O YouTube bloqueou a incorporação dos meus próprios vídeos neste blog. Abaixo ficam os links e os textos de abertura que escrevi para esta série. Um dos links está aplicado sobre a imagem do vídeo que deveria ser incorporado nesta publicação.
NOTA: Cerca de uma hora após a edição desta publicação, a imagem do vídeo apareceu!!! NÃO altero o texto escrito acima por razões óbvias. Não é a AI que bloqueia ou apaga cegamente canais ou vídeos, são seres humanos com critérios autocráticos e nenhuma consciência moral. Esta nota repete-se em todos os vídeos que fui impedida de incorporar.
Toma
Lá! - 2024-2025 - Textos de abertura
Série III – Abril a Junho de 2025
N.º 1
Não existem coisas simples. Podem parecer objectivamente simples, mas não são. A perspectiva e a subjectividade é que faz com que pareçam simples. Olhamos e vemos o todo, minúsculo ou enorme. Não vemos a composição química da água numa gota de água, não vemos glóbulos e plasma numa gota de sangue, não vemos um código genético nas íris ou na textura da pele. Não vemos nem dizemos a complexidade que vive invisível em cada coisa. Quando muito, pensamos nela, que é também uma forma de ver. Se analisamos e decompomos a simplicidade nas suas partículas constituintes, a simplicidade torna-se complexa e inapreensível como um todo. É a aparente objectividade da percepção que apreende cada coisa como um todo inteiro e cria a ilusão de simplicidade. Ainda bem. Seria insuportável olhar constantemente o mundo com olhos de microscópio que vêem muito para além da superfície intacta e simples das coisas. Uma pintura abstracta reduz a complexidade aos seus traços mais simples, mas filtrados através de uma percepção e de um pensamento subjectivo. O aparente caos labiríntico da abstracção, às vezes até parece uma forma de repouso do olhar.
N.º 2
A vida da maioria dos seres vivos é uma caminhada pela areia, sempre mutável, sempre dedicada a apagar todas as marcas do tempo, do passado e até do presente. Nem a areia húmida consegue preservar durante muito tempo as pegadas dos caminhantes. E se algum ser, comum ou extraordinário, imagina imprimir na superfície das águas o que não pode imprimir na areia, também não terá muita sorte. O humano coloca-se no centro de todas as coisas, mas o mundo natural parece ignorar por completo esta sua pretensão. A natureza guarda apenas a história e a memória de si mesma. O ser humano tem de encontrar outras formas de persistir no tempo, para além da matéria que deixa atrás para se decompor e recriar. Tais pensamentos são raros entre os comuns mortais. “Os filósofos que se afundem em questões e angústias existenciais!”. Mas até um filósofo se esquece das mais obscuras interrogações quando o sol brilha e se compraz em ver a água apagar as suas pegadas na areia húmida. E esta também é uma bela maneira de filosofar e não só para Epicuro.
Admirar é sempre uma forma de amar, é sempre parte do amor. É difícil amar quem não se admira. E não é preciso ter qualidades excepcionais, superiores às dos comuns mortais, para se ser admirado. As qualidades vivem tantas vezes mais em potência do que em realização plena. As qualidades realizadas nos dias comuns é que são o verdadeiro alicerce de todo o ideal. As personagens que vivem nas grandes obras literárias são tantas vezes tomadas como um ideal de vida, de valores éticos e espirituais, um arquétipo real. A minha avó materna nada tinha de ideal ou arquétipo, mas podia ser a heroína de um livro sobre gente comum que transcendeu os seus limites enfrentando a adversidade e mantendo a humildade dos gratos que fazem dos pequenos ou grandes actos uma missão que atribuíram a si mesmos, mesmo que olhem os céus e pensem que a força de persistir lhes vem do alto. Os que sobrevivem aos sucessivos golpes da incerteza e da condição humana são já heróis, anónimos ou desconhecidos tantos deles, mas certamente amados e admirados por quem teve o privilégio de coexistir com eles.
