quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

ECOS DA LENDA

 Poemas inspirados na lenda de Pedro & Inês

Pedro & Inês

Poemas


Antes do fim do mundo, despertar,
Sem D. Pedro sentir,
E dizer às donzelas que o luar
E o aceno do amado que há de vir...

E mostrar-lhes que o amor contrariado
Triunfa até da própria sepultura:
O amante, mais terno e apaixonado,
Ergue a noiva caída à sua altura.

E pedir-lhes, depois fidelidade humana
Ao mito do poeta, à linda Inês...
À eterna Julieta castelhana
Do Romeu português.

Miguel Torga, Poemas ibéricos, 1965

(Nota: este Romeu (D. Pedro I) era de facto português, mas esta Julieta (D.ª Inês) era galega, não castelhana)

Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'

Inês morreu e nem se defendeu

Inês morreu e nem se defendeu
da morte com as asas das andorinha
pois diminuta era a morte que esperava
aquela que de amor morria cada dia
aquela ovelha mansa que até mesmo cansa
olhar vestir de si o dia-a-dia
aquele colo claro sob o qual se erguia
o rosto envolto em loura cabeleira
Pedro distante soube tudo num instante
que tudo terminou e mais do que a Inês
o frio ferro matou a ele.
Nunca havia chorado é a primeira vez que chora
agora quando a terra já encerra
aquele monumento de beleza
que pode Pedro achar em toda a natureza
que pode Pedro esperar senão ouvir chorar
as próprias pedras já que da beleza
se comovam talvez uma vez que os humanos
corações consentiram na morte da inocente Inês
E Pedro pouco diz só diz talvez
Satanás excedeu o seu poder em mim
deixem-me só na morte só na vida
a morte é sem nenhuma dúvida a melhor jogada
que o sangue limpe agora as minhas mãos
cheias de nada
ó vida ó madrugada coisas do princípio vida
começada logo terminada.

Ruy Belo


Pedro e Inês

Tu amavas o sol perdidamente
e tudo te pedia um pouco do perfume do pomar
aurora não do dia aurora do amor
alegria tão forte que causava dor
nave de pedra em luz transfigurada
Há cotovias já no teu silêncio
há coisas de outra idade neste dia
que afogentou os rouxinóis da noite
É manhã nas estrelas vai alguém casar
pedra de pedra pedra intensamente
testamento lavrado sendo já alto o serão
alguém casou alguém morreu de amor
após a sua postrimeira dor
Talvez um dia eu volte lá dessa cidade
somente minha e de mais ninguém
A vida era a mágoa para mim que só pedia
a beleza contida num pequeno copo de água
Ninguém profundamente me conhece
nem talvez isso interesse a alguém
e aos íntimos menos que a ninguém
Bailador e monteiro e justiceiro
pedro primeiro pedro derradeiro

Ruy Belo, “A Margem da Alegria”, 1973, (fragmento final) in Obra Poética de Ruy Belo, vol.2, Ed. Presença


Soneto de Inês

Dos olhos corre a água do Mondego
os cabelos parecem os choupais
Inês! Inês! Rainha sem sossego
dum rei que por amor não pode mais.

Amor imenso que também é cego
amor que torna os homens imortais.
Inês! Inês! Distância a que não chego
morta tão cedo por viver demais.

Os teus gestos são verdes
os teus braços são gaivotas poisadas no regaço
dum mar azul turquesa intemporal.

As andorinhas seguem os teus passos
e tu morrendo com os olhos baços
Inês! Inês! Inês de Portugal.

José Carlos Ary dos Santos, in Poemas de Ary dos Santos

Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'

 
CHOVE!

Chove... Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta«
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira, in As Tormentas


A Ferida inesgotável

Na combustão de Inês a cânfora como se
sob a oxidação da luz o cordão umbilical
agora o amor prefigura-nos melhor sobre
as águas as pedras da fonte continuam
desencarnadas nos golfos do crime

as águas ainda na exatidão enregelada das
lâminas nos veios cintilantes da sílaba
o poema íngreme no equilíbrio do sangue
a fulguração do fogo inteiramente vencido
nas mãos do assombro sob os líquidos a
clara magnólia inteira a ferida ainda fresca.

João Rasteiro, in Triplov.org

Da triste, bela Inês

Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos céus andas pedindo
justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se ainda na fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morta formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza, e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa
A malfadada Inês na sepultura.
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos céus andas pedindo
justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se ainda na fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morta formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza, e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa
A malfadada Inês na sepultura.


Bocage

 

A lamentável catástrofe de D. Inês de Castro

Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos Céus andas pedindo
Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se inda na Fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morte formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c'roa
A malfadada Inês na sepultura.

Bocage

Inês de Castro.
(In Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza,
Tomo I, Pedro José de Figueiredo, 1762-1826, Lisboa, 1817). 

 

A Ulina
Soneto dedicatório


Da miseranda Inês o caso triste
Nos tristes sons, que a mágoa desafina,
Envia o terno Elmano à terna Ulina,
Em cujos olhos seu prazer consiste.

Paixão, que, se a sentir, não lhe resiste
Nem nos brutos sertões alma ferina,
Beleza funestou quase divina,
De que a memória em lágrimas existe.

Lê, suspira, meu bem, vendo um composto
De raras perfeições aniquilado
Por mãos do Crime, à Natureza oposto.

