Pedro
& Inês – Movimentos de Amor,
performance de Movimento e Voz inspirada na história de D. Pedro I e D.ª Inês
de Castro e em tantas outras histórias de amor e desamor. Encenação /
Coreografia de Victor Sezinando. Fotografia & vídeo de São Ludovino. Escola
Secundária D. Pedro V, Lisboa, 21/2/2020.
No palco, vimos uma encenação, de Victor
Sezinando, ao mesmo tempo simples e envolvente, crua e pungente, antiga e intemporal,
sobretudo pela variedade de elementos que foram muito além da interpretação de
um texto. O texto, na verdade, era inexistente, nem sequer foi uma colagem de
várias versões desta tragédia. Foi mais a construção de um puzzle feito de
silêncios, canto, dança e interpretação. A cada espectador coube o papel de
combinar as “peças” como entendesse; mas qualquer que fosse a opção, a
omnipresença de Pedro e Inês fez-se sentir ao longo de toda a performance. O
lirismo trágico foi o sentimento dominante na luz, nas cores, nos gestos e no
canto.
Pedro & Inês - Movimentos de Amor, photography by São Ludovino.
A luz, tendendo quase sempre para o
vermelho, anunciou e sublinhou a dor, a perda, a morte iminente: a brancura das
saias foi a marca da pureza ondulando e acompanhando os passos; as vendas
brancas lembraram como o amor é ou quer ser cego para que a felicidade perdure
mesmo que por breves instantes; o retirar das vendas é o prenúncio da tragédia
quando já é impossível não ver o que está diante dos olhos. Os apontamentos de
canto e música percorrem diversas épocas, mudando os acordes, permanecendo a
força motriz intemporal do amor. Os gestos delicados de Inês, os breves passos
de dança, a correria da fuga de uma ameaça que não se pode aplacar, acompanhada
pelo dramatismo dos sons altissonantes e pungentes, sucederam-se de uma forma
que podiam contar só por si toda a história. O diálogo silencioso entre Pedro e
Inês, que se faz de olhares, gestos, dança dizendo tudo o que haveria a dizer
sem uma única palavra. O carregar do corpo morto de Inês, finalmente sentada num
trono, que não é terreno nem material; os passos cadenciados dos cortesãos que
se vergam perante o cadáver de Inês e lhe beijam a mão, como se tudo estivesse
de facto escrito e ninguém pudesse fugir ao destino, os que partem e os que
ficam. A combinação de todos estes ingredientes resultou num espectáculo de
emoções fortes, visualmente belo e coerente.
Mais uma vez, só me resta aplaudir o
trabalho de todos, encenador e intérpretes, e esperar pelo próximo trabalho.
Uma enorme vénia para todos!
Pedro & Inês - Movimentos de Amor, Encenação de Victor Sezinando
Abaixo, fica um poema (Flor da Alma – Maior do que o Mundo) que
esta performance me inspirou.
Encenação &
Coreografia / Staging & Choreography
Victor Sezinando
Elenco / Cast
Beatriz Fachina
Bernardo Ferreira Carolina Gomes Carolina Teodoro Elói Pina Florbela Figueiredo Gabriela Rubio Gonçalo Alves Joana Abreu Joana Costa Joana Sousa Mariana Silva Marta Mateus Maria Pratas Maria Pinheiro Nelma Barreto Patrícia Barbosa Rodrigo Lencastre Rodrigo Marques Sandra Sofia Yannick Gomes
A flor da alma ergueu-se do seu leito terreno Abraçou as aves e as nuvens e rumou ao azul distante. Descalça sentiu nas raízes a chuva, o calor e o frio Caminhou por entre as florestas e os desertos Atravessou as planícies mais férteis Banhou-se nas cascatas ainda puras Percorreu aldeias e cidades Povoados silenciosos Ouviu multidões ruidosas Cantou e dançou com tribos festivas Até chegar junto ao mar Um mar antigo que mora no alto das montanhas. Nem uma pétala perdeu pelo caminho. Por entre a poeira Ficaram apenas os espinhos.
Nas águas cristalinas mergulhou E as pétalas abriram-se em círculo flutuante E toda a cor se enlaçou na transparência E todo o sal rebrilhou no céu estrelado.
Sem pressa de viver A eterna borboleta pousou-lhe no veludo vermelho. São velas as pétalas que deslizam por entre os dedos do vento. Navega lá longe noutro mar A flor que de tão vermelha não cabia na Terra.
Pelas noites dentro Pelos dias afora o barco-flor-coração Aparece nos olhos cansados do jardineiro. Ele olha o céu do crepúsculo Estende os braços e recebe no peito O beijo eterno da rosa poente. Levanta-se no dia seguinte E a rosa amanhece-lhe na alma Desperta cada centelha de vida Devolve a luz ao círculo do horizonte…
São Ludovino, 23/2/2020
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The Soul Flower
Bigger
than the World
The soul flower rose from its earthly bed Embraced the birds and the clouds and headed for the distant blue. Barefoot she felt in the roots the rain, the heat and the cold Walked through forests and deserts Crossed the most fertile plains Bathed in the still pure waterfalls Coursed through villages and cities Silent boroughs Heard noisy crowds Sang and danced with festive tribes Until she got to the sea An ancient sea that lives high in the mountains. Not a petal lost along the way. Amid the dust Only the thorns remained.
In the crystal clear waters she plunged And the petals opened in a floating circle And all the color intertwined in the transparency And all the salt twinkled in the starry sky.
With no rush to live The eternal butterfly landed on the red velvet. Sails are the petals that slide through the fingers of the wind. Far away she sails away in another sea The flower that was so red it didn't fit on Earth.
Through the nights Throughout the days the boat-flower-heart It appears in the gardener's tired eyes. He looks at the twilight sky Stretches his arms and receives on his chest The eternal kiss of the setting rose. Gets up the next day And the rose dawns in his soul Awakens every spark of life Returns the light to the horizon circle...
