HERÓIS,
ANTI-HERÓIS E QUIMERAS - III
O
OUTRO FREIRE DE ANDRADE, 1759-1809
Por que é que uma grande parte dos livros
de história sobre a época tratada, mesmo as histórias militares, esquecem o
nome de Bernardim Freire de Andrade ou dedicam-lhe apenas umas escassas linhas?
Essa foi a pergunta que fiz a mim mesma desde que descobri a existência deste
homem, que alguns tomam erradamente como se fosse o anterior Freire de Andrade.
Não sei responder a esta pergunta, só posso dizer que me parece muito estranha
tal omissão. Felizmente, há cerca de cinco anos atrás (2013) houve alguém que
teve a oportuna ideia de investigar a vida deste homem e publicou uma
monografia muito completa: Bernardim
Freire de Andrade, Tenente-General, 1759-1809, um trabalho de Nuno Lemos
Pires, da Academia Militar.
Bernardim Freire de Andrade (1759-1809) nasceu
em Lisboa, filho de Fernando Martins Freire de Andrade e Castro, morgado de
Ribeira do Sado e do Bom Despacho, e de Joana de Lencastre Forjaz.
Logo
no início do seu trabalho, Nuno Lemos Pires coloca uma interrogação que também
eu coloquei:
Dois anos mais novo do que Gomes Freire de Andrade,
serviu em Peniche ao mesmo tempo que os seus primos, o mesmo Gomes Freire de Andrade e D. Miguel Pereira Forjaz.
Todos eram aristocratas destinados, como era tradição, à carreira militar.
Todos desempenharam um papel na organização do exército. Bernardim e D. Miguel
também lutaram na Campanha do Rossilhão, foram feridos, regressaram a Portugal
e por cá ficaram a defender o país. Durante as Invasões Francesas ambos
desempenharam um papel fundamental na defesa do território e das pessoas. D.
Miguel sobrevive e acaba por se resguardar no papel de Secretário de Estado da
Regência. Bernardim não sobrevive à 2.ª invasão.
Não vou aqui relatar as muitas
vicissitudes e peripécias por que passou (leia-se o referido estudo), vou
apenas mencionar alguns factos que me parecem relevantes e curiosos.
É certo que falando estritamente da
estratégia militar, ainda hoje alguns duvidam das opções tomadas por Bernardim
Freire de Andrade, no entanto a prática no terreno demonstrou que estava certo.
Quando Soult tentou invadir Portugal pelo Minho, foram as acções do general
Silveira e de Bernardim Freire de Andrade que o obrigaram a retroceder,
acabando por entrar por Trás-os-Montes. Também pode ter parecido questionável
que tenha optado por uma táctica de pequenos avanços e recuos em vez de travar
grandes batalhas, unindo as suas forças às de Wellesley, mas foi assim que foi
dividindo as forças dos Franceses. Os Ingleses não gostaram da sua atitude algo
rebelde; Bernardim preferia lutar sozinho com os seus homens, seguindo a sua
intuição e as suas tácticas peculiares. No Porto, viu-se exposto à rebelião
popular e às acusações de jacobino e traidor, precisamente por “parecer” que
estava a ceder aos Franceses, não os enfrentando em grandes batalhas nem se
unindo aos “amigos” ingleses. Dessa vez, conseguiu salvar-se, mas quando
avançou para Braga e prosseguiu com a mesma estratégia, mais uma vez não foi
compreendido nem apoiado. O povo convenceu-se que ele seria um
colaboracionista, como tinha sido Gomes Freire, acusou-o de estar do lado dos
Franceses. Para o salvarem da fúria do povo, e não gerarem a mesma fúria contra
os restantes militares, acabou por ser preso pelos seus. No entanto, o povo
arrombou as portas da cadeia e assassinou-o de forma brutal e verdadeiramente ignominiosa,
em 17 de Março de 1809.
Tal era a raiva do povo pobre e esfomeado
contra os Franceses e contra aqueles que com eles colaboravam. Quem pagou com a
própria vida foi “um dos melhores Portugueses”, um Português de quem ninguém
fala, que nunca teve monumentos nem feriados nacionais.
