quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

Toma Lá! 2024-2025 - Série Especial - Fotografia III

     Esta é a terceira série especial dedicada à fotografia do folheto Toma Lá! 2024-2025. Os textos oscilam entre a esperança e o desalento, tal como o estado do mundo. Da selecção de textos, ficam aqui dois, um de Shel Silverstein e outro de A. E. Housman.



Where the Sidewalk Ends

There is a place where the sidewalk ends
And before the street begins,
And there the grass grows soft and white,
And there the sun burns crimson bright,
And there the moon-bird rests from his flight
To cool in the peppermint wind.

Let us leave this place where the smoke blows black
And the dark street winds and bends.
Past the pits where the asphalt flowers grow
We shall walk with a walk that is measured and slow,
And watch where the chalk-white arrows go
To the place where the sidewalk ends.

Yes we'll walk with a walk that is measured and slow,
And we'll go where the chalk-white arrows go,
For the children, they mark, and the children, they know
The place where the sidewalk ends.

Shel Silverstein (1930-1999)


Stars


Stars, I have seen them fall,
But when they drop and die
No star is lost at all
From all the star-sown sky.
The toil of all that be
Helps not the primal fault;
It rains into the sea,
And still the sea is salt.

A. E. Housman (1859-1936)



TOMA LÁ! 2024-2025 - Série Especial - Fotografia II

     Esta segunda série especial do folheto Toma Lá! 2024-2025 dedicada à fotografia tem muitas mais imagens do que textos. De entre os poemas ficam abaixo dois, um de Rainer Maria Rilka e um de Jacques Prévert.



PRESAGING


I am like a flag unfurled in space,
I scent the oncoming winds and must bend with them,
While the things beneath are not yet stirring,
While doors close gently and there is silence in the chimneys
And the windows do not yet tremble and the dust is still heavy
Then I feel the storm and am vibrant like the sea
And expand and withdraw into myself
And thrust myself forth and am alone in the great storm.

Rainer Maria  Rilke (1875-1926) in Poems, New York, 1918.

LA RIVIÈRE


Tes jeunes seins brillaient sous la lune
Mais il a jeté
Le caillou glacé
La froide pierre de la jalousie
Sur le reflet
De ta beauté
Qui dansait nue sur la rivière
Dans la splendeur de l’été.

Jacques Prévert (1900-1977)





TOMALÁ! 2024-2025 - Série Especial - Fotografia I

      No ano de 2024-2025 (Setembro de 2024 a Junho de 2025) produzi três séries especiais sobre fotografia acompanhada de textos de diversos autores, sobretudo poesia.


Dois dos muitos poemas incluídos nesta série:

SOMETIMES


Sometimes, when a bird cries out,
Or the wind sweeps through a tree,
Or a dog howls in a far off farm,
I hold still and listen a long time.

My soul turns and goes back to the place
Where, a thousand forgotten years ago,
The bird and the blowing wind
Were like me, and were my brothers.

My soul turns into a tree,
And an animal, and a cloud bank.
Then changed and odd it comes home
And asks me questions. What should I reply?

Hermann Hesse (1877-1962)

A PRAYER FOR THE WORLD


Let the rain come and wash away
the ancient grudges, the bitter hatreds
held and nurtured over generations.
Let the rain wash away the memory
of the hurt, the neglect.
Then let the sun come out and
fill the sky with rainbows.
Let the warmth of the sun heal us
wherever we are broken.
Let it burn away the fog so that
we can see each other clearly.
So that we can see beyond labels,
beyond accents, gender or skin color.
Let the warmth and brightness
of the sun melt our selfishness.
So that we can share the joys and
feel the sorrows of our neighbors.
And let the light of the sun
be so strong that we will see all
people as our neighbors.
Let the earth, nourished by rain,
bring forth flowers
to surround us with beauty.
And let the mountains teach our hearts
to reach upward to heaven.

Amen.

Rabbi Harold S. Kushner




TOMA LÁ! - Série III - 2024-2025

     O YouTube bloqueou a incorporação dos meus próprios vídeos neste blog. Abaixo ficam os links e os textos de abertura que escrevi para esta série. Um dos links está aplicado sobre a imagem do vídeo que deveria ser incorporado nesta publicação. 

NOTA: Cerca de uma hora após a edição desta publicação, a imagem do vídeo apareceu!!! NÃO altero o texto escrito acima por razões óbvias. Não é a AI que bloqueia ou apaga cegamente canais ou vídeos, são seres humanos com critérios autocráticos e nenhuma consciência moral. Esta nota repete-se em todos os vídeos que fui impedida de incorporar.  




Toma Lá! - 2024-2025 - Textos de abertura

Série III – Abril a Junho de 2025

N.º 1

     Não existem coisas simples. Podem parecer objectivamente simples, mas não são. A perspectiva e a subjectividade é que faz com que pareçam simples. Olhamos e vemos o todo, minúsculo ou enorme. Não vemos a composição química da água numa gota de água, não vemos glóbulos e plasma numa gota de sangue, não vemos um código genético nas íris ou na textura da pele. Não vemos nem dizemos a complexidade que vive invisível em cada coisa. Quando muito, pensamos nela, que é também uma forma de ver. Se analisamos e decompomos a simplicidade nas suas partículas constituintes, a simplicidade torna-se complexa e inapreensível como um todo. É a aparente objectividade da percepção que apreende cada coisa como um todo inteiro e cria a ilusão de simplicidade. Ainda bem. Seria insuportável olhar constantemente o mundo com olhos de microscópio que vêem muito para além da superfície intacta e simples das coisas. Uma pintura abstracta reduz a complexidade aos seus traços mais simples, mas filtrados através de uma percepção e de um pensamento subjectivo. O aparente caos labiríntico da abstracção, às vezes até parece uma forma de repouso do olhar.

N.º 2

     A vida da maioria dos seres vivos é uma caminhada pela areia, sempre mutável, sempre dedicada a apagar todas as marcas do tempo, do passado e até do presente. Nem a areia húmida consegue preservar durante muito tempo as pegadas dos caminhantes. E se algum ser, comum ou extraordinário, imagina imprimir na superfície das águas o que não pode imprimir na areia, também não terá muita sorte. O humano coloca-se no centro de todas as coisas, mas o mundo natural parece ignorar por completo esta sua pretensão. A natureza guarda apenas a história e a memória de si mesma. O ser humano tem de encontrar outras formas de persistir no tempo, para além da matéria que deixa atrás para se decompor e recriar. Tais pensamentos são raros entre os comuns mortais. “Os filósofos que se afundem em questões e angústias existenciais!”. Mas até um filósofo se esquece das mais obscuras interrogações quando o sol brilha e se compraz em ver a água apagar as suas pegadas na areia húmida. E esta também é uma bela maneira de filosofar e não só para Epicuro.