Num Mundo de desamor, tudo passa veloz Como areia numa ampulheta. Num Mundo passageiro só o Amor é eterno Quando vem, fica, perdura Nas estrelas, na alma, no dia que passa...
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In a World of unlove, everything goes by swiftly As sand in an hourglass. In a fleeting World only love is eternal When it arrives, stays, lasts In the stars, in the soul, in the day that goes by…
Leandro,
Rei da Helíria, peça de Alice Vieira interpretada pelos
alunos de Artes do Espectáculo (10.º 13) da Escola Secundária D. Pedro V,
Lisboa, 7/2/2020. Encenação: Victor Sezinando. Captação de imagem e montagem de
vídeo: São Ludovino.
Todas as histórias nascem
do seio da vida, de uma forma ou outra. Os primeiros mitos, as primeiras
lendas, as primeiras epopeias nasceram de vivências reais e do modo como o
Mundo foi interpretado num dado momento da História e da vida real dos povos.
Crenças, saber e imaginação formaram o molde primordial. Lá dentro os povos
verteram o seu próprio ser colectivo, mesmo que as primeiras palavras tenham
saído de uma única boca. Nos contos e lendas, o individual e o colectivo
tornam-se indistintos logo que cada voz se apropria deles.
Antes de existirem escolas e instrução
pública, antes da filosofia e da ética, do direito e da política, essas
narrativas anónimas, que teimam em não morrer, revelaram, ensinaram, separaram
o bem do mal, sintetizaram o essencial e mostraram caminhos aos anciãos e aos
aprendizes, ao rei e ao escravo. Por isso, encontramos estas narrativas nos
quatro cantos do mundo, são intemporais e universais. Revelam afinidades e
cristalizam diferenças. A matriz é humana, a expressão diversa, o horizonte
ideal e fantástico. E assim, sem alterar de modo radical a face do Mundo,
construíram outros mundos, outros modos de ver e viver, denunciaram poderosos,
fizeram justiça metafórica, subverteram a ordem social, esboçaram utopias, tudo
em simples histórias. Através da palavra, o bem venceu o mal e a injustiça; o
desconcerto, o absurdo, o desequilíbrio da ordem social, as assimetrias
materiais, culturais e éticas, os actos prepotentes dos intocáveis foram
banidos ou punidos por quem não tinha poder nenhum.
O conhecido e o desconhecido, a realidade
e a fantasia, os factos e as lendas, os sonhos e as utopias entrelaçaram-se e
continuaram a viver de modo indistinto nas histórias populares ou eruditas.
Homero registou por escrito (Odisseia
e Ilíada) as histórias e as lendas
que já corriam há gerações de boca em boca. Garrett fez o mesmo no Romanceiro, tal como já o tinha feito
Herculano nas Lendas e Narrativas, e,
já antes dele, Gonçalo Fernandes Trancoso o tinha feito nos Contos eHistórias de Proveito e Exemplo (1575). Os Românticos (tal como
Herculano ou Garrett) aperceberam-se disso melhor do que ninguém. Perceberam
que cabia aos doutos ouvir a voz do povo, preservá-la, recriá-la e dar-lhe uma
nova vida e um novo fôlego. Cada novo tempo recria o antigo com novas
roupagens, novas linguagens e propósitos.
Os Realistas e Positivistas, como Teófilo
Braga, continuaram o trabalho de recolha dos contos tradicionais que perduravam
na cultura popular. O conto número 50 dos Contos
Tradicionaes do Povo Portuguez, de Teófilo Braga (1883), intitula-se O Sal e a Água (ou Comida Sem Sal) e narra uma história idêntica à que encontramos em Leandro, Rei da Helíria. Retoma, de
certo modo, a lenda do Rei Leir (Rei
Lear) que já aparecia no Nobiliário
de D. Pedro, Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis. Narrativas
idênticas aparecem na cultura popular de todos os cantos do mundo.
A história subjacente ao enredo da peça Leandro, Rei da Helíria, de Alice
Vieira, tem a mesma origem, lá longe no tempo onde a história e a lenda se
fundem, tal como o próprio Rei Lear,
de Shakespeare, que se inspirou em velhas lendas britânicas. Este é pois um
texto dramático feito de múltiplos ecos que vêm de um passado indefinido e
longínquo e se prolongam em múltiplos presentes. Até na própria sonoridade do
título encontramos o eco do nome de Lear (ou Leir): no próprio nome Leandro e
no nome do reino de Helíria em que ressoa o nome de Hélade (região central da
Antiga Grécia) ou Hélios (deus do Sol) mas também Lear (o rei trágico, traído
pelas próprias filhas a quem entregou o reino) e lírio (a flor, símbolo da
pureza e da inocência), que neste conto não é um lírio mas uma violeta.
Nesta história, Leandro, rei da Helíria,
está velho e pressente o seu fim. Um sonho inquietante e premonitório
mostra-lhe que o seu reino está prestes a perecer e o seu poder real a
desvanecer-se. Desabafa com o Bobo, mostra-lhe o seu medo, a angústia de sentir
que tudo terá um fim próximo e ele nada pode fazer, apesar de ser rei. A
transitoriedade da vida faz-se anunciar com a velhice e mostra-lhe como tudo
passa: o poder, a riqueza, a solidez do reino. Tenta ancorar-se no amor das
três filhas (Amarílis, a mais velha, Hortênsia, a filha do meio, e Violeta, a
mais nova). Num enganador exercício de egocentrismo, tenta averiguar a medida
do amor de cada uma: quanto o amam, afinal, e qual delas o ama mais. A
hipocrisia e dissimulação das duas mais velhas, acompanhadas pelas hipérboles
da lisonja bem-falante, convencem-no de que é amado por elas acima de todas as
coisas. A simplicidade e sinceridade da mais nova chocam-no («Quero-vos como a comida quer ao sal.»)
Prefere a bela superficialidade das palavras lisonjeiras à simplicidade da
verdade.
Tal como não consegue interiorizar verdadeiramente
a ideia de que tudo é efémero (o poder, a riqueza material, a própria vida)
também não percebe que os verdadeiros sentimentos não se escondem sob máscaras,
são simples e autênticos, transcendem as palavras e o jogo das aparências.