Tu és cópia de Inês, encanto amado;
Tu tens seu coração, tu tens seu rosto...
Ah!, defendam-te os Céus de ter seu fado!


Bocage

Longe do caro esposo Inês formosa


Longe do caro Esposo Inês formosa
Na margem do Mondego
As amorosas faces aljofrava
De mavioso pranto.
Os melindrosos, cândidos penhores
Do tálamo furtivo,
Os filhinhos gentis, imagem dela,
No regaço da mãe serenos gozam
O sono da inocência.
Coro subtil de alígeros Favónios
Que os ares embrandece,
Ora enlevado afaga
Com as plumas azuis o par mimoso,
Ora solto, inquieto,
Em leda travessura, em doce brinco,
Pela amante saudosa,
Pelos ternos meninos se reparte,
E com ténue murmúrio vai prender-se
Das áureas tranças nos anéis brilhantes.
Primavera louçã, quadra macia
Da ternura e das flores,
Que à bela Natureza o seio esmaltas,
Que no prazer de Amor ao mundo apuras
O prazer da existência,
Tu de Inês lacrimosa
As mágoas não distrais com teus encantos.
Debalde o rouxinol, cantor de amores,
Nos versos naturais os sons varia;
O límpido Mondego em vão serpeia
Co'um benigno sussurro, entre boninas
De lustroso matiz, almo perfume;
Em vão se doira o Sol de luz mais viva,
Os céus de mais pureza em vão se adornam
Por divertir-te, ó Castro;
Objectos de alegria Amor enjoam,
Se Amor é desgraçado.
A meiga voz dos Zéfiros, do rio,
Não te convida o sono:
Só de já fatigada
Na luta de amargosos pensamentos
Cerras, mísera, os olhos;
Mas não há para ti, para os amantes
Sono plácido e mudo;
Não dorme a fantasia, Amor não dorme:
Ou gratas ilusões, ou negros sonhos
Assomando na ideia, espertam, rompem
O silêncio da Morte.
Ah!, que fausta visão de Inês se apossa!
Que cena, que espectáculo assombroso
A paixão lhe afigura aos olhos d'alma!
Em marmóreo salão de altas colunas,
A sólio majestoso e rutilante
Junto ao régio amador se crê subida;
Graças de neve a púrpura lhe envolve,
Pende augusto dossel do tecto de oiro,
Rico diadema de radioso esmalte
Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;
Nos luzentes degraus do trono excelso
Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
A lisonja sagaz lhe adoça os lábios;
O monstro da política se aterra
E, se Inês perseguia, Inês adora.
Ela escuta os extremos,
Os vivas populares; vê o amante
Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;
O prazer a transporta, amor a encanta;
Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio
Magnânima confere;
Rainha esquece o que sofreu vassala:
De sublimes acções orna a grandeza,
Felicita os mortais; do ceptro é digna,
Impera em corações... Mas, Céus! Que estrondo
O sonho encantador lhe desvanece!
Inês sobressaltada
Desperta, e de repente aos olhos turvos
Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
Ministros do Furor, três vis algozes,
De buídos punhais a dextra armada,
Contra a bela infeliz, bramando, avançam.
Ela grita, ela treme, ela descora;
Os frutos da ternura ao seio aperta,
Invocando a piedade, os Céus, o amante;
Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto,
À suave atracção da formosura,
Vós, brutos assassinos,
No peito lhe enterrais os ímpios ferros.
Cai nas sombras da morte
A vítima de Amor lavada em sangue;
As rosas, os jasmins da face amena
Para sempre desbotam;
Dos olhos se lhe some o doce lume;
E no fatal momento
Balbucia, arquejando: «Esposo! Esposo!»
Os tristes inocentes
À triste mãe se abraçam,
E soltam de agonia inútil choro.
Ao suspiro exalado,
Final suspiro da formosa extinta,
Os amores acodem.
Mostra a prole de Inês, e tua, ó Vénus,
Igual consternação e igual beleza:
Uns dos outros os cândidos meninos
Só nas asas diferem
(Que jazem pelo campo em mil pedaços
Carcases de marfim, virotes de oiro).
Súbito voam dois do coro alado:
Este, raivoso, a demandar vingança
No tribunal de Jove;
Aquele a conduzir o infausto anúncio
Ao descuidado amante.
Nas cem tubas da Fama o grão desastre
Irá pelo Universo.
Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres;
No torrado sertão da Líbia fera,
As serpes, os leões hão-de chorar-te.
Do Mondego, que atónito recua,
Do sentido Mondego as alvas filhas
Em tropel doloroso
Das urnas de cristal eis vêm surgindo;
Eis, atentas no horror do caso infando,
Terríveis maldições dos lábios vibram
Aos monstros infernais, que vão fugindo,
Já c'roam de cipreste a malfadada,
E, arrepelando as nítidas madeixas,
Lhe urdem saudosas, lúgubres endeixas.
Tu, Eco, as decoraste,
E, cortadas dos ais, assim ressoam
Nos côncavos penedos, que magoam.

Bocage

Inês de Castro.
(In Idyllios dos reis, Alberto Pimentel, 1849-1925, 
Empreza Litteraria de Lisboa, Lisboa, 1886).

Toldam-se os ares


«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores;
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.

«Mísero esposo,
Desata o pranto,
Que o teu encanto
Já não é teu.