N.º 4
O que os olhos viram um dia e o coração sentiu fica para sempre gravado algures nos vastos arquivos da mente. A memória, que é a bibliotecária-mor, vai lá com frequência, mas nem sempre encontra o que procura. Em contrapartida, encontra com frequência um elo perdido, uma migalha insignificante, um esboço descorado que surpreendentemente permite completar tantos quadros e livros que se julgavam perdidos ou indecifráveis. Mesmo as crianças desatentas e estouvadas viveram e aprenderam muito mais do que julgam lembrar. As crianças curiosas, por seu turno, parece que passam a vida inteira atentas a tudo, procurando e questionando, guardando nos maravilhosos bolsos da alma muito mais do que poderiam apanhar com as mãos, carregar nas mochilas ou guardar nas gavetas da infância. Todavia, não há grande diferença entre umas e outras; só varia o grau de consciência com que apreendem o mundo e o guardam e a razão por que o fazem. Umas sabem já que o tempo passa veloz e que tudo é precioso demais para ser ignorado. Outras fazem-no sem querer nem saber porquê. A razão de tal atenção e vontade de preservar só se revela muito mais tarde.
Alguém afirmou que os “obstáculos são o que vemos quando desviamos os olhos do objectivo”. Compreende-se. Se o objectivo se perde de vista, as dificuldades deixam de ser desafios, que até podem ser estimulantes e motivadores, para serem barreiras intransponíveis ou uma espécie de azar selectivo com vontade própria que parece apostado em obstaculizar uns e não outros. Não sei se o azar existe, mas existem pessoas que se dedicam a impedir que outras atinjam os seus objectivos, por muito bons, elevados e benéficos que sejam para todos. Há outras que parecem os portadores inesperados ou dedicados da sorte que têm o condão de trazer um súbito golpe de sorte no momento mais sombrio. Também não sei se a sorte existe, mas existem pessoas de ambas as espécies. Existem também muitas formas de olhar e interpretar os factos e as acções humanas. Uma das formas de transpor obstáculos é conhecê-los antecipadamente ou imaginar como podem ser transpostos se forem encontrados. O único senão reside no facto de os obstáculos serem maioritariamente pessoas bem reais que cometem actos concretos. Ainda assim, antever o golpe pode ser a única forma de o evitar. Só é lamentável que se desperdice a imaginação em tal tarefa em vez de a deixar voar livremente para ver e criar algo de bom, genuíno e belo.
N.º 6
Algumas imagens valem mesmo mais do que mil palavras. Muitas dessas imagens não foram criadas na origem ou na íntegra por seres humanos; foram antes uma tentativa de imitação de uma imagem natural que nem mil palavras poderiam descrever, imitar ou substituir. A imitação é sempre uma tentativa de ser, imperfeita e incompleta. Não existe imitação integral, nem sequer na fotografia ou nos efeitos especiais digitais. A imitação transcende a forma. Quantas vezes, uma imagem difusa parece ser uma imitação mais fiel do que uma representação formalmente rigorosa? Ainda bem que tantos pintores souberam fundir misteriosamente o objecto observado com o objecto imaginado e sentido. É nesse ponto de união que vivem as mil palavras que se tornaram supérfluas.
N.º 7
Após a invenção da fotografia, do cinema e da televisão, durante longas décadas, todas as cores foram reduzidas a uma paleta de preto, branco e uma gama de cinzentos. E tudo parecia perfeito, absolutamente realista e evocava todas as cores que não se viam. Cada espectador era a seu modo e inconscientemente um pintor. Cada um pintava o mundo preto e branco que via em segunda mão com as cores subjectivas da sua experiência, gosto e imaginação. Ou então nem se apercebia que o que via era apenas preto e branco porque sabia inconscientemente que na realidade não existe nada que seja absolutamente preto e branco e via nas imagens apenas uma tentativa incompleta de abarcar a realidade que é naturalmente multicolor. Este tipo de reflexões sobre a representação das cores do mundo só surgiu depois da aparição da cor nas suas representações modernas (fotografia, cinema, televisão). Durante séculos, os pintores nunca fizeram a reflexão inversa: pode o mundo ser visto apenas a preto e branco? Não era preciso. Essa possibilidade não se colocava como natural ou necessária. Depois de décadas a olhar imagens a preto e branco, a cor parece ter adquirido novas dimensões e um valor expressivo e estético que não tinha antes. A cor desperta os sentidos, intensifica a sensação de olhar, sentir e criar e a própria consciência de estar vivo.