Medir o amor das filhas é uma forma vã de ludibriar a finitude de tudo e se
convencer que, se for amado acima de todas as coisas, continuará a ser poderoso
e imperecível. Está certo e errado. O amor verdadeiro não morre, mas o “amor
interesseiro morre quando acaba o interesse”. Depois de dividir o reino entre
as duas filhas mais velhas, acaba por ser repudiado por elas, que não têm
paciência para “aturar velhos”. Deambula durante longo tempo por montes e
vales, sempre acompanhado pelo Bobo, até chegar a um reino muito diferente (o
reino de Reginaldo e Violeta, a filha mais nova). Nesse reino não há pelourinhos
ou chibatas, não há escravatura, cada um é livre de pensar e ser quem é e as
portas do palácio real abrem-se para todos.
Se o ponto de partida é uma história da
tradição popular (um rei tenta medir o amor das filhas por si, acabando por repudiar
a mais nova, a única que realmente o amava), o curso da peça percorre muitos
outros caminhos. Mais do que a “lição de vida” ou a “lição moral” dos contos
tradicionais, o mais importante é o confronto entre múltiplas visões da vida,
condicionadas quer pelo carácter das personagens quer pelo meio social que
representam. Ao longo de toda a acção, o Bobo comenta os acontecimentos,
reflecte, critica e satiriza à maneira de certas personagens vicentinas.
Adapta-se, porque não pode mudar o Mundo radicalmente (Bobos e Reis não podem
trocar verdadeiramente de lugar, como o Rei diz desejar em certo momento de
desespero), e contesta jocosamente porque essa é a única forma de provocar a
mudança possível. Ele é o crítico do rei mas também o seu guia. Revela simplicidade
e sabedoria, lirismo e sarcasmo, a persistência e o optimismo dos pessimistas,
acreditando que a longa caminhada, a fome e a intempérie, a escuridão da gruta
do pastor onde se abriga com o rei o hão-de levar a um desenlace feliz e
redentor.
Enquanto o Bobo mantém a lucidez, o rei
parece alucinado. Esfomeado e envolto em andrajos ainda lhe perpassa pela mente
a ilusão de ser rei e poderoso, de ter ainda o seu reino e poder fazer
“justiça” com as próprias filhas que o escorraçaram. Logo a seguir nega sequer
ter filhas, apenas tem um reino onde regressará. E assim, sem haver
efectivamente troca de papéis sociais, o rei torna-se bobo e o Bobo torna-se
rei. É ele, o Bobo-Rei, que mostra o caminho e conduz Leandro, o Rei-Bobo, à
redenção possível. Não é o rei que faz “justiça”, é Violeta, a filha banida,
que sem chibatas nem pelourinhos, mostra a evidência da verdade, a única que
realmente importa, a justiça possível. Servindo ao rei, seu pai, sucessivos
pratos cozinhados sem sal, mostra aquilo que realmente lhe fazia falta: o amor
que, mesmo invisível e simples, tudo transformava. Este é, pois, mais um conto
sobre o egoísmo, o perigo das aparências e o poder transformador do amor, o
verdadeiro, o único que pode ser chamado amor.
Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.
No palco, despojado, simétrico e
minimalista, o Bobo e Leandro, são os principais interlocutores, mas o
verdadeiro protagonista é o amor personificado por Violeta. Veste-se da cor das
violetas, é sincera e emotiva. O roxo, que simboliza a paixão, o sofrimento (a
cor do manto de Cristo prestes a ser crucificado), prenuncia desde logo o
triste fado que a espera. Nem por um momento vacila, aceita a desdita e a
injustiça e segue o seu caminho, que será futuramente bem mais auspicioso do
que o do pai que a repudiara.
As irmãs mais velhas, Amarílis e
Hortência, surgem como caricaturas de si mesmas. De modos enfatuados, deixam
transparecer nos gestos e nas palavras a dissimulação, o calculismo, a frivolidade
e a ambição. Os seus pretendentes, os príncipes Felizardo (noivo de Amarílis, a
mais velha) e Simplício (noivo de Hortênsia, a irmã do meio) são também
caricaturas e tipos sociais. Felizardo é um novo-rico sem grandes princípios
que mede o seu próprio valor pelo montante dos seus bens. Simplício é, como o
nome indica, um indivíduo simplório com capacidades intelectuais limitadas e
pouquíssima assertividade, limitando-se a corroborar o que os outros dizem com
uma única frase, que repete até à exaustão, até se tornar uma bengala
anedótica: «Tiraste-me as palavras da boca». Estes pretendentes não são
relevantes em si mesmos, apenas enfatizam o carácter das irmãs, fazendo o
espectador exclamar interiormente: “Os pares perfeitos para estas duas
donzelas!»
Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.
O único que parece conhecer tudo e todos
desde o início é o Bobo. Aparece vestido como o tradicional “bobo do rei”, diz
graçolas e faz cabriolas, mas também age e fala com perspicácia e
discernimento, sobretudo quando se dirige ao rei e avalia a sua conduta. Por
isso, a acção vai muito além da medida dos afectos; é uma história sobre a
medida da própria vida e as vicissitudes da condição humana, sobre os
governantes e os governados. Sem os comentários do Bobo, as relações sociais, a
fragilidade de toda a matéria e todo o poder, a busca do próprio sentido da
vida perder-se-iam numa história de ambição e ingratidão em que o cerne é
sempre o carácter e o amor.
Alice Vieira (re)escreveu esta história
sob a forma de um texto dramático em que funde a linguagem tradicional com a
intemporalidade das relações sociais. Esta encenação, de Victor Sezinando,
combina estas mesmas nuances, a
linguagem e os modos de outrora e os figurinos, atitudes e fundo musical de
agora.
Os jovens intérpretes, que se encontram no
primeiro ano do curso de Artes do Espectáculo, corresponderam com empenho à
especificidade dos seus papéis, mantendo-se entre a contenção, que permite que
o outro fale e seja visto, e o exagero do tom e dos gestos que contribuíram
para acentuar a comicidade de algumas situações e das personagens em si mesmas.