«Sua alma pura
Nos Céus se encerra;
Triste da Terra,
Porque a perdeu.

«Contra a cruenta
Raiva íerina,
Face divina
Não lhe valeu.

«Tem roto o seio
Tesoiro oculto,
Bárbaro insulto
Se lhe atreveu.

«De dor e espanto
No carro de oiro
O Númen loiro
Desfaleceu.

«Aves sinistras
Aqui piaram
Lobos uivaram,
O chão tremeu.

«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores:
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.»

Bocage in Cantata à Morte de Inês de Castro (excerto)

******************** 


A linda Inês de manto

Teceram-lhe o manto
para ser de morta
assim como o pranto
se tece na roca

Assim como o trono
e como o espaldar
foi igual o modo
de a chorar

Só a morte trouxe
todo o veludo
no corte da roupa
no cinto justo

Também com o choro
lhe deram um estrado
um firmal de ouro
o corpo exumado

O vestido dado
como a choravam
era de brocado
não era escarlata

Também de pranto
a vestiram toda
era como um manto
mais fino que a roupa

Fiama H. P. Brandão, in Obra Breve, Barcas Novas, 1967

Memória


Inês, Inês,
O tempo fere mais que o sangue!
Inês em nós,
Amor que as pedras amacia.
Memória, lume vivo,
Eterna melodia.
Águas do Mondego,
Que grito fatal vos rasgou o leito?!
Amor nascido sem medo,
Por isso verdadeiro.
Doces no passar ameno,
Madrigais de silêncio,
Soluços de nunca mais
Despertando ervas frias,
Testemunhas de punhais.


Eduardo Aroso in Habitante Sensível, Universitária Editora, 1997


Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'

*********************************

Cancioneiro de Coimbra, Afonso Lopes Vieira, 1878-1946, França Amado, Coimbra, 1918

GARCIA DE RESENDE

TROVAS À MORTE DE DONA INÊS DE CASTRO

que el rei Dom Afonso o quarto, de Portugal, matou em

Coimbra, por o príncipe Dom Pedro, seu filho, 

a ter como mulher, e, pelo bem que lhe queria, não queria casar 


ENDEREÇADAS À DAMAS

Senhoras, se algum senhor
vos quiser bem ou servir
quem tomar tal servidor,
eu lhe quero descobrir
o galardão do amor.
Por sua mercê saber
o que deve de fazer,
veja que fez esta dama
que de si vos dará fama
se estas trovas quereis ler.

FALA DONA INÊS

Qual será o coração
tão cru e sem piedade,
que lhe não cause paixão
uma tão grande crueldade,
e morte tão sem razão! 
Triste de mim, inocente,
que por ter muito fervente
lealdade, fé, amor
ao príncipe, meu senhor,
me mataram cruamente.

(...)

 

TEATRO NA ESCOLA XXXIV

 

A Flor da Alma

Pedro & Inês – Movimentos de Amor

 Pedro & Inês – Movimentos de Amor, performance de Movimento e Voz inspirada na história de D. Pedro I e D.ª Inês de Castro e em tantas outras histórias de amor e desamor. Encenação / Coreografia de Victor Sezinando. Fotografia & vídeo de São Ludovino. Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 21/2/2020.

     No palco, vimos uma encenação, de Victor Sezinando, ao mesmo tempo simples e envolvente, crua e pungente, antiga e intemporal, sobretudo pela variedade de elementos que foram muito além da interpretação de um texto. O texto, na verdade, era inexistente, nem sequer foi uma colagem de várias versões desta tragédia. Foi mais a construção de um puzzle feito de silêncios, canto, dança e interpretação. A cada espectador coube o papel de combinar as “peças” como entendesse; mas qualquer que fosse a opção, a omnipresença de Pedro e Inês fez-se sentir ao longo de toda a performance. O lirismo trágico foi o sentimento dominante na luz, nas cores, nos gestos e no canto.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

     A luz, tendendo quase sempre para o vermelho, anunciou e sublinhou a dor, a perda, a morte iminente: a brancura das saias foi a marca da pureza ondulando e acompanhando os passos; as vendas brancas lembraram como o amor é ou quer ser cego para que a felicidade perdure mesmo que por breves instantes; o retirar das vendas é o prenúncio da tragédia quando já é impossível não ver o que está diante dos olhos. Os apontamentos de canto e música percorrem diversas épocas, mudando os acordes, permanecendo a força motriz intemporal do amor. Os gestos delicados de Inês, os breves passos de dança, a correria da fuga de uma ameaça que não se pode aplacar, acompanhada pelo dramatismo dos sons altissonantes e pungentes, sucederam-se de uma forma que podiam contar só por si toda a história. O diálogo silencioso entre Pedro e Inês, que se faz de olhares, gestos, dança dizendo tudo o que haveria a dizer sem uma única palavra. O carregar do corpo morto de Inês, finalmente sentada num trono, que não é terreno nem material; os passos cadenciados dos cortesãos que se vergam perante o cadáver de Inês e lhe beijam a mão, como se tudo estivesse de facto escrito e ninguém pudesse fugir ao destino, os que partem e os que ficam. A combinação de todos estes ingredientes resultou num espectáculo de emoções fortes, visualmente belo e coerente.

     Mais uma vez, só me resta aplaudir o trabalho de todos, encenador e intérpretes, e esperar pelo próximo trabalho. Uma enorme vénia para todos!