N.º 3

     Admirar é sempre uma forma de amar, é sempre parte do amor. É difícil amar quem não se admira. E não é preciso ter qualidades excepcionais, superiores às dos comuns mortais, para se ser admirado. As qualidades vivem tantas vezes mais em potência do que em realização plena. As qualidades realizadas nos dias comuns é que são o verdadeiro alicerce de todo o ideal. As personagens que vivem nas grandes obras literárias são tantas vezes tomadas como um ideal de vida, de valores éticos e espirituais, um arquétipo real. A minha avó materna nada tinha de ideal ou arquétipo, mas podia ser a heroína de um livro sobre gente comum que transcendeu os seus limites enfrentando a adversidade e mantendo a humildade dos gratos que fazem dos pequenos ou grandes actos uma missão que atribuíram a si mesmos, mesmo que olhem os céus e pensem que a força de persistir lhes vem do alto. Os que sobrevivem aos sucessivos golpes da incerteza e da condição humana são já heróis, anónimos ou desconhecidos tantos deles, mas certamente amados e admirados por quem teve o privilégio de coexistir com eles.

N.º 4

     O que os olhos viram um dia e o coração sentiu fica para sempre gravado algures nos vastos arquivos da mente. A memória, que é a bibliotecária-mor, vai lá com frequência, mas nem sempre encontra o que procura. Em contrapartida, encontra com frequência um elo perdido, uma migalha insignificante, um esboço descorado que surpreendentemente permite completar tantos quadros e livros que se julgavam perdidos ou indecifráveis. Mesmo as crianças desatentas e estouvadas viveram e aprenderam muito mais do que julgam lembrar. As crianças curiosas, por seu turno, parece que passam a vida inteira atentas a tudo, procurando e questionando, guardando nos maravilhosos bolsos da alma muito mais do que poderiam apanhar com as mãos, carregar nas mochilas ou guardar nas gavetas da infância. Todavia, não há grande diferença entre umas e outras; só varia o grau de consciência com que apreendem o mundo e o guardam e a razão por que o fazem. Umas sabem já que o tempo passa veloz e que tudo é precioso demais para ser ignorado. Outras fazem-no sem querer nem saber porquê. A razão de tal atenção e vontade de preservar só se revela muito mais tarde.

N.º 5

     Alguém afirmou que os “obstáculos são o que vemos quando desviamos os olhos do objectivo”. Compreende-se. Se o objectivo se perde de vista, as dificuldades deixam de ser desafios, que até podem ser estimulantes e motivadores, para serem barreiras intransponíveis ou uma espécie de azar selectivo com vontade própria que parece apostado em obstaculizar uns e não outros. Não sei se o azar existe, mas existem pessoas que se dedicam a impedir que outras atinjam os seus objectivos, por muito bons, elevados e benéficos que sejam para todos. Há outras que parecem os portadores inesperados ou dedicados da sorte que têm o condão de trazer um súbito golpe de sorte no momento mais sombrio. Também não sei se a sorte existe, mas existem pessoas de ambas as espécies. Existem também muitas formas de olhar e interpretar os factos e as acções humanas. Uma das formas de transpor obstáculos é conhecê-los antecipadamente ou imaginar como podem ser transpostos se forem encontrados. O único senão reside no facto de os obstáculos serem maioritariamente pessoas bem reais que cometem actos concretos. Ainda assim, antever o golpe pode ser a única forma de o evitar. Só é lamentável que se desperdice a imaginação em tal tarefa em vez de a deixar voar livremente para ver e criar algo de bom, genuíno e belo.

N.º 6


     Algumas imagens valem mesmo mais do que mil palavras. Muitas dessas imagens não foram criadas na origem ou na íntegra por seres humanos; foram antes uma tentativa de imitação de uma imagem natural que nem mil palavras poderiam descrever, imitar ou substituir. A imitação é sempre uma tentativa de ser, imperfeita e incompleta. Não existe imitação integral, nem sequer na fotografia ou nos efeitos especiais digitais. A imitação transcende a forma. Quantas vezes, uma imagem difusa parece ser uma imitação mais fiel do que uma representação formalmente rigorosa? Ainda bem que tantos pintores souberam fundir misteriosamente o objecto observado com o objecto imaginado e sentido. É nesse ponto de união que vivem as mil palavras que se tornaram supérfluas.

N.º 7

     Após a invenção da fotografia, do cinema e da televisão, durante longas décadas, todas as cores foram reduzidas a uma paleta de preto, branco e uma gama de cinzentos. E tudo parecia perfeito, absolutamente realista e evocava todas as cores que não se viam. Cada espectador era a seu modo e inconscientemente um pintor. Cada um pintava o mundo preto e branco que via em segunda mão com as cores subjectivas da sua experiência, gosto e imaginação. Ou então nem se apercebia que o que via era apenas preto e branco porque sabia inconscientemente que na realidade não existe nada que seja absolutamente preto e branco e via nas imagens apenas uma tentativa incompleta de abarcar a realidade que é naturalmente multicolor. Este tipo de reflexões sobre a representação das cores do mundo só surgiu depois da aparição da cor nas suas representações modernas (fotografia, cinema, televisão). Durante séculos, os pintores nunca fizeram a reflexão inversa: pode o mundo ser visto apenas a preto e branco? Não era preciso. Essa possibilidade não se colocava como natural ou necessária. Depois de décadas a olhar imagens a preto e branco, a cor parece ter adquirido novas dimensões e um valor expressivo e estético que não tinha antes. A cor desperta os sentidos, intensifica a sensação de olhar, sentir e criar e a própria consciência de estar vivo.

N.º 8

     O que desconhecemos gera o que conhecemos. Descobrir e inventar são formas de conquistar e iluminar o desconhecido. Nas primeiras fases desse longuíssimo e sempre inacabado percurso, o homem criou o absurdo e o impossível e acreditou neles. Criou divindades e espíritos e estabeleceu estreitas conexões com eles. Criou identidades invisíveis para o mundo visível e os seus fenómenos. De cada novo segmento desconhecido do mundo vislumbrado surgia uma nova percepção do desconhecido e uma nova crença. A crença criava a ilusão de conhecer e fornecia um modo mágico de comunicar com o desconhecido e de se proteger dele. Aí residem as primeiras raízes da técnica e da ciência e das próprias religiões. Depois de milénios de descoberta e invenção, o desconhecido persiste e foi-se expandindo de novas formas à medida que uma nova descoberta revelava novas limitações e colocava novas questões. Entre os povos que vivem em lugares remotos onde a ciência, tal como a conhecemos hoje, ainda não chegou, a própria ciência e as invenções que lá chegam são um mistério e uma nova forma de desconhecido. O visitante desconhecido é ele próprio uma manifestação de uma divindade desconhecida que começa sempre por ser temida. O medo está também na raiz da ciência e das religiões. A magia e a superstição não são, nesse contexto, uma forma de ignorância, mas uma forma de conhecimento e de protecção do desconhecido.

