RE-INVENÇÕES DE PEDRO & INÊS
Mas regressemos a D.ª Inês e ao modo como terá sido morta e ressuscitada
infinitas vezes pela lenda, pela literatura e pelo infindável reconto que vai
acrescentando sempre mais um ponto…
No opúsculo, Souvenirs de Coimbre (1843) o Marquês de Resende (citado por Sousa
Viterbo), quando se refere à exumação do cadáver de D. Inês, não só diz que
estava intacto, como acrescenta que até as tranças longas e louras estavam em
bom estado e perfeitamente compostas. É também o Marquês de Resende que
menciona outra “Ignez” ou “Agnes” da Baviera que terá sido morta (afogada no
rio Danúbio), em 1435, por motivos idênticos aos de D.ª Inês. Sousa Viterbo,
acrescenta que para a história ser igual só lhe faltou a coroação:
«O auctor accrescentou preliminarmente um Avis aux lecteurs e nas duas paginas finaes uma nota histórica sobre uma dama allemã, chamada Ignez, por quem se apaixonou loucamente o duque Albrecht, filho unico de Capeto de Baviera. Ignez foi morta tyrannicamente a 12 de outubro de 1435, tendo sido mandada afogar no Danúbio. É uma tragédia idêntica á de D. Ignez de Castro; só lhe faltou a scena da coroação.»
(In Artes e artistas em Portugal; contribuições para a historia das artes e industrias portuguezas, Francisco de Sousa Viterbo, Lisboa, 1892, págs. 20-26)
Mesmo que D.ª Inês não tenha sido decapitada, a decapitação é um uso bárbaro milenar que persiste até hoje. Há evidências de que a decapitação já era usada há cerca de 9000 anos. Sobre este modo de execução, Paulo Mendes Pinto, director do curso de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, diz o seguinte:
«Ao
separar o órgão que se julgava do pensamento, o coração, do órgão de expressão,
a boca, decreta-se ao defunto a incapacidade de proferir e realizar no Além
ritos e afirmações que lhe dariam acesso à eternidade. O corpo deixa de ser uno
e coeso. Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo
é condição para que num dia de Juízo Final possa haver um novo tempo.»
O que é indiscutível é que D. Pedro promoveu
um sumptuoso cortejo (provavelmente em Abril de 1361 ou 1362) para acompanhar
os restos mortais de D.ª Inês e a fez sepultar no Mosteiro de Alcobaça, coroada
pela filigrana da pedra, rodeada pelas insígnias reais, e fê-lo com grande
pompa e solenidade como se de facto fosse uma rainha. Ele próprio seria
sepultado também aí seis anos mais tarde (1367), reforçando tudo o que a Lenda
quis acrescentar à História.
Ambos os túmulos são de extrema beleza,
esculpidos com toda a perfeição em pedra calcária branca (“mármores brancos”
dizem alguns). Consta que D. Pedro terá ido ao Porto encomendar estes túmulos
por volta de 1360. No entanto, alguns autores consideram que os túmulos serão
obra de artífices estrangeiros (franceses ou italianos). Manuel Vieira
Natividade (Ignez de Castro e Pedro o Cru
- Perante a iconographia dos seus túmulos, Lisboa, 1910, págs. 23 e 150,
figuras 29 e 35), apresenta uma fotografia de uma “sigla” (assinatura ou marca) do
autor no túmulo de D. Pedro. No início do século XX, este autor ainda não tinha
conseguido decifrar aquela “sigla”, mas esperava vir a decifrá-la um dia e a
identificar o rosto do próprio escultor entre as muitas figuras humanas que
decoram ambos os túmulos: «E esperamos
descobrir, um dia, entre as muitas figuras dos túmulos, o retrato do seu grande
creador.» (idem, ibidem, pág. 107). Que eu saiba, ainda
ninguém conseguiu decifrar a “sigla” do autor ou autores. Por minha parte,
prefiro acreditar que foram de facto artífices portugueses, porque há outras
obras escultóricas de semelhante beleza e perfeição saídas das mãos de
artífices portugueses; e também porque não era fácil, naquele tempo, contratar
no estrangeiro artífices que chegassem a Portugal a tempo de concluir os dois
túmulos entre 1360 e 1361, quando muito até Abril de 1362 (entre a declaração
de Cantanhede e a cerimónia de trasladação).
A fisionomia de D.ª Inês, gravada na
pedra, será muito próxima do real, pois D. Pedro terá mandado fazer “um retrato
ao natural”, a partir do qual os artífices terão esculpido a pedra. Quem fez
esse retrato e como não se sabe. Se, de facto, esse retrato foi feito “ao
natural” a partir do cadáver de D.ª Inês, então é pouco provável que o corpo
tivesse sido decapitado. Sabe-se que era dotada de uma rara beleza, com cabelos
louros muito longos e linhas elegantes. A beleza do pescoço e peito (“colo”)
levou alguns a chamar-lhe “colo de garça”. D. Pedro seria de elevada estatura,
teria cabelos ruivos ou louros escuros, olhos negros, “boca não pequena” e era
extremamente gago desde a nascença. No domínio médico e psíquico, alguns
encontram nele traços psicóticos, mudanças súbitas de humor, ataques
incontroláveis de raiva, sadismo, insónias recorrentes e prováveis sinais de
epilepsia.
Diogo Barbosa Machado descreve-o assim, no
Tomo III da Bibliotheca Lusitana,
Lisboa, 1762, p. 539:
A dò hallarà holgança
Mis amores:
Adò mis graves temores
Segurança:
Pues mi suerte
De una en outra cumbre llevantado
legome a ver d’elado tu hermosura
Despues la frente para frente a frente
Vi en blando acidente amortecido:
Passome el sentido tan a dentro
Que hà llegado al centro dò amor vive:
Mas como nò recibe mi razon
Tu fiera condicion entre las manos
Desechos mis deseos
De un sobresaltado
El alma hás arrazada;
Los montes echos llamos
Dò toda mi esperança era fundada:
Si esto das por vida, que por muerte
Dar Señora podrà pecho tan fuerte.
Afonso Sanches, filho bastardo e
predilecto de D. Dinis, também teve inclinação para a poesia, tal como seu pai,
o Rei Trovador. Nos Cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Vaticana surge uma
cantiga de amigo que lhe é atribuída: “Dizia la fremozinha”
Dizia la fremozinha:
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
Dizia la ben talhada:
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor coitada!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Como estou d’amor ferida!
— Ai Deus, val!
Não vem o que ben queria!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
— Como estou d’amor coitada!
— Ai Deus, val!
Não vem o que muit’amava!
— Ai Deus, val!
Como estou d’amor ferida!
Afonso Sanches
Cancioneiro da Biblioteca Nacional – N.º 784
Cancioneiro da Vaticana – N.º 368