Pedro & Inês - Movimentos de Amor, Encenação de Victor Sezinando


     Abaixo, fica um poema (Flor da Alma – Maior do que o Mundo) que esta performance me inspirou.

 

Encenação & Coreografia / Staging & Choreography

Victor Sezinando

 Elenco / Cast

Beatriz Fachina 
Bernardo Ferreira
Carolina Gomes
Carolina Teodoro
Elói Pina
Florbela Figueiredo
Gabriela Rubio
Gonçalo Alves
Joana Abreu
Joana Costa
Joana Sousa
Mariana Silva
Marta Mateus
Maria Pratas
Maria Pinheiro
Nelma Barreto
Patrícia Barbosa
Rodrigo Lencastre
Rodrigo Marques
Sandra Sofia
Yannick Gomes

 Sonoplastia

Carolina Miguel

Luz

Neuza Velez

Frente de Sala

Florbela Figueiredo

Fotografia & vídeo

São ludovino

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A Flor da Alma

Maior do que o Mundo


A flor da alma ergueu-se do seu leito terreno
Abraçou as aves e as nuvens e rumou ao azul distante.
Descalça sentiu nas raízes a chuva, o calor e o frio
Caminhou por entre as florestas e os desertos
Atravessou as planícies mais férteis
Banhou-se nas cascatas ainda puras
Percorreu aldeias e cidades
Povoados silenciosos
Ouviu multidões ruidosas
Cantou e dançou com tribos festivas
Até chegar junto ao mar
Um mar antigo que mora no alto das montanhas.
Nem uma pétala perdeu pelo caminho.
Por entre a poeira
Ficaram apenas os espinhos.

Nas águas cristalinas mergulhou
E as pétalas abriram-se em círculo flutuante
E toda a cor se enlaçou na transparência
E todo o sal rebrilhou no céu estrelado.

Sem pressa de viver
A eterna borboleta pousou-lhe no veludo vermelho.
São velas as pétalas que deslizam por entre os dedos do vento.
Navega lá longe noutro mar
A flor que de tão vermelha não cabia na Terra.

Pelas noites dentro
Pelos dias afora o barco-flor-coração
Aparece nos olhos cansados do jardineiro.
Ele olha o céu do crepúsculo
Estende os braços e recebe no peito
O beijo eterno da rosa poente.
Levanta-se no dia seguinte
E a rosa amanhece-lhe na alma
Desperta cada centelha de vida
Devolve a luz ao círculo do horizonte…

São Ludovino, 23/2/2020 

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The Soul Flower

Bigger than the World

 

The soul flower rose from its earthly bed
Embraced the birds and the clouds and headed for the distant blue.
Barefoot she felt in the roots the rain, the heat and the cold
Walked through forests and deserts
Crossed the most fertile plains
Bathed in the still pure waterfalls
Coursed through villages and cities
Silent boroughs 
Heard noisy crowds
Sang and danced with festive tribes
Until she got to the sea
An ancient sea that lives high in the mountains.
Not a petal lost along the way.
Amid the dust
Only the thorns remained.

In the crystal clear waters she plunged
And the petals opened in a floating circle
And all the color intertwined in the transparency
And all the salt twinkled in the starry sky.

With no rush to live
The eternal butterfly landed on the red velvet.
Sails are the petals that slide through the fingers of the wind.
Far away she sails away in another sea
The flower that was so red it didn't fit on Earth.

Through the nights
Throughout the days the boat-flower-heart
It appears in the gardener's tired eyes.
He looks at the twilight sky
Stretches his arms and receives on his chest
The eternal kiss of the setting rose.
Gets up the next day
And the rose dawns in his soul
Awakens every spark of life
Returns the light to the horizon circle...

São Ludovino, 23/2/2020


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Texto que acompanha o vídeo:

Num Mundo de desamor, tudo passa veloz
Como areia numa ampulheta.
Num Mundo passageiro só o Amor é eterno
Quando vem, fica, perdura
Nas estrelas, na alma, no dia que passa...

******************

In a World of unlove, everything goes by swiftly
As sand in an hourglass.
In a fleeting World only love is eternal
When it arrives, stays, lasts
In the stars, in the soul, in the day that goes by…

São Ludovino, 23/2/2020

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Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.

Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.





 

TEATRO NA ESCOLA XXXIII

A Medida da Vida

 Leandro, Rei da Helíria, peça de Alice Vieira interpretada pelos alunos de Artes do Espectáculo (10.º 13) da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 7/2/2020. Encenação: Victor Sezinando. Captação de imagem e montagem de vídeo: São Ludovino.

     Todas as histórias nascem do seio da vida, de uma forma ou outra. Os primeiros mitos, as primeiras lendas, as primeiras epopeias nasceram de vivências reais e do modo como o Mundo foi interpretado num dado momento da História e da vida real dos povos. Crenças, saber e imaginação formaram o molde primordial. Lá dentro os povos verteram o seu próprio ser colectivo, mesmo que as primeiras palavras tenham saído de uma única boca. Nos contos e lendas, o individual e o colectivo tornam-se indistintos logo que cada voz se apropria deles.

