os Reis, que elles abbades apresentassem um monge da sua casa, honesto, e a aprazimento dos Reis, o qual, em nome e ausência somente dos ditos abbades, servisse por elles de esmoler mór, e seguisse sempre a corte. Apresenta-os o dom abbade por escripto, e el Rei lhes manda passar sua carta de confirmação em forma

(…)

     «No tempo dos abbades prepetuos sempre serviram em seu nome monges professos d'Alcobaça, e ora isto é cousa tão assentada entre todos, que no tempo do primeiro administrador D. George da Costa, por muito que desejou descompô-lo el-Rei D. João II, não levou ao fim despojar a real Abbadia d'esta sua preheminencia

(…)

     «Quando el-rei manda fazer por sua conta alguma gente de guerra nas terras do Mosteiro, primeiro por sua carta especial o faz saber ao dom abbade, e lhe insinua a razão motiva, porque manda fazer a tal gente.

     Doutra sorte, e sem vir primeiro esta carta não consentem os monges que se levante gente, nem que entre nas suas terras a paga-la ministro algum da milícia, por mais apertadas ordens que traga

(…)

     «El Rei D. João IV mandou restituir ao monge d' Alcobaça todas as terras e haveres que taes monges asseveravam terem-lhes sido doados por El Rei D. Affonso Henriques, embora taes doações para a critica dos nossos dias, seja mais que duvidosa. Mas o que é certo que os frades foram restituídos à posse das terras chamadas vulgarmente os Coutos d'Alcobaça, e em terras taes tinham os abbades mero e mixto império, isto é, no civel, e crime, e todo aquelle Senhorio, que antes da doação era da Coroa

(…)

     «A voz que se levantava nas pendências era d’elles; porque se não appellidava nas terras dos Coutos a voz d'El rei; mas a voz do abbade; e não se dizia nos arroidos aqui del rei, como hoje uzamos; mas diziam: Aqui do Abbade ou do Mosteiro.

     Podiam tambem os D. abbades ir em hoste; isto é, que levantavam gente de guerra nas suas terras por authoridade próprias quando e como queriam, e pela mesma sua authoridade mandavam prender e soltar em todas as villas; punham os tabelliâes em seu nome e não d'elrei: e os removiam, quando queriam porque não eram confirmados pelo príncipe, mas sómente pelo abbade.

     Da mesma sorte os juizes e mais justiças também eram postos e confirmados pelos abbades.

     Passavam alvarás de privilégios a seus creados, ou a quem queriam, pelos quaes os faziam isentos dos encargos dos concelhos e das fintas e talhas: não davam appellação nem aggravos para el rei, senão nos casos de morte: mas dos juizes se appellava para o Ouvidor e d'este para o dom abbade; e a sentença que elle dava era a final e suprema.

     Não entravam nas villas dos Coutos ministro d'elrei, mas em logar dos corregedores punham os D. abbades seu ouvidor e quando lhes parecia era um monge, o qual e o mesmo abbade faziam audiência á porta do Mosteiro

(…)

     «Conservaram-se os D. abbades de Alcobaça n'esta sua grandeza inteiramente até o tempo d'el-rei D Affonso IV.

     E do tempo d'este principe em diante é que se foi alterando lentamente toda esta soberania e grandeza.

     Pois este monarcha (D. Afonso IV) tomou aos monges o senhorio real do mosteiro, ainda que, ao depois, o tornou a restituir seu filho el-rei D. Pedro I, com tudo na carta da restituição começou já a coartar a jurisdicção aos abbades, porque mandou que dessem appelação para el-rei; e que os corregedores da Estremadura entrassem nas villas dos coutos a fazer correição.

     «Hoje por força das palavras da nova doação e confirmação do rei D. João IV teem os D. abbades de Alcobaça o mesmo Senhorio Real que se contém na primeira doação d'el-rei D. Affonso Henriques; porém modificado na praxe pelas ordenações do reino; e muito mais pela razão próxima de serem os dois abbades triennaes».