O resultado final foi o de um espectáculo completo, unindo o entretenimento às
emoções humanas e à reflexão introspectiva. Uma respeitosa vénia para o
encenador e todos os participantes. Continuem empenhados e certamente terão
ainda muito para dar!
São Ludovino, 9/2/2020
Leandro, Rei da Helíria, photography by São Ludovino.
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Leandro, Rei da Helíria - Encenação de Victor Sezinando
Encenação / Staging
Victor Sezinando
Elenco / Cast
Rei - Sandro Brandão Bobo - Marta Gomes Hortênsia - Luana Lobo Amarílis - Jéssica Gomes Violeta - Rafaela Cruz Príncipe Felizardo - Luana Santos (noivo de Amarílis) Príncipe Simplício - José Barata (noivo de Hortênsia) Príncipe Reginaldo - Márcia Carvalho Pastor, Conselheiro, Arauto & Escrivão - Sofia Nunes Aias - Joana Martins & Érica Soutelos
Seguem-se algumas páginas do Diário de Um Idiota, escritas cerca de
três meses após ter assistido à peça. Podia ter escrito muitas mais páginas.
Estas linhas são apenas uma pequena manifestação de solidariedade para com o
Bobo do Rei da Helíria, um ser que nada tem de insignificante embora seja
permanentemente tratado como se fosse “ninguém”.
DIÁRIO DE UM IDIOTA
(fragmentos)
*
Dia de ventania,
poeira e frutos silvestres
Pouco importa que dia é hoje. Os
pensamentos não se sujeitam à cronologia dos calendários ou à cadência das
horas canónicas. Quando muito, sujeitam-se à cadência dos passos do meu amo e
ao desvario das suas alucinações.
Não é doido, bem sei, nem sequer é tido
por crédulo ou idiota. Por definição o idiota sou eu. E ainda bem que assim é,
pois é desse estatuto que me advém a pouca liberdade de que efectivamente
disponho nos meus dias. Só os meus pensamentos continuam livres. Ora são um
vendaval que tento amainar, ora são grãos de poeira que me fazem chorar.
― Porque choras? ― Pergunta o meu amo. ―
Tu não tens preocupações, nada tens, nada perdes e nada ganhas…
― É só a poeira dos vossos passos que
entra para os meus olhos quando caminho atrás de vós.
― Ora, ainda bem que caminhas atrás ou
seria eu a receber a tua poeira.
― Mas poderia eu caminhar a vosso lado,
majestade? Ainda mais sendo o vosso guia… Como posso guiar-vos ou amparar os
vossos passos incertos, se escondeis de mim o horizonte? ― Perguntei-lhe.
― O horizonte só a mim pertence. Sou eu o
rei e senhor de todas as terras e caminhos…
Pobre diabo, nem sabe para onde caminha.
Anunciei-lhe que se aproximava a hora do almoço e afastei-me para colher amoras.
Caminhei bem adiante dele. Olhei-o coberto pelos seus andrajos e não vi rei
algum em parte alguma. Mas eu sou um pobre idiota com um coração mole, um
idiota sem qualquer credibilidade. Nunca menti na minha vida. Ainda assim,
todos tomam por patranhas e graçolas as minhas palavras mais sinceras.
Sua majestade almoçou uma mão-cheia de
amoras, sentado numa pedra a meu lado, sempre convencido de que estava à minha
frente. Só em movimento, enquanto caminhamos por algum caminho, se pode dizer
que um vai à frente e o outro vai atrás… e apenas se for o caminho certo… ou
então será tudo ao contrário. Mas quando nos sentamos, imóveis, sob alguma
árvore, ninguém conseguiria dizer quem está à frente e quem está atrás.
Respirei fundo e saboreei a minha
mão-cheia de amoras, em nada menos saborosas ou nutritivas do que as que dei ao
meu amo.
*
Dia de falar com as
pedras e abençoar o Sol
Depois de muitas horas caminhando sob a
chuva, tinha a roupa ensopada e os ossos enregelados. O meu amo ia praguejando
enquanto tropeçava em quase todas pedras do caminho. Eu preferia contorná-las
ou chutá-las para a berma, um método fácil de evitar a dor e alguma queda de
consequências imprevisíveis. Lembrei-me de um dos sonhos do meu amo: caminhava
pelas veredas do jardim do seu palácio, muito limpas e aplanadas. Ainda assim,
a cada passo que dava, sentia que pedras pontiagudas lhe rompiam as solas dos
sapatos de couro e veludo e lhe penetravam na carne, deixando-lhe os pés
cobertos de feridas. Na altura, observei que, talvez, se andasse descalço, tal
não aconteceria, talvez as pedras afiadas estivessem dentro dos sapatos e não
fora, porque as veredas estavam de facto muito limpas. Claro que o meu amo me
chamou idiota e ameaçou enclausurar-me durante longos dias numa masmorra
escura.
Sabendo que era bem capaz de cumprir a
ameaça, não insisti no meu argumento, embora estivesse razoavelmente convencido
de que estava certo.
Entretanto, as nuvens afastaram-se
ligeiramente e o Sol começou a brilhar. O meu amo decidiu fazer uma pausa para
secar a roupa e dormir uma sesta. Aproveitei a ocasião para lhe guardar os
sapatos já rotos na minha bolsa e pus a roupa a secar nos ramos de uma árvore.
Não sabia então se tivera algum sonho auspicioso durante a sesta, o certo é que
acordou mais bem-disposto e afável comigo. Deixou-me vesti-lo sem resmungar e
ergueu-se para continuar a caminhada. Os sapatos continuavam na minha bolsa.
Até
onde os meus olhos conseguiam abarcar, via bem que o caminho era bem incerto e
pedregoso. Agora era chegada a ocasião de verificar se o meu argumento estava
realmente certo. Mais do que na fé, confiei na sabedoria do espírito e na
coragem.