     Antes de existirem escolas e instrução pública, antes da filosofia e da ética, do direito e da política, essas narrativas anónimas, que teimam em não morrer, revelaram, ensinaram, separaram o bem do mal, sintetizaram o essencial e mostraram caminhos aos anciãos e aos aprendizes, ao rei e ao escravo. Por isso, encontramos estas narrativas nos quatro cantos do mundo, são intemporais e universais. Revelam afinidades e cristalizam diferenças. A matriz é humana, a expressão diversa, o horizonte ideal e fantástico. E assim, sem alterar de modo radical a face do Mundo, construíram outros mundos, outros modos de ver e viver, denunciaram poderosos, fizeram justiça metafórica, subverteram a ordem social, esboçaram utopias, tudo em simples histórias. Através da palavra, o bem venceu o mal e a injustiça; o desconcerto, o absurdo, o desequilíbrio da ordem social, as assimetrias materiais, culturais e éticas, os actos prepotentes dos intocáveis foram banidos ou punidos por quem não tinha poder nenhum.  

     O conhecido e o desconhecido, a realidade e a fantasia, os factos e as lendas, os sonhos e as utopias entrelaçaram-se e continuaram a viver de modo indistinto nas histórias populares ou eruditas. Homero registou por escrito (Odisseia e Ilíada) as histórias e as lendas que já corriam há gerações de boca em boca. Garrett fez o mesmo no Romanceiro, tal como já o tinha feito Herculano nas Lendas e Narrativas, e, já antes dele, Gonçalo Fernandes Trancoso o tinha feito nos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575). Os Românticos (tal como Herculano ou Garrett) aperceberam-se disso melhor do que ninguém. Perceberam que cabia aos doutos ouvir a voz do povo, preservá-la, recriá-la e dar-lhe uma nova vida e um novo fôlego. Cada novo tempo recria o antigo com novas roupagens, novas linguagens e propósitos.

     Os Realistas e Positivistas, como Teófilo Braga, continuaram o trabalho de recolha dos contos tradicionais que perduravam na cultura popular. O conto número 50 dos Contos Tradicionaes do Povo Portuguez, de Teófilo Braga (1883), intitula-se O Sal e a Água (ou Comida Sem Sal) e narra uma história idêntica à que encontramos em Leandro, Rei da Helíria. Retoma, de certo modo, a lenda do Rei Leir (Rei Lear) que já aparecia no Nobiliário de D. Pedro, Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis. Narrativas idênticas aparecem na cultura popular de todos os cantos do mundo. 

     A história subjacente ao enredo da peça Leandro, Rei da Helíria, de Alice Vieira, tem a mesma origem, lá longe no tempo onde a história e a lenda se fundem, tal como o próprio Rei Lear, de Shakespeare, que se inspirou em velhas lendas britânicas. Este é pois um texto dramático feito de múltiplos ecos que vêm de um passado indefinido e longínquo e se prolongam em múltiplos presentes. Até na própria sonoridade do título encontramos o eco do nome de Lear (ou Leir): no próprio nome Leandro e no nome do reino de Helíria em que ressoa o nome de Hélade (região central da Antiga Grécia) ou Hélios (deus do Sol) mas também Lear (o rei trágico, traído pelas próprias filhas a quem entregou o reino) e lírio (a flor, símbolo da pureza e da inocência), que neste conto não é um lírio mas uma violeta.

     Nesta história, Leandro, rei da Helíria, está velho e pressente o seu fim. Um sonho inquietante e premonitório mostra-lhe que o seu reino está prestes a perecer e o seu poder real a desvanecer-se. Desabafa com o Bobo, mostra-lhe o seu medo, a angústia de sentir que tudo terá um fim próximo e ele nada pode fazer, apesar de ser rei. A transitoriedade da vida faz-se anunciar com a velhice e mostra-lhe como tudo passa: o poder, a riqueza, a solidez do reino. Tenta ancorar-se no amor das três filhas (Amarílis, a mais velha, Hortênsia, a filha do meio, e Violeta, a mais nova). Num enganador exercício de egocentrismo, tenta averiguar a medida do amor de cada uma: quanto o amam, afinal, e qual delas o ama mais. A hipocrisia e dissimulação das duas mais velhas, acompanhadas pelas hipérboles da lisonja bem-falante, convencem-no de que é amado por elas acima de todas as coisas. A simplicidade e sinceridade da mais nova chocam-no («Quero-vos como a comida quer ao sal.») Prefere a bela superficialidade das palavras lisonjeiras à simplicidade da verdade.

     Tal como não consegue interiorizar verdadeiramente a ideia de que tudo é efémero (o poder, a riqueza material, a própria vida) também não percebe que os verdadeiros sentimentos não se escondem sob máscaras, são simples e autênticos, transcendem as palavras e o jogo das aparências. Medir o amor das filhas é uma forma vã de ludibriar a finitude de tudo e se convencer que, se for amado acima de todas as coisas, continuará a ser poderoso e imperecível. Está certo e errado. O amor verdadeiro não morre, mas o “amor interesseiro morre quando acaba o interesse”. Depois de dividir o reino entre as duas filhas mais velhas, acaba por ser repudiado por elas, que não têm paciência para “aturar velhos”. Deambula durante longo tempo por montes e vales, sempre acompanhado pelo Bobo, até chegar a um reino muito diferente (o reino de Reginaldo e Violeta, a filha mais nova). Nesse reino não há pelourinhos ou chibatas, não há escravatura, cada um é livre de pensar e ser quem é e as portas do palácio real abrem-se para todos.    