N.º 9

     Se a mesma água da mesma nascente pudesse ser bebida duas vezes, repetidas vezes, a linearidade do tempo humano não existia ou teria um significado muito diferente. Crescer e envelhecer seriam experiências que poderiam ser repetidas, recriadas, saboreadas com outro vagar ou outra perspectiva. Mas se beber a mesma água fosse inevitável, então a passagem do tempo seria ainda inexorável e cada experiência, boa ou má, impossível de evitar ou modificar. Esta hipótese impossível talvez demonstre que a irrepetibilidade de cada momento e a impossibilidade de alterar cada experiência são a forma mais exigente e serena de fluir no tempo.

N.º 10

     No mito alegórico e literário de Pigmalião e Galateia, Pigmalião (o escultor) cria Galateia (a escultura feminina) por antítese às mulheres do seu tempo, que considerava devassas e sem virtudes que merecessem o seu amor. Cria a escultura como projecção do seu ideal feminino e como uma companhia para o seu espírito. Com o tempo, o ideal tornou-se insuficiente e Pigmalião pediu a Afrodite que lhe permitisse encontrar uma mulher de carne e osso como a sua Galateia. Afrodite concedeu-lhe o desejo e deu vida à própria Galateia esculpida por Pigmalião. O casal teve dois filhos, um menino e uma menina e viveu feliz. A literatura veio dar novas tonalidades de sentido ao papel de Pigmalião. Bernard Shaw substituiu o escultor por um professor e filólogo que tenta ensinar e educar uma jovem vendedora de flores que não sabe ler nem escrever e fala de forma grosseira. Com a ajuda da própria mãe, o professor torna a rapariga numa senhora culta e requintada. É esta a história do filme My Fair Lady, adaptação do Pigmalião de Bernard Shaw, que adapta e recria o mito da Antiguidade grega. Mas o professor não criou a rapariga, apenas tentou reeducá-la, mostrando como o contexto social e cultural é ele próprio um “escultor”. Reeducar a rapariga começa por ser um desafio científico. Só depois de a “obra” estar consumada é que o professor vê finalmente o “novo” ser humano que sempre existiu. O egocentrismo do mestre é afinal o escultor, que ama a sua própria obra e o seu próprio eu que a criou.



TOMA LÁ! - Série II - 2024-2025

      O YouTube impede agora a incorporação dos meus próprios vídeos neste blog. Os links e a imagem do vídeo que deveria ser incorporado ficam abaixo, assim como todos os textos de abertura que escrevi para esta série. Os textos são curtos e não têm parágrafos porque têm de ser encaixados em metade da capa de um folheto de tamanho A5.

NOTA: Cerca de uma hora após a edição desta publicação, a imagem do vídeo apareceu!!! NÃO altero o texto escrito acima por razões óbvias. Não é a AI que bloqueia ou apaga cegamente canais ou vídeos, são seres humanos com critérios autocráticos e nenhuma consciência moral. Esta nota repete-se em todos os vídeos que fui impedida de incorporar. 

TOMA LÁ! 2024-2025 - Série II - Janeiro-Março 2025 - Concepção & edição de São Ludovino


TOMA LÁ! 2024-2025 - Série II - Janeiro-Março 2025 - Concepção & edição de São Ludovino


LINK - TOMA LÁ! 2024-2025 - Série II

Toma Lá! - 2024-2025 - Textos de abertura

Série II – Janeiro a Março de 2025

N.º 1

     Excepto no domínio das ciências exactas e no domínio do conhecimento técnico, são poucas as lições que podem ser simplesmente ensinadas. As verdadeiras lições são aprendidas, mesmo que não sejam ensinadas. Resultam de uma busca incessante, do desejo de aprender e da forma como a experiência individual é assimilada e transformada em conhecimento cognitivo e emocional. Olhar para dentro é tão essencial como olhar para fora.

N.º 2

     Independentemente das crenças metafísicas, só vivemos uma vez, pelo menos com consciência disso. Isso deveria ser suficiente para demonstrar que a realidade não se desfaz. Cada acto cometido, bom ou mau, é eterno dentro da finitude da vida e tem consequências definitivas, mesmo que os que foram atingidos por esses actos renasçam, dentro da sua finitude, contra todas as expectativas e prossigam o caminho, como almas puras e intactas. Esta simples constatação também deveria ser suficiente para valorizar a consciência moral e a colocar no centro de toda a acção humana, como um guia e um instrumento de aferição. Em algumas filosofias e em alguns documentos fundacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a ética tem de facto esse lugar central, mas em ambos os valores morais permanecem no plano da abstracção. São como faróis que se avistam ao longe num mar revolto, mas se ignoram porque parecem uma ilusão ou inatingíveis. Os valores morais são bem reais, porque emanam da realidade e determinam o rumo e o valor de cada ser humano, de cada instituição, sociedade, ideologia ou religião. A verdadeira evolução individual e civilizacional só pode ter lugar se os valores fundamentais forem tomados como a matriz dos actos reais, que não se desfazem e têm consequências pelos quais cada um é definitivamente responsável.

N.º 3

     A árvore “trabalha” toda a vida para ser apenas árvore, não para ser casa, mesa ou papel. A árvore não tem um destino, tem uma natureza constante e perfeita. Quem escolhe o destino das árvores são os homens, escolhem-no com determinação e propósitos práticos, sem se aperceberem de que estão apenas a obedecer às potencialidades da árvore, que se pode tornar casa, mesa ou papel porque isso estava já na sua natureza. Depois, os homens contam no papel feito da árvore o modo como extraíram dela algo inteiramente novo, como se fossem eles os inventores da natureza da árvore e de todas as potencialidades que o seu anonimato encerra.