Sua majestade caminhava bastante lesto e
determinado. Quase não olhava o chão e, ainda assim, quase não pisou uma única
pedra, e eram muitas. Em dado momento, chamou-me para próximo de si e disse-me
que tivera um sonho sobre um caminho pedregoso. Sonhara que caminhava descalço
e que, mesmo assim, não se feria nos pés, não tropeçava nem caía.
― Acho que este sonho me fez bem porque
agora nem sinto as pedras do caminho. E agora, diz-me tu, por que razão já não
me magoam as pedras?
― Perdoai-me a ousadia, majestade, mas a
razão é muito simples. Acontece que enquanto sonháveis, eu andei adiante por
esse caminho e conversei com todas as pedras. Contei-lhes quem éreis, o grande
rei de todo este território e de todos os caminhos, e elas acederam prontamente
a desviar-se dos teus passos, por muito incertos que fossem.
― Por uma vez, acredito em ti, meu bobo.
Até as pedras se afastam para deixar passar um grande rei.
― Claro, majestade, nem podia ser de outra
forma ― anui sorrindo para os poucos botões que ainda me restam.
Nessa noite, voltei a calçar-lhe os
sapatos e sua majestade continuou a acreditar que até as pedras o veneravam.
Sendo eu o mais leal e sincero dos bobos,
espero que ninguém duvide da minha palavra, porque eu falei de facto com as
pedras, só não posso revelar inteiramente o que lhes disse.
*
Dia de semear ventos e
colher tempestades
O conceito que sua majestade fazia de si
mesmo era inalterável, acontecesse o que acontecesse. Não sei quantas
fronteiras já atravessáramos nem quem vivia e reinava naquelas paragens. Do seu
ponto de vista, aquelas terras, aquelas florestas, aquelas gentes eram suas e
sobre tudo podia exercer o seu poder ilimitado.
Após uma curva estreita do caminho,
deparámos com um magote de gente que comia e conversava à sombra de uma árvore.
Sua majestade quis saber o que faziam ali aqueles maltrapilhos. Por que não
estavam a trabalhar nos campos, por que não estavam acorrentados, por que
ousavam levantar os olhos daquele modo quando o olhavam. Não se pode dizer que
aqueles pobres camponeses tenham sido insolentes ou provocadores, mas foi assim
que sua majestade os viu.
Perguntou-lhes quem eram e sem esperar
resposta, ordenou que fossem trabalhar os campos, que lhe trouxessem o melhor
das suas colheitas, que se ajoelhassem e lhe beijassem o manto. A mim
ordenou-me que acorrentasse aqueles que lhe pareciam os mais rebeldes e os possíveis
instigadores daquele movimento de insurreição contra a sua propriedade e
autoridade.
Sem contestar, baixei-me e enrolei alguns
juncos tenros aos tornozelos de alguns. Ao mesmo tempo, fiz-lhes sinal para que
fossem beijar o manto de sua majestade, que não passava de um trapo
esfrangalhado.
Satisfeito com os salamaleques, sua
majestade, dirigiu-se então ao aglomerado:
― Porque sou bondoso e misericordioso,
aceito a vossa submissão e perdoo-vos. Ide agora trabalhar e trazei-me o melhor
das colheitas destas terras que são minhas.
Um deles, com menos disposição para
alinhar em farsas, não esteve com meias palavras.
― Os homens nascem, os reis fazem-se.
Nenhum de nós fez de ti nosso rei e nenhum de nós te deu as nossas terras. São
nossas porque o nosso rei, muito diferente de ti, no-las deu e porque somos nós
quem as trabalha. Retira-te, pois para o teu reino, seja ele onde for, ou vem
trabalhar connosco e terás direito ao teu quinhão legítimo.
Voltaram-lhe costas e prosseguiram o seu
caminho. Sua majestade ficou furibunda e praguejou a plenos pulmões: “Para a
roda, para a fogueira! Que não reste um único desta espécie!” Ordenou que os
seus exércitos dizimassem aquela escumalha e exigiu-me que lhe trouxesse o seu
cavalo para que ele mesmo lhes desse caçada e os trespassasse com a sua espada
invencível.
No tom mais humilde que me foi possível
adoptar, disse-lhe que provavelmente os seus exércitos, se existissem, ainda
iam levar muitos dias até chegarem àquele território. Podia até dar-se o caso
de se perderem pelo caminho ou decidirem desertar mal chegassem a um lugar tão
pacífico e justo. Quanto ao seu cavalo, tão transparente como o próprio vento,
como ele podia constatar com os seus próprios olhos, corria livremente por
entre o feno verdejante.
Penso que nem terá ouvido as minhas
explicações porque logo a seguir vi-o caminhar a galope, aos solavancos como
quem vai na garupa de um cavalo, manejando furiosamente uma espada imaginária que
ia cortando o ar.
Às vezes, ainda me pergunto por que
mantenho este diário. Ninguém acreditará nestas narrativas, excepto, talvez,
algum idiota como eu.
COCO
– Adaptação do filme Coco da Disney / Pixar. Interpretação: alunos do Curso
Profissional de Artes do Espectáculo (12.º 13) da Escola Secundária D. Pedro V,
Lisboa. Encenação: Gonçalo Barata. Captação de imagem e edição de vídeo: São
Ludovino. Apresentação pública de 28/1/2020.
Coco
(Disney / Pixar, 2017), realização de Lee Unkrich e Adrian Molina, ganhou o
Óscar de Melhor Filme de Animação.