     Se o ponto de partida é uma história da tradição popular (um rei tenta medir o amor das filhas por si, acabando por repudiar a mais nova, a única que realmente o amava), o curso da peça percorre muitos outros caminhos. Mais do que a “lição de vida” ou a “lição moral” dos contos tradicionais, o mais importante é o confronto entre múltiplas visões da vida, condicionadas quer pelo carácter das personagens quer pelo meio social que representam. Ao longo de toda a acção, o Bobo comenta os acontecimentos, reflecte, critica e satiriza à maneira de certas personagens vicentinas. Adapta-se, porque não pode mudar o Mundo radicalmente (Bobos e Reis não podem trocar verdadeiramente de lugar, como o Rei diz desejar em certo momento de desespero), e contesta jocosamente porque essa é a única forma de provocar a mudança possível. Ele é o crítico do rei mas também o seu guia. Revela simplicidade e sabedoria, lirismo e sarcasmo, a persistência e o optimismo dos pessimistas, acreditando que a longa caminhada, a fome e a intempérie, a escuridão da gruta do pastor onde se abriga com o rei o hão-de levar a um desenlace feliz e redentor.

     Enquanto o Bobo mantém a lucidez, o rei parece alucinado. Esfomeado e envolto em andrajos ainda lhe perpassa pela mente a ilusão de ser rei e poderoso, de ter ainda o seu reino e poder fazer “justiça” com as próprias filhas que o escorraçaram. Logo a seguir nega sequer ter filhas, apenas tem um reino onde regressará. E assim, sem haver efectivamente troca de papéis sociais, o rei torna-se bobo e o Bobo torna-se rei. É ele, o Bobo-Rei, que mostra o caminho e conduz Leandro, o Rei-Bobo, à redenção possível. Não é o rei que faz “justiça”, é Violeta, a filha banida, que sem chibatas nem pelourinhos, mostra a evidência da verdade, a única que realmente importa, a justiça possível. Servindo ao rei, seu pai, sucessivos pratos cozinhados sem sal, mostra aquilo que realmente lhe fazia falta: o amor que, mesmo invisível e simples, tudo transformava. Este é, pois, mais um conto sobre o egoísmo, o perigo das aparências e o poder transformador do amor, o verdadeiro, o único que pode ser chamado amor. 

Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.

     No palco, despojado, simétrico e minimalista, o Bobo e Leandro, são os principais interlocutores, mas o verdadeiro protagonista é o amor personificado por Violeta. Veste-se da cor das violetas, é sincera e emotiva. O roxo, que simboliza a paixão, o sofrimento (a cor do manto de Cristo prestes a ser crucificado), prenuncia desde logo o triste fado que a espera. Nem por um momento vacila, aceita a desdita e a injustiça e segue o seu caminho, que será futuramente bem mais auspicioso do que o do pai que a repudiara. 

     As irmãs mais velhas, Amarílis e Hortência, surgem como caricaturas de si mesmas. De modos enfatuados, deixam transparecer nos gestos e nas palavras a dissimulação, o calculismo, a frivolidade e a ambição. Os seus pretendentes, os príncipes Felizardo (noivo de Amarílis, a mais velha) e Simplício (noivo de Hortênsia, a irmã do meio) são também caricaturas e tipos sociais. Felizardo é um novo-rico sem grandes princípios que mede o seu próprio valor pelo montante dos seus bens. Simplício é, como o nome indica, um indivíduo simplório com capacidades intelectuais limitadas e pouquíssima assertividade, limitando-se a corroborar o que os outros dizem com uma única frase, que repete até à exaustão, até se tornar uma bengala anedótica: «Tiraste-me as palavras da boca». Estes pretendentes não são relevantes em si mesmos, apenas enfatizam o carácter das irmãs, fazendo o espectador exclamar interiormente: “Os pares perfeitos para estas duas donzelas!»


Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.

     O único que parece conhecer tudo e todos desde o início é o Bobo. Aparece vestido como o tradicional “bobo do rei”, diz graçolas e faz cabriolas, mas também age e fala com perspicácia e discernimento, sobretudo quando se dirige ao rei e avalia a sua conduta. Por isso, a acção vai muito além da medida dos afectos; é uma história sobre a medida da própria vida e as vicissitudes da condição humana, sobre os governantes e os governados. Sem os comentários do Bobo, as relações sociais, a fragilidade de toda a matéria e todo o poder, a busca do próprio sentido da vida perder-se-iam numa história de ambição e ingratidão em que o cerne é sempre o carácter e o amor.

     Alice Vieira (re)escreveu esta história sob a forma de um texto dramático em que funde a linguagem tradicional com a intemporalidade das relações sociais. Esta encenação, de Victor Sezinando, combina estas mesmas nuances, a linguagem e os modos de outrora e os figurinos, atitudes e fundo musical de agora.

     Os jovens intérpretes, que se encontram no primeiro ano do curso de Artes do Espectáculo, corresponderam com empenho à especificidade dos seus papéis, mantendo-se entre a contenção, que permite que o outro fale e seja visto, e o exagero do tom e dos gestos que contribuíram para acentuar a comicidade de algumas situações e das personagens em si mesmas. O resultado final foi o de um espectáculo completo, unindo o entretenimento às emoções humanas e à reflexão introspectiva. Uma respeitosa vénia para o encenador e todos os participantes. Continuem empenhados e certamente terão ainda muito para dar!