N.º 4

     O ser humano tenta medir as coisas, quase todas as coisas, até as coisas imensuráveis, intangíveis e mutáveis. Medir e quantificar parece dar algum grau de certeza e segurança, um alicerce seguro para uma vida em constante mudança. E leva-se a medida para todo o lado, como uma bengala para suportar o cansaço e os percalços da caminhada. Não basta medir a temperatura do ar ou a velocidade do vento, medir a altura ou o peso do corpo, medir as distâncias e os anos-luz, a longevidade e as variáveis demográficas, as dioptrias ou o quociente de inteligência cognitiva, emocional, social ou sabe-se lá o quê. É preciso medir a exactidão das palavras e o peso da alma. Dizem que a alma pesa apenas 21 gramas, 21 gramas medidos com instrumentos concretos que desconhecem o que seja o peso da alma, que nada tem de concreto ou material. Mede-se a materialidade e a transcendência do mesmo modo, numa tentativa de tudo tornar palpável, dominável, cognoscível, dotado de uma transparência exacta e constante. Só não há medida para a mudança e ela é a mais constante e inevitável de todas as realidades. Os números gemem e pedem para ser libertados de tantas funções e tanta responsabilidade. Imploram às palavras, as mais exactas possível, que venham em seu socorro e digam com suave exactidão que, na verdade, nada pode ser medido apenas pelos números, apenas pela superfície que se deixa mensurar como um gato independente e esquivo deixa que a mão impositiva lhe acaricie o pelo.

N.º 5

     Cada um tem a sua janela. Umas dão para uma bela vista desafogada que só dá vontade de ficar ali a olhar, algumas dão para o mundo lá fora, outras para o mundo cá dentro, algumas dão para todos os lugares e outras dão para um beco sem saída. As janelas que dão para um jardim são as que oferecem mais variedade e motivo de observação e reflexão, sobretudo se o jardim é público e frequentado. Janelas que dão para um jardim privado há poucas e normalmente quem habita a casa que lá fica poucas vezes vai à janela e muitas vezes esquece-se do privilégio de ter um jardim. E há quem não tenha jardim mas tenha muitas janelas, como a abelha ou a formiga que, de entre as pétalas de uma flor, se sentem à janela das suas casas e observam o resto do mundo lá fora, sabendo bem que as suas janelas-corolas também são vistas, também são parte da paisagem de alguém, que as vê ou ignora antes de murcharem ou serem colhidas por alguma mão displicente.

  N.º 6

     Ninguém sabe despedir-se do que ama. Se ama, não quer despedir-se, nunca. Ninguém sabe despedir-se da própria vida, mesmo quando apenas deseja continuar a plantar macieiras ou contemplar mais outro e outro pôr do sol, que anuncia a noite que anuncia um novo amanhecer. Quem ama a vida nunca se despede de nada nem de ninguém. A despedida é apenas mais uma estação no ciclo das estações e o íntimo desejo é o de que a última estação não chegue nunca ou chegue tarde, muito tarde, tão tarde que o sono venha primeiro adormecer o medo ou a dor da partida. Mas há seres que querem partir, partir antes de serem forçados a partir, antes que o mundo escureça mais e não reste uma centelha de luz para alumiar a viagem. E a escuridão não vem necessariamente do âmago da alma. Às vezes vem da crosta estalada e das entranhas carcomidas do mundo. Vem densa e voraz envolver os corações e as mentes dos justos, dos puros, dos felizes. Vem desafiar a última gota de coragem ou cravar na alma a última dúvida. Stefan Zweig foi uma destas almas justas, puras e amantes da vida que decidiu despedir-se antes de conhecer a profundidade abissal da escuridão que foi forçado a conhecer apenas na superfície, apenas adivinhando o capítulo seguinte.

 N.º 7

     A polissemia das palavras não é apenas um fenómeno linguístico que pode ser estudado e dissecado, às vezes como se a língua fosse apenas um corpo construído num único momento do tempo. É também um fenómeno antropológico, sociológico, filosófico e até puramente idiossincrático. O significante e o significado dos signos linguísticos de cada língua foram sendo construídos ao longo de séculos, acompanhando a evolução social, cultural e tecnológica dos povos. A criação da maior parte dos vocábulos resultou da necessidade de nomear as coisas concretas, mas a esfera espiritual e, sobretudo, o mundo criativo das artes deu o maior contributo para o alargamento da dimensão conceptual e semântica das palavras. Todavia, nem só os escritores e poetas foram grandes criadores de novas palavras e novos sentidos. Cada um se apropria das palavras a seu modo e imprime-lhe a sua própria sensibilidade e percepção do mundo. Por isso, temos de explicar tantas vezes o que de facto queremos dizer. A noite ou o dia de uns não é o dia ou a noite de outros. Enquanto uns sonham apenas quando dormem, outros sonham adormecidos ou acordados e o sonho, que é muito mais do que a palavra que o nomeia, continua a ser tudo o que lhe aprouver, tigre-vegetal-papel-árvore-gente de seda-respiração inteira do mundo…

N.º 8

     A coragem de quem se levanta todos os dias antes do nascer do sol para trabalhar quinze ou mais horas, sem claudicar, sem recompensa proporcional ao esforço, sem esperança de que amanhã será diferente, é admirável e trágica, e, ainda assim, nem sequer é considerada coragem por muitos. É apenas um sacrifício vão, é desistência e resignação. Por inglória que seja esta coragem, é de facto coragem e determinação. Ignorá-la é apenas uma forma de culpar o sacrificado pelo seu sacrifício. Nesses heróis anónimos do quotidiano eu vejo antes o sustentáculo do mundo e a manifestação de uma luta contínua contra a adversidade. Por esses, eu protesto e clamo por justiça. A esses, eu vejo-os viver e morrer de pé, como árvores que não nos deixam esquecer que a evolução da humanidade continua a ser trilhado por caminhos desiguais. A evolução de alguns é demasiadas vezes a regressão de muitos. A coragem de continuar, mesmo assim, é também a dignidade possível.

N.º 9

     Generalizar é perigoso, sobretudo quando a generalização se aplica a pessoas, mesmo quando pertencem a um mesmo grupo. Na mesma árvore crescem e renascem infinitas folhas; pertencem à mesma espécie, mas não são inteiramente iguais. A espécie determina as características essenciais dos seus membros e pode, de facto, dar a impressão de que todos os elementos são iguais. Os humanos, muito mais do que as plantas, são facilmente influenciáveis e têm dificuldade em rever a sua própria identidade e natureza. Mantêm-se fiéis ao grupo porque sentem falta do grupo para existir e fruir o gratificante sentimento de pertença. Quando o grupo erra, mesmo que de forma grosseira, poucos são os que se atrevem a questionar o rumo e a estrutura do colectivo. E da simples pertença passam para o unanimismo, que é tão perigoso como a generalização, e torna os dissidentes vítimas dos seus próprios pares. Ditaduras e organizações terroristas não admitem a mínima divergência e matam tanto os que pertencem ao grupo como os que se lhe opõem.