Outro filme levado ao palco, outra descida
ao mundo dos que já partiram, outra aventura, outra ousadia que podia correr
mal, mas correu bem, muito bem. A acção do filme decorre em múltiplos espaços
fictícios, transpostos para três espaços cénicos fundamentais: o átrio do
Auditório, o palco propriamente dito (divido em vários espaços destinados a
cenas específicas) e as escadas da plateia. O espectador começa por acompanhar
a performance ainda antes de entrar no Auditório e de se sentar. Entra, ao som
de música popular mexicana, como quem entra no pátio de uma casa em festa: a
comemoração anual do Dia dos Mortos em que se recordam os entes queridos que já
partiram. No átrio do Auditório, o público toma contacto com Miguel, o miúdo
que protagoniza a acção, e com os antecedentes da acção principal (flashback) e também o destino final de
algumas personagens (Ernesto de la Cruz, a grande estrela, morre esmagado por
um sino gigante enquanto recebe os aplausos do público). Serve este episódio de
aviso: cuidado com a forma como “agarras o momento”. Às vezes “agarrar o
momento” significa perder tudo, incluindo a própria vida.
Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.
Coco não é apenas uma história sobre a
força e a permanência dos verdadeiros afectos, é também uma história sobre o
preço da fama, sobre os métodos para a alcançar e as suas consequências. São
estes dois fios condutores (a fama e o modo como se conquista) que se
entretecem no desenrolar da acção unidos por um fundo comum, a música, a
memória e o amor. Foi a música que separou a família, foi através da música que
Ernesto de la Cruz quis “agarrar o seu momento” e conquistar a fama, é a música
que traz a alegria às pessoas simples da aldeia de Miguel ― usam-na para
conviver, festejar e até para lembrar os entes queridos ― e é a música que
conduz Miguel ao mundo dos seus antepassados para resgatar a verdade e fazer
vencer o amor.
Ernesto de la Cruz revela ser um ídolo com
pés de barro que não tem talento nem honra, um indivíduo egoísta e ambicioso
que não olha a meios para atingir os seus fins, a fama. Mata o verdadeiro autor
das canções (Hector, pai da Mama Coco) que lhe deram celebridade e goza a fama
sem quaisquer remorsos. A verdade por trás da fama de Ernesto de la Cruz deixa
a nu o jogo de aparências e a credulidade do público. Não há fama sem público.
É o reconhecimento de milhares que permite que alguém seja colocado num
pedestal. A imagem e o marketing são as ferramentas fundamentais, hoje mais que
nunca. A comunicação rápida e fácil espalha e consagra o talento, mas também a
falta dele. Nessa teia de imagens e sons, o espectador-ouvinte pode ser
cúmplice da farsa ou ajudar a desmontá-la. Os espectadores / ouvintes de
Ernesto de la Cruz eram igualmente crédulos e manipuláveis.
O absurdo desta fama infundada reside
sobretudo no facto de, mesmo após a morte, Ernesto de la Cruz continuar a ser
uma estrela; continuou a brilhar e a ser idolatrado enquanto a verdade não foi
revelada. É Miguel, o miúdo que ama verdadeiramente a música e é talentoso, que
tem nas veias o sangue do seu trisavô, Hector, que desmascara Ernesto e mostra
que “agarrar o momento” exige mais do que uma imagem esplendorosa e fútil.
Miguel faz a sua viagem ao mundo dos
mortos para resgatar o trisavô do esquecimento, mas também para devolver a
música à sua família, de onde tinha sido banida após a partida daquele em busca
da fama. Em vez da fama, Hector encontrou a traição e a morte.
Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.
É também através da música e das canções
que Miguel consegue provar à Mama Coco que nunca fora esquecida e que, sem,
saber, também lembrava: “Lembra-te de mim”. Quando Miguel começa a cantar esta
canção, composta para ela pelo seu pai Hector, a Mama Coco acompanha-o
espontaneamente como se nunca tivesse deixado de a cantar; a memória da sua
infância regressa e traz-lhe de volta o amor e a alegria.
A
música preserva a memória, lembra e faz lembrar. A memória ajuda a construir a
fama; a fama morre com o esquecimento. A memória faz parte do amor e da vida; só
quem lembra permanentemente ama deveras. Uma das cenas mais perturbadoras é,
por isto mesmo, aquela em que percebemos que ser esquecido é não ser amado e
vice-versa. O velho músico, que entrega a guitarra a Miguel, volta a morrer uma
segunda vez, morre verdadeiramente, quando foi esquecido por aqueles que o
conheceram em vida. O trisavô de Miguel também está prestes a morrer definitivamente
quando Miguel o encontra porque a velhinha Mama Coco está prestes a esquecê-lo
completamente. É a música e a fabulosa viagem de Miguel que traz de volta a
memória, o amor e a música.
Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.
Pôr de pé um espectáculo com uma produção
tão complexa foi um grande desafio para o encenador, Gonçalo Barata, e para os
jovens intérpretes, finalistas do Curso Profissional de Artes do Espectáculo. Foi
necessária uma coordenação perfeita entre todos para ordenar tantas cenas,
entradas e saídas, mudanças de espaço e de cenário, a música e o silêncio, a
luz e a penumbra. O espectador foi arrancado da sua habitual passividade de
receptor e teve de mover-se, de voltar a cabeça, de procurar a origem da voz ou
da luz, de antecipar o que viria a seguir. É uma performance que se vê melhor à
segunda vez; da primeira vez, o inesperado foi mesmo inesperado e escapou a
alguns, incluindo a mim. Inesperado, dinâmico e muito exigente do ponto de
vista da coordenação, este espectáculo merecia de facto ser visto mais vezes,
dentro e fora da escola. Uma grande vénia para todos os construtores deste
espectáculo meticulosamente inesperado.
Coco - Encenação de Gonçalo Barata
COCO - Rehearsal & Breaks - phot. & video by São Ludovino
A história que se segue (Língua Primeira) inspira-se na Mama
Coco, mas mais ainda na sabedoria misteriosa dos velhos, sobretudo quando
observada pelos olhos de uma criança.
No livro de receitas, o único livro que
possuíra em toda a sua vida, a avó anotava tudo o que considerava importante: como
fazer pão de milho, como tricotar um casaco, como cozer um sapato, as melhores
histórias e adivinhas, as palavras bonitas ou sábias que ouvira aqui ou ali, um
Verão em que não choveu um único dia, o florescer da laranjeira no quintal, os
primeiros passos e as primeiras palavras dos filhos e netos. E tantas, tantas
outras coisas comuns e extraordinárias que preenchem os dias.