Bernardim Freire demonstrou a sua coragem
e determinação em muitos outros momentos. Conjuntamente com o marquês de Olhão
/conde de Castro Marim (D. Francisco José da Cunha de Mendonça e Menezes), foi
dos primeiros a manifestar a sua discordância face aos termos humilhantes e
ofensivos em que fora assinada a Convenção de Sintra (30/8/1808) entre a França
e a Inglaterra, sem Portugal ser chamado a opinar sobre o seu próprio destino,
permitindo aos Franceses retirar-se do país que tinham devastado com todo o
produto do saque, perante a passividade de quem mandava e a revolta do povo e
dos mais patriotas. O Artigo I desta convenção (de um total de XXII) previa a
entrega de todas as praças e fortes ao exército britânico e não às autoridades
portuguesas. O Artigo II não permitia que fossem feitos prisioneiros de guerra
entre os Franceses. O Artigo IV permitia que o exército francês levasse consigo
todo o armamento, incluindo o que tinha roubado ao exército português. O artigo
V pactuava com o saque que tinha sido levado a cabo: «O exército Francês levará
consigo tudo quanto se compreende debaixo da denominação de propriedades do
exército, a saber, a sua caixa militar e carros de adidos ao comissariado e aos
hospitais de campanha ou lhe será permitido dispor de qualquer porção das
mesmas que o comandante em chefe julgar desnecessário embarcar, do mesmo modo
todos os indivíduos do exército terão a liberdade de disporem das suas
propriedades particulares, de qualquer descrição que sejam, com toda a
segurança de futuro para os compradores.» Etc., etc., etc. (cf. A History of the Peninsular War, Sir Charles William Chadwick Oman
(1860-1946), Vol. 1, Oxford, 1902, págs. 625-628).
Entre
os muitos documentos em que procurei o nome de Bernardim Freire de Andrade,
encontrei uma carta (escrita em Inglês) especialmente curiosa. Numa
carta-relatório dirigida ao general inglês Craddock, o barão de Eben (que
chefiou tropas durante a 2.ª invasão, prendeu Bernardim aparentemente para o
proteger e foi mais tarde considerado um dos conspiradores de 1817, condenado
com Gomes Freire, mas apenas à expulsão do país) queixa-se de Bernardim por
este tender a agir autonomamente não prestando contas de todos os seus
movimentos aos generais ingleses e por tardar muito na transmissão de
informações. Bernardim, de forma muito singela, terá apenas dito que, se não
informara os generais ingleses antes, era porque “não tinha tempo”. Tal atitude
pareceu rebelde e insultuosa, no entanto se tivesse comunicado as suas
intenções aos Ingleses nunca poderia ter posto em prática a sua estratégia tão
pouco ortodoxa mas vencedora. Cerca de um mês depois do assassinato de
Bernardim, os exércitos de Soult são obrigados a retroceder e a abandonar
Portugal (18/5/1809), em grande parte devido à estratégia que tinha seguido
Bernardim. A sua integridade moral foi demonstrada em múltiplas situações, por
exemplo quando ele e outros generais Portugueses recusaram as armas e o dinheiro
que os Ingleses lhes ofereceram quando os seus exércitos estavam completamente
desfalcados e na penúria. Pura estupidez, naquela situação? Talvez fosse mais o
orgulho nacional, queriam vencer sem o auxílio estrangeiro.
Existem outras interpretações. Segundo
Robert Southey (History of Peninsular War, vol. I, London, 1828), Bernardim
teria na sua posse informações sobre as movimentações do exército francês que
não quis partilhar com os Ingleses por estar convencido de que estes seguiriam
uma estratégia “errada”. Aparentemente, o exército francês não se dirigia para
o ponto onde os Ingleses pensavam poder enfrentá-los com vantagem, mas estavam
sim a posicionar-se na rectaguarda dessa linha, o que podia revelar-se
catastrófico. Southey narra também como ocorreu a morte de Bernardim e o papel
desenrolado pelo barão de Eben (Christian Adolph Friedrich Eben, 1773-1825,
militar prussiano ao serviço do exército português e britânico).