São Ludovino, 9/2/2020

Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.

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Leandro, Rei da Helíria - Encenação de Victor Sezinando

Encenação / Staging

Victor Sezinando

 Elenco / Cast

Rei - Sandro Brandão
Bobo - Marta Gomes
Hortênsia - Luana Lobo
Amarílis - Jéssica Gomes
Violeta - Rafaela Cruz
Príncipe Felizardo - Luana Santos (noivo de Amarílis)
Príncipe Simplício - José Barata (noivo de Hortênsia)
Príncipe Reginaldo - Márcia Carvalho
Pastor, Conselheiro, Arauto & Escrivão - Sofia Nunes
Aias - Joana Martins & Érica Soutelos

Fotografia & Vídeo

São Ludovino

 

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     Seguem-se algumas páginas do Diário de Um Idiota, escritas cerca de três meses após ter assistido à peça. Podia ter escrito muitas mais páginas. Estas linhas são apenas uma pequena manifestação de solidariedade para com o Bobo do Rei da Helíria, um ser que nada tem de insignificante embora seja permanentemente tratado como se fosse “ninguém”.

 

DIÁRIO DE UM IDIOTA

(fragmentos)

 

* Dia de ventania, poeira e frutos silvestres

     Pouco importa que dia é hoje. Os pensamentos não se sujeitam à cronologia dos calendários ou à cadência das horas canónicas. Quando muito, sujeitam-se à cadência dos passos do meu amo e ao desvario das suas alucinações.

     Não é doido, bem sei, nem sequer é tido por crédulo ou idiota. Por definição o idiota sou eu. E ainda bem que assim é, pois é desse estatuto que me advém a pouca liberdade de que efectivamente disponho nos meus dias. Só os meus pensamentos continuam livres. Ora são um vendaval que tento amainar, ora são grãos de poeira que me fazem chorar.

     ― Porque choras? ― Pergunta o meu amo. ― Tu não tens preocupações, nada tens, nada perdes e nada ganhas…

     ― É só a poeira dos vossos passos que entra para os meus olhos quando caminho atrás de vós.

     ― Ora, ainda bem que caminhas atrás ou seria eu a receber a tua poeira.

     ― Mas poderia eu caminhar a vosso lado, majestade? Ainda mais sendo o vosso guia… Como posso guiar-vos ou amparar os vossos passos incertos, se escondeis de mim o horizonte? ― Perguntei-lhe.

     ― O horizonte só a mim pertence. Sou eu o rei e senhor de todas as terras e caminhos…

    Pobre diabo, nem sabe para onde caminha. Anunciei-lhe que se aproximava a hora do almoço e afastei-me para colher amoras. Caminhei bem adiante dele. Olhei-o coberto pelos seus andrajos e não vi rei algum em parte alguma. Mas eu sou um pobre idiota com um coração mole, um idiota sem qualquer credibilidade. Nunca menti na minha vida. Ainda assim, todos tomam por patranhas e graçolas as minhas palavras mais sinceras.

     Sua majestade almoçou uma mão-cheia de amoras, sentado numa pedra a meu lado, sempre convencido de que estava à minha frente. Só em movimento, enquanto caminhamos por algum caminho, se pode dizer que um vai à frente e o outro vai atrás… e apenas se for o caminho certo… ou então será tudo ao contrário. Mas quando nos sentamos, imóveis, sob alguma árvore, ninguém conseguiria dizer quem está à frente e quem está atrás.

     Respirei fundo e saboreei a minha mão-cheia de amoras, em nada menos saborosas ou nutritivas do que as que dei ao meu amo.

 

* Dia de falar com as pedras e abençoar o Sol

 

     Depois de muitas horas caminhando sob a chuva, tinha a roupa ensopada e os ossos enregelados. O meu amo ia praguejando enquanto tropeçava em quase todas pedras do caminho. Eu preferia contorná-las ou chutá-las para a berma, um método fácil de evitar a dor e alguma queda de consequências imprevisíveis. Lembrei-me de um dos sonhos do meu amo: caminhava pelas veredas do jardim do seu palácio, muito limpas e aplanadas. Ainda assim, a cada passo que dava, sentia que pedras pontiagudas lhe rompiam as solas dos sapatos de couro e veludo e lhe penetravam na carne, deixando-lhe os pés cobertos de feridas. Na altura, observei que, talvez, se andasse descalço, tal não aconteceria, talvez as pedras afiadas estivessem dentro dos sapatos e não fora, porque as veredas estavam de facto muito limpas. Claro que o meu amo me chamou idiota e ameaçou enclausurar-me durante longos dias numa masmorra escura.

     Sabendo que era bem capaz de cumprir a ameaça, não insisti no meu argumento, embora estivesse razoavelmente convencido de que estava certo.

     Entretanto, as nuvens afastaram-se ligeiramente e o Sol começou a brilhar. O meu amo decidiu fazer uma pausa para secar a roupa e dormir uma sesta. Aproveitei a ocasião para lhe guardar os sapatos já rotos na minha bolsa e pus a roupa a secar nos ramos de uma árvore. Não sabia então se tivera algum sonho auspicioso durante a sesta, o certo é que acordou mais bem-disposto e afável comigo. Deixou-me vesti-lo sem resmungar e ergueu-se para continuar a caminhada. Os sapatos continuavam na minha bolsa.