Certo dia, quando dormitava na cadeira de
baloiço, colocada à sombra numa das extremidades do alpendre, o neto mais novo
veio sorrateiramente e pegou no livro de receitas da avó. Claro que não era um
livro impresso, era um caderno com folhas lisas que a avó preenchera ao longo de
muitas décadas. Aquele livro era para Ruiz um grande mistério. A avó nunca se
separava dele, não deixava que ninguém o lesse e usava-o sempre nos momentos
importantes. Houve tempos em que chegou a pensar que a avó era uma espécie de
feiticeira que anotava ali todos os segredos de magia. Porque ela fazia mesmo
magia. Ele já vira muitas vezes com os seus próprios olhos.
Naquele Verão em que não choveu, a avó
andava muito apreensiva, sempre a olhar para o céu e a proferir palavras que
mais ninguém entendia. Um dia, quando o mês de Setembro ia já a meio, a avó
levantou-se a meio da noite e foi para o pátio acompanhada pelo seu livro de
receitas. Ruiz também andava inquieto e acordava muitas vezes de noite. Ia à
janela, via o céu limpo e as estrelas a cintilar. Por instantes ficava
maravilhado e calmo. Mas logo que se deitava, a inquietação voltava. Com aquele
céu sempre limpo nunca iria chover. Será que não voltava a chover nunca mais?
Era uma ideia assustadora. Por isso dormia a sono solto na esperança de ouvir
lá fora a canção da chuva.
Naquela noite não ouviu o cair da chuva
mas os passos da avó que fizeram ranger as tábuas do alpendre quando desceu
para o pátio. Sem fazer barulho, ele levantou-se e foi pôr-se à janela, muito
discretamente escondido atrás da cortina de renda que a avó fizera. Lá estava
ela, toda iluminada pela Lua, de braços abertos, com o livro de receitas numa
das mãos, a olhar para o céu. De vez em quando, apertava contra o peito o
caderno de capa gasta e proferia baixinho uma oração, uma fórmula mágica, uma
canção, uma história, um poema ou sabe-se lá o quê. Esteve assim várias horas,
enquanto a Lua continuava a descer para Oeste até tocar as montanhas distantes.
Enquanto este ritual durou, a Lua foi mudando de cor; de azul passou a amarela,
depois a rosa até ficar quase vermelha e parecer um pequeno sol perdido na
noite.
Quando terminou, a avó parecia exausta mas
muito calma. Voltou para dentro e foi deitar-se. Ruiz ficara completamente sem
sono e decidiu ir ele para o pátio. Sentou-se numa pedra junto à laranjeira e
assim ficou a perscrutar o céu enquanto a Lua se escondia pouco a pouco atrás
das montanhas. O luar ia-se entrelaçando com a primeira luz da manhã anunciando
um novo dia. E que dia espantoso!
Antes de os primeiros raios de Sol
desenharem a sua sombra no chão, Ruiz viu um enorme bando de pássaros
aproximar-se. Vieram pousar nas árvores em redor do pátio. Alguns decidiram
instalar-se na laranjeira e chilrear numa conversa animada. Nada de
extraordinário. Todos os dias acordava com o chilrear dos pássaros no pátio.
Nunca apontara uma fisga a um pássaro, não porque a avó ficaria muito magoada,
mas porque lhe parecia uma enorme maldade matar seres que assim de forma tão
harmoniosa o acordavam para um novo dia. O que foi diferente nessa manhã é que
ele estava ali, entre os pássaros, e não deitado na sua cama.
Os pássaros desceram dos ramos e vieram
chilrear nos beirais, nos peitoris das janelas, no alpendre, no chão mesmo aos
seus pés. Não tinham medo, pareciam sorrir e cantavam suavemente. Por fim
levantaram todos, voaram em redor da sua cabeça e voltaram a desaparecer atrás
das copas das árvores mais altas. Absorvido pela dança dos pássaros, não viu o
exacto instante em que o Sol surgia por trás das montanhas. Vinha envolto numa
auréola branca e azulada. Quando olhou, sentiu vontade de gritar mas a voz não
saía. Nuvens, eram nuvens que nasciam com o Sol. Em breve a ténue auréola
foi-se adensando como uma longa cabeleira que se estendia pelo céu.
Sem conseguir esperar mais, correu para
casa aos gritos. «Nuvens, nuvens! As nuvens voltaram! Vieram com o Sol da
alvorada!» Em breve todos estavam a pé e seguiam-no até ao pátio. Ainda tiveram
tempo de ver o grande olho luminoso piscar entre a longa cabeleira. Depois, o
Sol desapareceu por completo e todo o céu era um tecto promissor. A primeira
gota tocou os lábios de Ruiz. Saboreou-a como um delicioso néctar. A avó abriu
os braços de par em par e pronunciou mais uma daquelas melopeias que ninguém
entendia. Estampado na cara tinha o mais belo sorriso que lhe vira.
Desde esse dia, Ruiz passou a olhar a avó
como um ser que não era inteiramente deste mundo. «Foi ela!» pensou, «Foi ela
que trouxe as nuvens, trouxe a chuva! A terra vai ficar fértil de novo, vamos
ter flores e uma horta cheia de legumes!»
Passaram três anos desde esse dia e desde
então Ruiz tinha um objectivo mais importante do que todos os outros: ler o
livro de receitas da avó. Qual seria a receita para fazer chover?