N.º 10

     Um ermita pode viver feliz e com absoluta paz de espírito isolado do mundo, longe dos seus iguais e desiguais. Os ermitas são uma raridade numa sociedade gregária, mergulhada constantemente em simulações de comunicação e partilha. O isolamente, voluntário ou forçado, pode ser em si mesmo um estado de espírito, mesmo que o ermita espiritual viva entre as multidões. O ermita voluntário raramente se sente só quando está só e inadaptado quando vive e interage com os outros. O solitário à força vive ansioso e contrariado, como se enfrentasse constantemente uma tempestade interior e exterior que não amaina. Há quem procure o isolamento para se aproximar da divindade. Esses vivem quase sempre entre as plantas e os animais. Nunca estão verdadeiramente sós, mas meditam frequentemente sobre a solidão dos que não têm alternativa, os que já percorreram a maior parte da estrada, os que se encontram sempre numa encruzilhada e os que perderam as forças para caminhar.

N.º 11

     Um dia, vais saber, um dia conhecerás o que é ser deveras humano. Um dia, tu e os outros saberão se és deveras humano. Um dia, saberás se és um humano entre os humanos. Um dia, aprenderás da melhor ou pior maneira, se é possível permaneceres humano entre os desumanos. No teu pequeno ninho, sentes-te humano, és humano da maneira mais simples: sendo livre, sendo tu, amando quem te ama, recebendo e dando as dádivas comuns dos dias comuns. No teu sereno recanto mundo, as notícias do horror distante parecem ficção. Estás a salvo da realidade, da tragédia que continua latente a decorrer ao longe sem que se vislumbre o desenlace ou se adivinhe como será feita justiça. Ainda bem que ainda não sabes qual é exactamente a diferença entre ser humano e desumano. Toma o teu tempo, respira a tua inocência. Terás tempo de aprender vezes sem conta, não porque queiras, mas porque conhecerás as outras faces do mundo. Espero que tenhas sempre tempo para a recuperar e defender até à morte.

N.º 12

     Mesmo os mais desprendidos e mesmo os mais egocêntricos fazem colecções de qualquer coisa. Normalmente coleccionam o que é valioso e confere algumas espécie de estatuto. Coleccionar o inútil, o que não tem grande valor material ou que é efémero é a forma mais generosa e gratificante de coleccionar. Essas colecções poucos as fazem. Folhas secas desfazem-se com o tempo, excepto se forem secas com a técnica mais adequada. Quem folheia e lê livros antigos pode encontrar muita coisa dentro deles, para além das narrativas, poemas ou ilustrações. Folhas secas e pétalas são provavelmente o achado mais frequente. Podem pertencer a plantas de outros lugares e são o resquício de um tempo pessoal que só o “coleccionador” pôde fruir. Cada genuína colecção é um arquivo de pensamentos, vivências e emoções.

N.º 13

     Os agredidos não deveriam ter necessidade de invocar o óbvio: o DIREITO a defender-se. Não é só um direito, é uma obrigação ética dos líderes perante os seus povos e dos indivíduos perante os seus pares. Se os agressores não são identificados como agressores, punidos como agressores, nem sofrem qualquer retaliação pelos actos cometidos, a agressão vai certamente repetir-se e a ética e a Humanidade são abolidas. Estabelecer uma falsa equivalência entre agressores e agredidos tornou-se banal e abriu caminho para mais agressões gratuitas. No caso dos Judeus, esta perda de “clareza moral” tornou-se um crime colectivo no qual são conscientemente coniventes os que os condenam sistematicamente por serem vítimas, por sobreviverem e ousarem, hoje, defender-se. Mais perigoso ainda do que a negação do direito dos agredidos a DEFENDER-SE, é não reconhecer aos agredidos sequer o direito a EXISTIR. Provavelmente, o último verso da Prece pela Minha Terra, de Herbert Pagani – «I defend myself, therefore I am» – não é suficiente, sobretudo quando um povo se tenta defender de crimes horrendos e recorrentes. Em vez de defenderem as vítimas, os “cegos morais” e os “profissionais do ódio” negam os crimes e defendem os assassinos…



TOMA LÁ! - Série I - 2024-2025

      Quando me preparava para publicar as seis séries do folheto Toma Lá! produzidas em 2024-2025, descobri que agora o YouTube me impede de incorporar os meus próprios vídeos neste blog. Desconheço o motivo, mas não pode ser honesto. Para permitir visualizar os vídeos, apesar do novo boicote e da continuada censura, ficam aqui vários links e a imagem vazia do vídeo que deveria ficar incorporado nesta publicação. 

     Abaixo ficam também todos os textos de abertura que escrevi para esta série.

NOTA: Cerca de uma hora após a edição desta publicação, a imagem do vídeo apareceu!!! NÃO altero o texto escrito acima por razões óbvias. Não é a AI que bloqueia ou apaga cegamente canais ou vídeos, são seres humanos com critérios autocráticos e nenhuma consciência moral. Esta nota repete-se em todos os vídeos que fui impedida de incorporar.  

TOMA LÁ! 2024-2025 - Série I - Setembro a Dezembro de 2024 - Concepção & Edição de São Ludovino

TOMA LÁ! 2024-2025 - Série I - Setembro a Dezembro de 2024 



Toma Lá! - 2024-2025 - Textos de abertura

Série I – Setembro a Dezembro de 2024

N.º 1

     Há muitas formas de falar sobre a realidade, de a revelar nua e crua, dolorosamente objectiva e incontornável de a transformar e recriar até parecer aquilo que não é ou de a manter viva sem nunca perder o nexo com os factos e a essência dos acontecimentos, na sua banalidade e singularidade, na sua humanidade e desumanidade. O turbilhão de acontecimentos que tem varrido o planeta nos últimos anos muito tem contribuído para encontrar novas perspectivas e novas vozes, mas também para a perigosa distorção dos factos mais inegáveis. Em 2020, a epidemia de Covid 19 matou milhões, afectou as economias nacionais de muitos países, provocou um isolamento involuntário e tornou mais presente a sensação de vulnerabilidade de cada ser. Em 2021, os Estados Unidos retiram subitamente do Afeganistão abrindo o caminho para mais uma teocracia islâmica bárbara e terrorista. Em 2022, a Rússia invade a Ucrânia em larga escala, depois de já ter ocupado parte do Donbass e anexado a Crimeia em 2014. Nos últimos dois anos e meio, os olhos do mundo estiveram centrados nos horrores a que a povo ucraniano tem sido submetido diariamente… até que, numa bela manhã de Outubro de 2023, milhares de rockets foram disparados sobre Israel a partir de Gaza, kitesurfs lançaram bombas incendiárias, drones armados com explosivos foram lançados sobre os kibutzim, as cidades e os campos e, o maior de todos os horrores, hordas de milhares de assassinos, na maioria civis, se infiltraram no Sul de Israel e demonstraram toda a barbárie que só o ódio e o mal absoluto conseguem executar: torturaram, esquartejaram, queimaram, violaram, decapitaram, executaram e festejaram com risos inumanos e rios de sangue os crimes cometidos. Depois do massacre de 7 de Outubro em Israel, tornou-se impossível não falar de Israel, da barbárie do terrorismo islâmico e das autocracias modernas tão semelhantes às antigas. Mas é por isso mesmo, porque o Mal continua aqui, real e inegável, que estes folhetos contém uma mescla de retratos e impressões da realidade presente e passada e pinceladas de fantasia e esperança redentoras. 