N.º 8
O que desconhecemos gera o que conhecemos. Descobrir e inventar são formas de conquistar e iluminar o desconhecido. Nas primeiras fases desse longuíssimo e sempre inacabado percurso, o homem criou o absurdo e o impossível e acreditou neles. Criou divindades e espíritos e estabeleceu estreitas conexões com eles. Criou identidades invisíveis para o mundo visível e os seus fenómenos. De cada novo segmento desconhecido do mundo vislumbrado surgia uma nova percepção do desconhecido e uma nova crença. A crença criava a ilusão de conhecer e fornecia um modo mágico de comunicar com o desconhecido e de se proteger dele. Aí residem as primeiras raízes da técnica e da ciência e das próprias religiões. Depois de milénios de descoberta e invenção, o desconhecido persiste e foi-se expandindo de novas formas à medida que uma nova descoberta revelava novas limitações e colocava novas questões. Entre os povos que vivem em lugares remotos onde a ciência, tal como a conhecemos hoje, ainda não chegou, a própria ciência e as invenções que lá chegam são um mistério e uma nova forma de desconhecido. O visitante desconhecido é ele próprio uma manifestação de uma divindade desconhecida que começa sempre por ser temida. O medo está também na raiz da ciência e das religiões. A magia e a superstição não são, nesse contexto, uma forma de ignorância, mas uma forma de conhecimento e de protecção do desconhecido.
N.º 9
Se a mesma água da mesma nascente pudesse ser bebida duas vezes, repetidas vezes, a linearidade do tempo humano não existia ou teria um significado muito diferente. Crescer e envelhecer seriam experiências que poderiam ser repetidas, recriadas, saboreadas com outro vagar ou outra perspectiva. Mas se beber a mesma água fosse inevitável, então a passagem do tempo seria ainda inexorável e cada experiência, boa ou má, impossível de evitar ou modificar. Esta hipótese impossível talvez demonstre que a irrepetibilidade de cada momento e a impossibilidade de alterar cada experiência são a forma mais exigente e serena de fluir no tempo.
N.º 10
No mito alegórico e literário de Pigmalião e Galateia, Pigmalião (o escultor) cria Galateia (a escultura feminina) por antítese às mulheres do seu tempo, que considerava devassas e sem virtudes que merecessem o seu amor. Cria a escultura como projecção do seu ideal feminino e como uma companhia para o seu espírito. Com o tempo, o ideal tornou-se insuficiente e Pigmalião pediu a Afrodite que lhe permitisse encontrar uma mulher de carne e osso como a sua Galateia. Afrodite concedeu-lhe o desejo e deu vida à própria Galateia esculpida por Pigmalião. O casal teve dois filhos, um menino e uma menina e viveu feliz. A literatura veio dar novas tonalidades de sentido ao papel de Pigmalião. Bernard Shaw substituiu o escultor por um professor e filólogo que tenta ensinar e educar uma jovem vendedora de flores que não sabe ler nem escrever e fala de forma grosseira. Com a ajuda da própria mãe, o professor torna a rapariga numa senhora culta e requintada. É esta a história do filme My Fair Lady, adaptação do Pigmalião de Bernard Shaw, que adapta e recria o mito da Antiguidade grega. Mas o professor não criou a rapariga, apenas tentou reeducá-la, mostrando como o contexto social e cultural é ele próprio um “escultor”. Reeducar a rapariga começa por ser um desafio científico. Só depois de a “obra” estar consumada é que o professor vê finalmente o “novo” ser humano que sempre existiu. O egocentrismo do mestre é afinal o escultor, que ama a sua própria obra e o seu próprio eu que a criou.

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