Carta de confirmação pela qual o rei D. Pedro I revalidou a Alcobaça os coutos e jurisdições, e restituiu as que seu pai, 
D. Afonso IV, tinha tirado ao mosteiro, c. 8 de Setembro de 1358. ANTT.

Cluny Y El Cister - Las Ordenes Mendicantes, 1 a 20 - 
Historia Del Mundo, Pijoan Salvat, Tomo 6, 1970.
A Ordem de Cister resulta da reforma da Ordem de Cluny.
Embora a ordem tenha sido criada por dissidentes de Cluny (Roberto de Champagne e outros monges), foi Bernardo de Claraval o grande reformador e impulsionador da Ordem de Cister, tanto em França como noutros países da Europa. A Ordem de Cister continuará a ser influente nos domínios cultural, educacional e artístico até às Revoluções Liberais do início do século XIX que vão abolir todas as ordens religiosas. O primeiro mosteiro da Ordem de Cister em Portugal (S. Cristóvão de Lafões) foi fundado em 1138, ainda antes da independência. O Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, que se tornaria o centro da ordem, seria fundado em 1153. 


Mosteiros da Ordem de Cister em Portugal.

Em 1989, o Mosteiro de Alcobaça passou a integrar o Património Mundial da Humanidade da UNESCO. (Fot. via Expresso).
Para a Fraternidade Rosacruz de Portugal, o Mosteiro de Alcobaça é um "signo artístico-simbólico",
encontrando um significado esotérico em toda a estrutura do conjunto de edifícios e nos detalhes decorativos. Sobre a rosácea que se vê na fachada principal, um artigo (Viagem Filosófica) da página da Fraternidade Rosacruz de Portugal diz o seguinte: 
«rosácea que vemos na fachada tem simbolismo solar. Embora em contradição aparente com o gosto do estilo gótico, enquadra-se perfeitamente na simbólica do estilo adoptada pelos construtores da época. Na arquitectura gótica, a rosácea associa o simbolismo da rosa (que no rosacrucianismo evoca o Graal e a redenção), com o da roda. A roda lembra a necessidade da libertação das condições impostas pelo lugar em que se nasce e pelo estado espiritual que lhe está associado por via da lei de causa-e-efeito. É, por isso, uma referência à necessidade de evolução do espírito.»


Mosteiro de Alcobaça - Refeitório, fot. de Stuart Litoff.

Mosteiro de Alcobaça - Claustro do Silêncio, fot. de C. Rozay.

Mosteiro de Alcobaça - Interior, lavatório, fot. de Manuel Alende Maceira.

Mosteiro Alcobaça - Rosácea do túmulo de D. Pedro.
Note-se que quase todas as figuras humanas foram decapitadas.
A maior parte dos actos de vandalismo contra o mosteiro e os túmulos de Pedro e Inês foram perpetrados durante as Invasões Francesas e, posteriormente durante a Revolução Liberal.

Planta do Mosteiro de Alcobaça - Portugal Monumental, via Correio da Manhã.

Planta da Sala dos Túmulos no Mosteiro de Alcobaça - Portugal Monumental, via Correio da Manhã.
Embora no presente, os túmulos de D. Pedro e D.ª Inês se encontrem frente a frente, tal como a lenda pretende, a disposição inicial era lado a lado. Segundo a lenda, D. Pedro teria mandado colocar os túmulos frente a frente para que no dia do Juízo Final, quando ambos ressuscitassem dos mortos (admitindo que ambos eram seres imaculados) o primeiro ser que cada um visse fosse o outro que estava à sua frente.

Mosteiro de Alcobaça, entre finais do século XVIII e início do século XIX.

Em 2018, Ano Europeu do Património Cultural, realizou-se o II Congresso Internacional
sobre os Mosteiros Cistercienses.





Sem comentários:

Enviar um comentário