N.º 2

     O pensamento não pode ser comprimido e ainda menos as realidades interiores e exteriores de que o pensamento, consciente ou inconsciente, é a manifestação constante. O que se pode comprimir é a forma como se exprime o pensamento, as sensações e as emoções. Dizer em poucas palavras é sempre um desafio e uma escolha, uma selecção do que se pensa ou sente. É nesta condensação que tem origem a sinestesia, a metáfora e várias formas de literatura, como os haiku ou os microcontos. A maior dos pensamentos permanece apenas no plano mental, não se tornam linguagem escrita ou pictórica, embora, como afirmou Ferdinand de Saussure, ‘se o pensamento não é traduzível em palavras, não é verdadeiro pensamento, é uma massa amorfa de ideias, impressões e emoções’. Talvez estivesse certo, mas uma parte do pensamento está naturalmente destinada a permanecer silenciosa e indizível ou ninguém teria tempo para viver, apenas para verbalizar. Com tempo, concentração e algum esforço é possível traduzir em palavras uma grande parte do pensamento. O que permanece indizível talvez deva permanecer assim ou talvez seja apenas uma manifestação diferente da vida interior. Verbalizar implica pensar mais e mais, decompor, analisar, adoptar novas perspectivas. Realizar tal exercício permanentemente parece até uma forma de loucura ou uma forma de reduzir a vida apenas a palavras, ao que pode ser dito em palavras. E a vida é muito mais do que isso. Ainda assim, procurar dizer uma pequeníssima partícula daquilo que a vida e o pensamento contêm é um desafio que todos deveriam aceitar. Escrever o que se pensa traz mais clareza ao pensamento e revela novas perspectivas do prisma de infinitas faces que é o mistério de existir.

N.º 3

     Todas as criações artísticas são, antes de mais, criações do espírito, manifestações do diálogo de cada criador com o tempo e o espaço. As experiências vividas são parte deste diálogo. E há também um tempo e um espaço interior que confere a forma e preenche a substância final. Mas quantas vezes a obra final é uma obra inacabada, apenas uma das realizações possíveis ou o resultado de uma impressão passageira? Para se criar um estilo tem de haver continuidade, a persistências de escolhas, a descoberta de afinidades entre a forma e a substância criadas e a forma como a realidade é percebida, assim como a impressão de uma nova descoberta. Se alguém tenta representar uma noite estrelada, mas não sabe desenhar nem pintar, pode fazê-lo de uma forma inteiramente nova só porque não sabe fazê-lo de outro modo. Mas será isso a criação de um estilo? Claro que todos têm o direito e a capacidade de criar o seu próprio estilo, quer seja na escrita de um texto, no esboço de um desenho, na maquilhagem que usa ou na confecção de um prato. Mas essas são as artes e os estilos do quotidiano, que podem ter até muito de artístico e original. Os historiadores e críticos de arte tentam explicar o surgimento de novos estilos através de uma conjugação de factores ligados ao contexto histórico-cultural, os modelos vigentes na academia e a singularidade da biografia de cada criador. O que fica sempre por elucidar é a proporção de cada factor e a verdadeira natureza e força criadora das experiências pessoais e do carácter individual na obra criada. Poderia Van Gogh ter pintado como pintou se tivesse vivido na Antiguidade ou na Idade Média? Tê-lo-ia feito mesmo que não lhe fosse permitido ou fosse considerado um louco, como ele próprio se considerava? Provavelmente sim. A loucura genial é intemporal.

N.º 4

     O espírito torna-se mais leve e pleno de cada vez que se convence que é muito mais do que aquilo que lhe fazem, bom ou mau. E é de facto. Se assim não fosse, muitos já teriam sucumbido sob o peso do chumbo da infâmia e da maldade ou seriam apenas centelhas de luz metafísica desprendidas das constrições da matéria e das acções alheias. Todos esperam o bem, mesmo os que não o merecem e poucos medem o bem ou o mal que fazem aos outros e os motivos que os levam a fazer o que fazem. Os bons agem quase sempre de modo genuíno e espontâneo. Fazem o bem porque o bem está na sua natureza e nas fibras do seu próprio espírito. Os maus fazem o que são, mesmo sem premeditação, porque o mal habita as suas mentes e conduz as suas acções. E como entrou lá o mal e se espalhou em redor? Muitos culpam a educação, a sociedade, o exemplo de outros, as experiências vividas, o contexto, a endoutrinação… mas tudo isso vem de fora. Se fosse sempre assim, haveria ainda mais seres perversos do que há. O bem e o mal também são criados individualmente no interior de cada mente e cada consciência é responsável pelo que cria ou deixa crescer dentro de si. Se um espírito bom tenta convencer-se de que não é o mal que lhe fazem, isso não é apenas uma estratégia de sobrevivência, uma forma de manter a verdade viva ou de fazer uma espécie de justiça interior; é a manifestação do bem que transporta dentro de si, da sua natureza, que o salva das agressões externas como um sistema imunitário que só o bem genuíno pode gerar.

N.º 5

     Que belas fingidoras são as metáforas. Uma espécie de camaleões para todas as estações. Fingem analogias, antíteses, ironias, animismos, eufemismos… e tantas outras identidades. E ao contrário dos símbolos, com que se confundem frequentemente, as metáforas podem ser inconstantes e interrompidas a qualquer momento. Ser um “pescador de tempo” ou um “caçador de sonhos” evocam no plano da analogia apenas ideias, imagens e sentimentos belos. Mas se as acções de pescar e caçar forem tomadas na sua acepção literal, ambas são mortíferas e letais; algo vivo morre por estas acções. Então, o caçador de sonhos mata os sonhos ou aprisiona-os. Mas o que faz um pescador de tempo, se o tempo não é um peixe nem outro ser vivo? Mata o tempo ou conquista-o? Torna-o seu, apropria-se dele ou fá-lo navegar como lhe aprouver? Junta-se a ele e segue na corrente ou contempla-o apenas sem nunca lançar o anzol? Um verdadeiro pescador de tempo deve ser certamente um pescador de metáforas, venham elas de onde vieram e sejam quais forem as revelações que cada uma encerra. Claro que não são verdadeiramente as metáforas que fingem, mas quem as cria e usa. De algum modo cada metáfora contem uma hipálage que desloca o atributo ou a acção do sujeito para o objecto ou referente. E quantas vezes um referente extremamente concreto e vivo se torna abstracto e imortal para que a metáfora seja deveras bela.