     Até onde os meus olhos conseguiam abarcar, via bem que o caminho era bem incerto e pedregoso. Agora era chegada a ocasião de verificar se o meu argumento estava realmente certo. Mais do que na fé, confiei na sabedoria do espírito e na coragem.

     Sua majestade caminhava bastante lesto e determinado. Quase não olhava o chão e, ainda assim, quase não pisou uma única pedra, e eram muitas. Em dado momento, chamou-me para próximo de si e disse-me que tivera um sonho sobre um caminho pedregoso. Sonhara que caminhava descalço e que, mesmo assim, não se feria nos pés, não tropeçava nem caía.

     ― Acho que este sonho me fez bem porque agora nem sinto as pedras do caminho. E agora, diz-me tu, por que razão já não me magoam as pedras?

     ― Perdoai-me a ousadia, majestade, mas a razão é muito simples. Acontece que enquanto sonháveis, eu andei adiante por esse caminho e conversei com todas as pedras. Contei-lhes quem éreis, o grande rei de todo este território e de todos os caminhos, e elas acederam prontamente a desviar-se dos teus passos, por muito incertos que fossem.

     ― Por uma vez, acredito em ti, meu bobo. Até as pedras se afastam para deixar passar um grande rei.

     ― Claro, majestade, nem podia ser de outra forma ― anui sorrindo para os poucos botões que ainda me restam.  

     Nessa noite, voltei a calçar-lhe os sapatos e sua majestade continuou a acreditar que até as pedras o veneravam.

     Sendo eu o mais leal e sincero dos bobos, espero que ninguém duvide da minha palavra, porque eu falei de facto com as pedras, só não posso revelar inteiramente o que lhes disse.

 

* Dia de semear ventos e colher tempestades

 

     O conceito que sua majestade fazia de si mesmo era inalterável, acontecesse o que acontecesse. Não sei quantas fronteiras já atravessáramos nem quem vivia e reinava naquelas paragens. Do seu ponto de vista, aquelas terras, aquelas florestas, aquelas gentes eram suas e sobre tudo podia exercer o seu poder ilimitado.

     Após uma curva estreita do caminho, deparámos com um magote de gente que comia e conversava à sombra de uma árvore. Sua majestade quis saber o que faziam ali aqueles maltrapilhos. Por que não estavam a trabalhar nos campos, por que não estavam acorrentados, por que ousavam levantar os olhos daquele modo quando o olhavam. Não se pode dizer que aqueles pobres camponeses tenham sido insolentes ou provocadores, mas foi assim que sua majestade os viu.

     Perguntou-lhes quem eram e sem esperar resposta, ordenou que fossem trabalhar os campos, que lhe trouxessem o melhor das suas colheitas, que se ajoelhassem e lhe beijassem o manto. A mim ordenou-me que acorrentasse aqueles que lhe pareciam os mais rebeldes e os possíveis instigadores daquele movimento de insurreição contra a sua propriedade e autoridade.

     Sem contestar, baixei-me e enrolei alguns juncos tenros aos tornozelos de alguns. Ao mesmo tempo, fiz-lhes sinal para que fossem beijar o manto de sua majestade, que não passava de um trapo esfrangalhado.

     Satisfeito com os salamaleques, sua majestade, dirigiu-se então ao aglomerado:

     ― Porque sou bondoso e misericordioso, aceito a vossa submissão e perdoo-vos. Ide agora trabalhar e trazei-me o melhor das colheitas destas terras que são minhas.

     Um deles, com menos disposição para alinhar em farsas, não esteve com meias palavras.

     ― Os homens nascem, os reis fazem-se. Nenhum de nós fez de ti nosso rei e nenhum de nós te deu as nossas terras. São nossas porque o nosso rei, muito diferente de ti, no-las deu e porque somos nós quem as trabalha. Retira-te, pois para o teu reino, seja ele onde for, ou vem trabalhar connosco e terás direito ao teu quinhão legítimo.

     Voltaram-lhe costas e prosseguiram o seu caminho. Sua majestade ficou furibunda e praguejou a plenos pulmões: “Para a roda, para a fogueira! Que não reste um único desta espécie!” Ordenou que os seus exércitos dizimassem aquela escumalha e exigiu-me que lhe trouxesse o seu cavalo para que ele mesmo lhes desse caçada e os trespassasse com a sua espada invencível.

     No tom mais humilde que me foi possível adoptar, disse-lhe que provavelmente os seus exércitos, se existissem, ainda iam levar muitos dias até chegarem àquele território. Podia até dar-se o caso de se perderem pelo caminho ou decidirem desertar mal chegassem a um lugar tão pacífico e justo. Quanto ao seu cavalo, tão transparente como o próprio vento, como ele podia constatar com os seus próprios olhos, corria livremente por entre o feno verdejante.

     Penso que nem terá ouvido as minhas explicações porque logo a seguir vi-o caminhar a galope, aos solavancos como quem vai na garupa de um cavalo, manejando furiosamente uma espada imaginária que ia cortando o ar.

     Às vezes, ainda me pergunto por que mantenho este diário. Ninguém acreditará nestas narrativas, excepto, talvez, algum idiota como eu.

São Ludovino, 3/5/2020