A outra pergunta que deixo aqui é esta: e
aqueles que assassinaram Bernardim, terão alguma vez sabido que assassinaram um
anti-herói que foi afinal um verdadeiro herói nacional que deu a sua vida para
defender aqueles que o mataram? Não se esqueçam de Bernardim, de todos os
Bernardins! Acordai!
O que aconteceu a Bernardim aconteceu a
outros. Foram mortos pelo seu próprio povo que erradamente os tomou por
colaboracionistas e seus inimigos. Provavelmente, foram esquecidos precisamente
porque foram mortos pelo povo e não pelo poder instituído.
Além de Gomes Freire, executado de forma
humilhante (obrigado a usar a “alva branca dos enforcados” em vez de ser
fuzilado com o seu uniforme como acontecia com os militares) no Forte de S.
Julião da Barra, foram também executados os seguintes, no Campo de Santana,
hoje Campo dos Mártires da Pátria, no dia 18 de Outubro de 1817:
*
Condenados a ser enforcados, decapitados e depois queimados, sendo os seus
restos mortais lançados ao mar, tal como aconteceu a Gomes Freire. (Reza a
lenda macabra que os restos de Gomes Freire terão regressado à praia duas vezes
antes de serem definitivamente levados pelo mar. Talvez não seja uma lenda
porque Sousa Falcão refere estes factos horrendos, acrescentando apenas que os
cães se entretinham a devorar os restos do general que tinham dado à praia e
que alguém terá acabado por enterrá-los aí mesmo.)
- António Cabral Calheiros
Furtado de Lemos
- Henrique José Garcia de
Moraes
- José Campelo de Miranda
- José Joaquim Pinto da
Silva
- José Ribeiro Pinto
- José Francisco das Neves
- Manuel Monteiro de
Carvalho
* Condenados a ser
enforcados:
- Manuel de Jesus Monteiro
- Manuel Inácio de
Figueiredo
- Máximo Dias Ribeiro
- Pedro Ricardo de
Figueiró
* Condenados ao degredo
para Angola:
- Francisco António de
Sousa
* Condenados ao degredo
para Moçambique, por dez anos
- António Pinto da Fonseca Neves
* Condenados ao degredo
para Angola, por cinco anos
- Francisco de Paula Leite
* Condenado a ser expulso
de Portugal
- O barão Frederico de
Eben (Christian Adolph Frederick Eben, c. 1773-1825).
***************************************************************
Desastre da Ponte das Barcas - dedicada ao Ill.mo., e Ex.mo Senhor Nicolao Trant Governador da Cidade do Porto, c. 1810.
Vue de la ville et du port de Porto por Henry L'Evêque (1769-1832), London, 1817.
Restauração do Porto, por Manuel da Silva Godinho, c. 1751-1809, 1809.
Bernardim Freire de Andrade e Castro (1759-1809)
por Gregório Francisco de Queirós, 1768-1845, gravador de S. Mag. fez, c. 1820.
Marechal Silveira, Conde de Amarante - Entre 1809 e 1820.
The Defence of Saragossa by Sir David Wilkie, 1785-1841, 1828.
Junot Protegendo a Cidade de Lisboa, pintura a óleo inacabada de Domingos Sequeira realizada em 1808, Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto.
É evidente que nada de protector irradia desta pintura. O que se entrevê é a destruição e a opressão. Note-se o fundo sombrio em que os exércitos franceses desfilam, os destroços que cobrem o chão e o manto vermelho de Lisboa, que evoca mais o sangue e o sofrimento do que a protecção e a vida. É fácil perceber por que é que Domingos Sequeira nunca concluiu esta tela.
Lisboa protegendo os seus habitantes, por Domingos Sequeira, 1812.
Este sim, é um quadro verdadeiro e inspirador.
É a própria cidade e a identidade nacional que ela representa que protege os habitantes de Lisboa,
não o general Junot.
É a própria cidade e a identidade nacional que ela representa que protege os habitantes de Lisboa,
não o general Junot.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Série das Invasões Francesas por Cirilo Volkmar Machado, 1748-1823, c. 1807-1809.
Sopa de Arroios por Domingos António de Sequeira, 1768-1837, Lisboa, 1813.
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