N.º 6

     Colhemos o que semeamos, diz um adágio popular. Outro diz que “quem semeia ventos colhe tempestades”. Ambos são sábios e aplicam-se a muitas situações, mas nenhum deles é generalizável ou não haveria injustiças e cada um sofreria as consequências das suas escolhas e dos seus actos. A justiça é lenta e esse facto cria ainda mais a impressão de que muitos crimes nunca são punidos e são sempre as vítimas que se tornam repetidamente as vítimas, por ausência de justiça, pela morosidade dos processos, julgamentos e sentenças e porque a maleabilidade das palavras da linguagem jurídica permite aos juristas parciais, corruptos, preconceituosos, cobardes ou simplesmente comodistas, absolver quando deviam condenar ou minimizar a gravidade dos actos cometidos. A aplicação da lei e da ética é um trabalho árduo e constante que não deveria admitir pausas, adiamentos ou arquivamentos, que se devem apenas à incompetência e não à falta de provas ou à ausência de crime. Formalmente, se não há condenações não há criminosos, mas os crimes existem. Infelizmente muitos nunca colhem o castigo dos seus crimes, apenas a recompensa imoral, tornando outro adágio tragicamente mais verdadeiro do que os anteriores: o crime compensa, sobretudo quando a justiça se reduz a outro adágio – cada cabeça sua sentença. A justiça torna-se um espelho de quem a aplica, não a justa retribuição pelos actos cometidos. E assim vai morrendo lentamente a democracia e as instituições e valores que a sustentam, começando pela justiça.

N.º 7

     Há mais de três décadas, escrevi no Cântico da Sede que o ser humano sabe fazer quase tudo, excepto “amar como os deuses e morrer como as plantas”. Três décadas não são nada na evolução do Homo Sapiens Sapiens biológico e ainda menos na evolução da alma humana. A evolução das espécies também se faz no plano anímico, individual e colectivo. A alma de cada ser tem um desafio maior do que a espécie: evoluir no espaço de algumas décadas. A alma humana pouco evoluiu nos últimos cem mil anos ― talvez até tenha regredido pois desconhecemos tanto do que ficou lá atrás ― mas a evolução de cada alma individual é obra de cada um no curso do seu tempo de vida. Em vidas tão curtas como são as vidas humanas, a essência de cada ser pouco ou nada parece evoluir entre o nascimento e a morte, mas mesmo assim passa por múltiplas transformações que reflectem as experiências vividas e o trabalho interior de cada mente, que é muito mais do que filosofias de vida muito elaboradas ou os conselhos de outrem, mesmo que muito sábios. O quotidiano, com todas as pequenas e grandes exigências, deixa pouco tempo e pouco espaço mental para o labor da alma, para cada um procurar dentro de si o melhor e descobrir o que está lá adormecido e, tantas vezes, nunca acordado. Quantas vezes esses recantos contêm a chave da evolução possível? Quantas vezes um ser se tornou mau apenas porque deixou a alma definhar e ser violentada por impulsos mais superficiais, passageiros e mesquinhos.

N.º 8

     Em 1890, a minha avó materna, que tinha então 8 anos, bordava com toda a perfeição o abecedário num pano de linho. No final da década de 60, tinha eu 8 anos, a minha avó ofereceu-me essa maravilhosa relíquia que me pareceu obra impossível de realizar por uma criança tão pequena. Para provar que o feito era real e para recordar mais tarde, no final bordou a data. Décadas mais tarde, alguém fez desaparecer esse legado, assim como outras lembranças que a minha avó me deixara, incluindo uma moeda de cem réis do reinado de D. Luís. A antiguidade desses objectos tornava-os valiosos, mas só para mim e para a minha família eles eram mais valiosos do que os tesouros materiais e impessoais que movem os gananciosos deste mundo. Os meus legados foram roubados, deixaram de ter existência física na minha vida, mas na minha mente continuo a vê-los e a esperar que um dia voltem a aparecer, como por magia, nos locais onde estavam guardados. Mesmo sabendo que essa possibilidade é remota ou impossível, a existência interior destes legados continua a ser bem real; eles continuam a fazer perdurar o laço inquebrável com o ser que os criou e o amor depositado na dádiva. A textura das fibras de linho continua presente nas minhas mãos, a perfeição do trabalho continua a ser um exemplo e a longevidade do objecto, que teria hoje 135 anos, continuará a estender-se no tempo enquanto eu lembrar, falar e escrever sobre uma dádiva que deveria ter passado para outra geração. O objecto desapareceu, estará hoje nas mãos de quem não o ama, mas a memória dele continua viva e mantém vivo o elo que ele tornou ainda mais precioso.

N.º 9

     Em cada jardim há sempre um outro banco, um outro recanto ou miradouro de onde a vista pareceria mais aberta, mais pródiga, mais próxima do olhar, mais única do que a belíssima vista que vislumbramos do banco em que nos sentamos. Mesmo que esse lugar não exista, nem naquele nem em nenhum jardim, é esse o lugar do ideal. E esse banco em que não nos sentamos, essa vista ideal que não vemos dali, acaba por estar sempre presente no que vemos, no que selectivamente apreendemos do vasto panorama geral. Cada olhar leva consigo um pedaço do jardim e junta-o ao jardim ideal, esse lugar mutável, sempre em expansão. Por isso o ideal latente não limita a percepção, alarga-a e dá-lhe novas tonalidades. O banco em que não nos sentámos, o lugar ideal, existe afinal em todos os cantos e recantos do jardim, só porque estivemos lá e levámos connosco o ideal, que é mais uma lente interior do que uma ideia ou uma realidade acabada com contornos bem definidos e imutáveis. Se deixarmos o ideal esvoaçar como um pássaro incansável e curioso, quase nada nos pode desiludir ou dar a sensação de incompletude. Ter demasiadas preferências, esquisitices e idiossincrasias é uma forma de impedir o pássaro de voar e de nos levar na busca de mais uma partícula do ideal, mesmo que seja apenas mais um raio de sol, uma voz que passa, uma nuvem que se desfaz, a folha que dança enquanto cai, o mar que não se cansa das marés.