Hoje a avó dormia serenamente no alpendre
e o caderno estava logo ali em cima do parapeito da janela. Chamava-o: «Vem,
vem ler-me, se fores capaz. Vem descobrir os meus segredos…»
Antes de o abrir, respirou profundamente,
preparando-se para a grande aventura e revelação. Na folha de rosto havia uns
desenhos estranhos, pareciam plantas-animais ou talvez fosse o contrário. As
folhas e as flores tinham olhos e boca e os animais tinham pernas de ramos e
cabelos de algas e conchas. Também havia estrelas e palavras soltas que não
conseguia decifrar, excepto o título escrito no centro: Livro de Receitas. Preparou-se então para a primeira página. De
novo respirou profundamente e voltou a página. Mais desenhos e frases escritas
naquela linguagem que não entendia. Não sabia que a avó desenhava, desenhava de
uma forma belamente imperfeita. Não sabia o que significavam aqueles desenhos,
apenas lhe pareciam belos e cheios de vida. Havia árvores cobertas de sóis e
luas, pássaros com asas de gotas, flores entrelaçadas com figuras humanas, o
vento inclinando a erva, uma casa feita de conchas e folhas, um caminho
seguindo para o mar…
Continuou a voltar as páginas e o espanto
prosseguia até que eram já as páginas que se voltavam sozinhas e ele estava lá
dentro, rolando pela erva fresca, sentindo o vento nos cabelos, molhando os pés
à beira mar, chilreando nos ramos de uma árvore, atravessando montanhas,
tocando as nuvens, caminhando entre as estrelas.
Assim esteve muito tempo. O Sol descia
suavemente atrás das montanhas e as sombras alongavam-se e tocavam-se numa
saudação cordial. Sem dar por isso, o caderno descaiu-lhe sobre os joelhos e
olhou o chão. Ao lado da sua sombra adivinhou a sombra da avó. Estava de pé
atrás dele. Não tinha um ar zangado nem ralhou com ele. Apenas estendeu a mão e
ele devolveu-lhe o caderno.
― O que aprendeste hoje de novo, Ruiz?
Todos os dias aprendemos coisas novas. Hoje eu aprendi que chegou o momento de
te revelar algumas páginas deste caderno. Agora que já viste o que há lá
dentro, o que aprendeste, o que compreendeste do que viste? ― Perguntou a avó
com toda a serenidade.
― Bem, não sei bem o que aprendi porque
não percebi quase nada mas sei que gostei muito e que gostava de compreender.
Que língua é essa em que escreves e falas às vezes? ― Inquiriu Ruiz.
― É a minha verdadeira língua, a primeira
que aprendi logo que comecei a falar. Todas as crianças aprenderam essa língua.
Só mais tarde, fomos obrigados a aprender esta língua que todos falam… uma
língua de esquecimento, uma língua fronteira que nos separou das origens.
Falávamos com as árvores e elas entendiam, falávamos com os pássaros e eles
chilreavam de volta, falávamos com as nuvens e o vento e eles dançavam e
cantavam em nosso redor… Mesmo calados, falávamos com o Sol e a Lua e eles
respondiam com um brilho que dos olhos passava à alma e lá ficava a fazer-nos
crescer.
― Avó, tu pareces tão sábia… quando
crescer, quero ser como tu…
― Deseja antes ser simples como eu… Essa
será a melhor maneira de seres sábio!
― Mas, diz-me, avó, o que se passou
naquela madrugada daquele Verão quente e seco quando tudo parecia estar a
morrer… Tu trouxeste as nuvens, sei bem que foste tu… Fizeste chover e tudo
voltou a brilhar…
― Enganas-te. Não fui eu que fiz chover.
Eu só falei com as estrelas e o esquecimento. É preciso falar sempre com o
esquecimento. Se falares com ele, torna-se memória que nada esquece e tudo
abarca. As estrelas nunca esquecem, sabes. Quando quiseres devolver a vida a
alguma coisa tens de falar com as estrelas. Elas lembram-se de tudo e de todos…
Mesmo que tu te esqueças, elas vão lembrar-se. Eu nunca deixei de falar com as
estrelas… por isso me lembro ainda da minha língua primeira.
― Mas como podem ouvir-te as estrelas e
compreender a tua língua… Tu vieste das estrelas? Foi lá que aprendeste essa
língua?
― As estrelas não estão sós, sabes. Estão
povoadas de muitos seres, seres que estiveram aqui, ali, além… Um dia, também
tu hás-de caminhar pelas estrelas… Será daqui a muito, muito tempo e eu estarei
lá para te receber. Caminharemos por um grande livro que contém toda a história
do mundo escrita em muitas línguas e tu vais compreendê-las todas… Foram eles,
os que moram agora nas estrelas que trouxeram as nuvens do mar até aqui…
― Mas onde é que eles estão que não os
vejo?
― Há muito mais do que aquilo que podes
ver… Não podes ver o vento, mas ele pode segredar-te muitas coisas ao ouvido…
Não podes ver as nuvens que estão para lá das montanhas, mas elas estão agora
mesmo a refrescar outras terras, não podes ver o Sol quando adormece mas está
acordado do outro lado do mundo, não podes ver a vida quando cais no sono, mas
continuas vivo e tudo continua a existir…
― Que bonitas que são aquelas nuvens avó!
Foram também eles que as trouxeram?
― Foi a Mãe Natureza, é ela o elo entre
todas as coisas… As estrelas são tão naturais como as gotas de água, como o teu
espanto de criança ou os meus cabelos brancos…
― Avó, promete-me que nunca te vais
esquecer dessa língua que te faz falar com tudo…
― Prometo! Ela não me deixaria esquecer
mesmo que eu quisesse… É a língua do amor que une todas as coisas belas e
essenciais… e eu nunca deixei de amar…
Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.
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Encenação
/ Staging
Gonçalo Barata
Elenco
/ Cast
Adriana Loureiro Ana Martins Beatriz Carvalho Cátia Castanheira Diana Sardinha Diogo Pereira Filipa Lopes Iris Sena Joana Jorge João Duarte Maria Mendes Mariana Correia Nádia Antunes Rafaela Alves Raquel Simões Samira Baldé Sandro Dias Sara Carvalho Sofia Pedrosa Tatiana Cavalheiro
Adaptação
do filme Coco da Disney / Pixar
Adaptation of the Disney / Pixar Movie Coco
Gonçalo Costa Bruno Santos Catarina Castanhas Constança Neves Diogo Campos Gil Gualota Joana Ribeiro José Gomes Júlio Pinheiro Maria Silva Raquel Bragança Sophia Monteiro Tiago Sousa