A SUPREMACIA DE CISTER
D. Afonso IV foi dos poucos reis
(anteriores à Revolução Liberal, séc. XIX) que tiveram a coragem de retirar
bens e / ou privilégios às ordens religiosas que rivalizavam em riqueza e poder
com a nobreza e a própria realeza. Contrariamente, a Ordem de Cister foi
especialmente favorecida por D. Pedro I (ele e D.ª Inês estão sepultados no
maior mosteiro da ordem, em Alcobaça, promovido a panteão régio por D. Pedro),
não sendo, por isso, de admirar a lealdade ao seu protector e a sanha contra
quem lhes retirou privilégios. A proeminência desta ordem e dos seus dirigentes
fica desde logo evidente no rol de epítetos que se juntam ao nome do Abade
Geral da Ordem de Cister:
«Dom
Fr. Paulo de Britto D. Abbade do Real do Mofteyro de Santa Maria de Alcobaça da
Ordem de Cisfter, Senhor Donatário, & Capitão-mor das Villas de Alcobaça,
Aljubarrota, Alfeyzaraõ, Alvorninha, Pederneyra, Santa Catharina, Paredes,
Côs, S. Martinho, Selir do Mato, Mayorga, Évora, Cella, Turquel, & mais
Lugares, & Povoaçoens de feus termos dos Coutos do dito Mofteyro, do
Confelho de Sua Mageftade, & feu Efmoler môr, Geral, & Reformador da
Congregação de S. Bernardo neftes Reynos, & Senhorios de Portugal, &
Algarves, &c.» Veja-se, por exemplo, a Chronica de Cister, de Frei Bernardo de Brito (1602), ele próprio
um cisterciense, co-autor da monumental obra Monarquia Lusitana.
No segundo volume da História das Ordens Monásticas em Portugal, de Manuel Bernardes
Branco, 1888, são enumerados alguns dos privilégios do Abade Geral da Ordem de
Cister (vide págs. 460-461 e 463-467).
Os excertos que se seguem comprovam bem como a Ordem de Cister era ambiciosa e
ciosa dos privilégios conquistados. Como em quase todas as citações, foi
mantida a grafia original, os destaques a vermelho são uma opção minha:
«Em quanto esmoler mór tem os do abbade d'Alcobaça logar em cortes do mesmo posto dos outros officiaes mores da casa real.
O mesmo nas mais funcções publicas, como são embaixadores de Príncipes, levantamentos do novo Rei, bautismo das pessoas reaes, e em outras similhantes, nos quaes assiste como creado da casa; e para isso é avisado pela secretaria do estado do dia e hora certa.
Tem mais aposentadoria para si, e
seus creados nas villas e cidades do Reino, por onde passa, pelo regimento do aposentador mór.
Por esmoler mór se costuma dar senhoria aos D. Abbades de Alcobaça, como aos mais creados
da casa real.
Tem d'elrei cincoenta e dois mil
réis por anno; e o escrivão da Esmolaria de seu ordenado vinte mil réis.
E como o dom abbade esmoler mór deve fazar
a residência
pessoal no seu mosteiro de Alcobaça de que é prelado, e em razão do outro seu officio de geral tem
muitos negócios e visitas da Congregação, a que é preciso assistir; por todas estas razões houveram por
bem os
Reis, que
elles abbades apresentassem um monge da sua casa, honesto, e a aprazimento dos
Reis, o qual, em nome e ausência somente dos ditos abbades, servisse por elles
de esmoler mór, e seguisse sempre a corte. Apresenta-os o dom abbade por
escripto, e el Rei lhes manda passar sua carta de confirmação em forma.»
(…)
«No tempo dos abbades prepetuos sempre serviram em seu nome
monges professos d'Alcobaça, e ora isto é cousa tão assentada entre todos, que
no tempo do primeiro administrador D. George da Costa, por muito que desejou
descompô-lo el-Rei D. João II, não levou ao fim despojar a real Abbadia d'esta sua
preheminencia.»
(…)
«Quando el-rei manda fazer por sua conta alguma gente de guerra
nas terras do Mosteiro, primeiro por sua carta especial o faz saber ao dom abbade, e lhe insinua a razão
motiva, porque manda fazer a tal gente.
Doutra sorte, e sem vir primeiro esta
carta não consentem os monges que se levante gente, nem que entre nas suas
terras a paga-la ministro algum da milícia, por mais apertadas ordens que traga.»
(…)
«El Rei D. João IV mandou restituir ao monge d' Alcobaça todas as
terras e haveres que taes monges asseveravam terem-lhes sido doados por El Rei D. Affonso Henriques, embora taes doações
para a critica dos nossos dias, seja mais que duvidosa. Mas o que é certo que os frades foram restituídos à posse das
terras chamadas vulgarmente os Coutos d'Alcobaça, e em terras taes tinham os
abbades mero e mixto império, isto é, no civel, e crime, e todo aquelle
Senhorio, que antes da doação era da Coroa.»
(…)
«A voz que se levantava nas pendências era d’elles; porque se não
appellidava nas terras dos Coutos a voz d'El rei; mas a voz do abbade; e não se
dizia nos arroidos aqui del rei, como hoje uzamos; mas diziam: Aqui do Abbade ou do Mosteiro.
Podiam tambem os D. abbades ir em hoste; isto é, que levantavam gente de
guerra nas suas terras por authoridade próprias quando e como queriam, e pela mesma sua
authoridade mandavam prender e soltar em todas as villas; punham os tabelliâes em
seu nome e não d'elrei: e os removiam, quando queriam porque não eram confirmados pelo príncipe, mas sómente pelo
abbade.
Da mesma sorte os juizes e mais justiças também eram postos e confirmados pelos
abbades.
Passavam alvarás de privilégios a seus creados, ou a quem
queriam,
pelos quaes os faziam isentos dos encargos dos concelhos e das fintas e talhas:
não davam
appellação nem aggravos para el rei, senão nos casos de morte: mas dos juizes se
appellava para o Ouvidor e d'este para o dom abbade; e a sentença que elle dava
era a final e suprema.
Não entravam nas villas dos Coutos ministro d'elrei, mas em logar dos
corregedores punham os D. abbades seu ouvidor e quando lhes parecia era um
monge, o qual e o mesmo abbade
faziam audiência á porta do Mosteiro.»
(…)
«Conservaram-se os D. abbades de Alcobaça n'esta sua grandeza
inteiramente até o tempo d'el-rei D Affonso IV.
E do tempo d'este principe em diante é que se foi alterando
lentamente toda esta soberania e grandeza.
Pois este monarcha (D. Afonso IV) tomou aos monges o senhorio real do mosteiro, ainda que, ao depois, o tornou a restituir seu
filho el-rei D. Pedro I, com tudo na carta da restituição começou já a coartar a
jurisdicção aos abbades, porque mandou que dessem appelação para el-rei; e que os corregedores
da Estremadura entrassem nas villas dos coutos a fazer correição.
«Hoje
por força das palavras da nova doação e confirmação do rei D. João IV teem os
D. abbades de Alcobaça o mesmo Senhorio Real que se contém na primeira doação
d'el-rei D. Affonso Henriques; porém modificado na praxe pelas ordenações do
reino; e muito mais pela razão próxima de serem os dois abbades triennaes».
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