N.º 10

     O que quer dizer “o melhor ainda está para vir”? Quer dizer que alguém fica à espera que algo bom lhe aconteça sem o seu esforço ou quer dizer que alguém está disposto a fazer o possível para construir sempre algo melhor? Os sonhadores são maravilhosos, os pacifistas são maravilhosos, os ambientalistas são maravilhosos, os idealistas são maravilhosos e essenciais para moldar uma visão de um futuro melhor, mas de um modo geral são todos sujeitos passivos que delegam nos outros a responsabilidade de agir para atingir os seus próprios objectivos. Ao mesmo tempo, são também passivos perante o mal que vêem acontecer aos outros. Quando muito, apontam o dedo e inventam culpados, que são quase sempre os inocentes, e contribuem apenas para fortalecer os verdadeiros responsáveis. Ideais belos e essenciais estão a tornar-se cada vez mais a imagem invertida da realidade ou os vértices de uma realidade alternativa em que o contexto e as relações entre causa e efeito, entre actos e consequências foram completamente subvertidas. Claro que todos os seres sensatos esperam que os problemas sejam resolvidos e que algo melhor venha a seguir. Os novos sonhadores, os novos pacifistas, ambientalistas, idealistas e outros de espécies afins perderam completamente o bom-senso e ganharam novos hábitos ou vícios. Usam mentiras como slogans mágicos capazes de formatar a realidade a seu gosto e resolver os problemas de uns, geralmente os culpados, para criar problemas a outros, geralmente as vítimas, os inocentes, os realistas e os sensatos. Para que a realidade encaixe na sua ficção é preciso mentir e apresentar a mentira como a verdade. Com tais atitudes é muito duvidoso que o melhor ainda esteja para vir. Construir algo melhor dá trabalho e exige muita honestidade. Quantos verdadeiros idealistas estão dispostos a arregaçar as mangas e terão a coragem de enfrentar a verdade nua e crua?

N.º 11

     No Norte de Israel, devastado pelos bombardeamentos do grupo terrorista islâmico Hezbollah, milhares de pessoas estão a plantar milhares de árvores para repor a floresta ardida. Cada pessoa pode escolher a espécie de árvore a plantar de entre as dezenas de espécies autóctones que têm sido semeadas em viveiros. Os critérios para a escolha da espécie são diversos: a espécie que foi mais atingida pelo fogo, a espécie que cresce mais depressa, a espécie que é mais resistente ao fogo, a espécie que tem mais probabilidades de crescer naquele solo, a espécie que dará flores ou frutos mais depressa, mais bonitos, mais saborosos… De entre os milhares de plantadores anónimos, um destacou-se pela ousadia, pela perseverança, pelo sonho e pelo amor à sua terra ancestral; um homem idoso com mais de oitenta anos escolheu uma árvore que cresce muito lentamente e que só terá a primeira floração daqui a 70 anos. Muitos espantaram-se com a sua escolha, mas afinal é tão simples e evidente: daqui a 70 anos ele não estará vivo para poder admirar aquela bela árvore florindo pela primeira vez, mas outros estarão. Ele plantou aquela árvore para os vindouros, para o seu povo, para o seu país. O seu acto foi uma declaração de amor e um manifesto de fé e fidelidade; não importa o que os inimigos tentarão fazer para aniquilar o povo judeu na sua terra ancestral, eles serão sempre vencidos por aqueles que amam a vida, a liberdade e o futuro.

N.º 12

     As palavras não pertencem exclusivamente a ninguém, mas o seu significado pertence a todos e todos são responsáveis por conservá-lo e torná-lo claro, mesmo quando as palavras são usadas em sentido figurado. Regra geral, o sentido literal é aceite tacitamente e reconhecido por todos. E se têm dúvidas, recorrem à autoridade dos especialistas e confiam neles. Muitos esquecem-se de fazer o seu próprio estudo e de recorrer permanentemente aos seus próprios cérebros. Os novos dicionários incluem obscuros neologismos, uma imensa variedade de pronomes e identidades e abrem brechas no sólido significado de palavras que pareciam invioláveis. Hoje os especialistas são quase todos virtuais e mais ou menos anónimos. Quando as palavras se referem a conceitos e a categorias de natureza política, sociológica, identitária ou cultural é ainda mais importante respeitar o significado das palavras e usá-las no contexto certo e com plena propriedade vocabular. No entanto, é precisamente neste domínio que os especialistas virtuais ou os peritos de rua, sempre muito ruidosos, se tornam mais interventivos e mais nocivos, como se cada um fosse o líder totalitário de uma ou mais tribos num mundo orwelliano. Criam os seus novos glossários e pilham desalmadamente o puro significado original. As palavras são suas reféns. Hoje existem pelo menos 72 sexos, pelo menos segundo a nova lei irlandesa; a História é toda ela uma ofensa contra os novos oprimidos-privilegiados que precisam sempre de um bode expiatório, quase sempre os mesmos: os Judeus. Genocídio e apartheid são as mais infundadas acusações e libelos infames lançados contra os Judeus, que são precisamente o povo que foi e é persistentemente vítima de apartheid e genocídio. Aqueles que os discriminam e os querem exterminar são os novos heróis destes mestres da manipulação, da mentira e da distorção da verdade.

N.º 13

     A noite metafórica e a noite natural caminham lado a lado na História do Mundo e na história de cada ser. Quando ambas se confundem, é a noite natural que se apaga sob o poder das imagens e das analogias e é a noite metafórica que se impõe e, no entanto, torna-se menos abstracta. A noite imaginada torna-se, então, a tela em que se projectam as constelações interiores, ainda mais cintilantes do que as originais, ou o negrume absoluto e imensurável que encerra todos os medos e a impotência perante o desconhecido. Uma imagem é bela e reconfortante, a outra é terrível e inquietante. Ao longo da História a noite metafórica e terrível apagou muitas vezes a beleza e a esperança que uma noite infinitamente iluminada imprime nos espíritos. Nessas alturas, os seres bons aspiram apenas pela possibilidade de contemplar pacificamente a noite natural que vai e vem numa cadência reconhecida. A noite natural é bela porque é passageira, uma viajante fiel que visita cada dia e parte inteira. Se a noite natural caísse definitivamente em algum lugar, nem ela nem o lugar voltariam a ser belos nem serenos. As estrelas seriam apenas os olhos de fantasmas aprisionados no negrume e as constelações os grilhões comuns. Que a noite natural continue a ser passageira e só as metáforas mais belas perdurem nos dias que hão-de vir tomar o lugar de cada noite…