sábado, 31 de dezembro de 2022

O Anjo de Augsburg - VI

NA VORAGEM DOS TEMPOS

     Agnes Bernauer viveu numa época em que as acusações de heresia, bruxaria e alta-traição eram frequentes. João Huss (1369-1415), acusado de heresia, foi queimado vivo (em Constança, Boémia, a 6 de Julho de 1415, o dia do seu aniversário) 20 anos antes de Agnes ser lançada ao Danúbio. João Huss foi precursor de Lutero e da Reforma e angariou inúmeros seguidores durante o seu tempo de pregador e professor na Universidade de Praga. Foi um crítico frontal das práticas desonestas e prepotentes da Igreja Católica (as indulgências, as simonias, o nepotismo, a intolerância e o materialismo). A sua execução desencadeou as chamadas Guerras Hussitas, que se estenderam de 1419 a 1434 (um ano antes da execução de Agnes). Na região da Boémia, os Hussitas moderados ganharam a guerra, mas a verdadeira Reforma só teria início a partir de 1516-1517 com a publicação das 95 Teses de Martinho Lutero. A extrema repressão contra os dissidentes, levada a cabo pelo Sacro Império Romano Germânico, governado por Carlos V e pelo papado, prenunciava já os horrores da Contra-Reforma (a Inquisição e os seus autos de fé) e a Guerra dos Trinta Anos entre Católicos e Protestantes, só terminada em 1648 com a Paz de Vestefália. A Boémia e a Baviera foram dois dos palcos destes conflitos religiosos e políticos.

John Huss (1369-1415).

     Gustav Freytag, que prefaciou a publicação das obras dramáticas de Otto Ludwig (1870), em que se incluiu a tragédia inacabada Der Engel von Augsburg (O Anjo de Augsburgo), referindo-se às Guerras Hussitas (contemporâneas de Agnes e Albrecht), assinala o facto de a violência extrema e a execução bárbara de inocentes se ter tornado demasiado banal. Já o era ainda antes da execução de João Huss.

     «(…) It was the peculiar destiny of Germany that this great struggle should first break out among the teachers and scholars in the halls of the universities, and that the funeral pile of a Bohemian professor (refere-se a João Huss ou Jan Huss) should give a new direction to the policy of German princes and people.

     The auto-da-fé of Huss did not appear to the Germans a very striking or blamable occurrence; people in those days were hastily condemned to death, and there hardly passed a year that the torch was not laid to the stake in every large city. However great the grief and indignation of the national party of Bohemia might be at these proceedings, the wild fanaticism of the people was first roused by another and greater crime of the reckless Emperor Sigismund, who, at the head of the orthodox German fanatics, began the strife by the great massacre in 1420; this outrage gave the Bohemians the strength of despair, and was the beginning of the wars which raged between the Germans and the Sclaves to the end of that century. Even after dissensions had broken out amongst the Bohemians themselves, and after the death of Georg von Podiebrad (refere-se ao rei da Boémia que morreu em 1471), feuds continued, and predatory bands spread themselves over the neighbouring lands, the people and nobility of Bohemia as well as those of the suffering frontier lands became lawless, and a hatred of races, less passionate but more savage and more enduring, took the place of fanaticism.»

(In Pictures of German Life in the XVth, XVIth and XVIIth Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter I, “Scenes from the Hussite War”, pp. 23-24)

Execução de John Huss (1369-1415).

     O fanatismo era recíproco entre Católicos e Hussitas. Gustav Freytag transcreve o relato de um mercador (Martin von Bolkenhain), datado de 1425, sobre o ataque dos Hussitas a uma cidade da Silésia (Wünschelburg). Os cidadãos da cidade refugiaram-se na casa acastelada do burgomestre e eles próprios incendiaram a sua cidade na esperança de que os atacantes desistissem e fossem embora. Não foram. Esperaram dias até que as chamas se apagaram. Vendo que a casa fortificada do burgomestre ainda estava de pé, cercaram-na e exigiram a rendição de todos os que se encontravam dentro dela. Pouco a pouco, todos se renderam, incluindo o próprio burgomestre, excepto um padre e um grupo pequeno de artesãos, dois capelães e um velho pároco de aldeia. Destes últimos, alguns saíram disfarçados de mulheres com crianças ao colo; outros acabaram por render-se também, excepto o padre (“Pastor Megerlein”) que permaneceu dentro da casa. Os Hussitas foram buscá-lo e incendiaram a casa e os estábulos. Alguns dos que se tinham escondido lá, sobretudo mulheres e crianças, morreram também nas chamas. Os Hussitas levaram então o padre para o meio da multidão que se rendera e exigiram-lhe que negasse tudo o que pregara. O padre recusou veementemente, acabando por ser martirizado de forma semelhante à que os Católicos usavam com os Hussitas. Eis um excerto do relato:

     «(…) But when they saw that the citizens had all surrendered, great fear came over them, and they went down and submitted themselves; but the pastor remained there with an old village priest to the last. Then the Hussites went up to them and brought them down, and led them into the midst of the army and the multitude. Then Master Ambrosius, a heretic of Gratz, being present, spoke to these gentlemen in Latin: 'Pastor, wilt thou gainsay and retract what thou hast preached? thus thou mayst preserve thy life; but if thou wilt not do this, thou must be burnt.' Then answered Herr Megerlein the pastor, and said, “God forbid that I should deny the truth of our holy Christian faith on account of this short pain. I have taught and preached the truth at Prague, at Gorlitz, and at Gratz, and for this truth will I gladly die”. Then one of them ran and fetched a truss of straw, which they bound round about his body so that he could not be seen; they then set fire to the straw, and made him, thus surrounded by flames, run and dance about in the midst of the multitude, till he was suffocated. Then they took him as a corpse and threw him into a brewer's vat of boiling water; they also threw in the old village priest, and let them boil therein; thus they were both martyred; but the two chaplains of whom I have before spoken, came out with the women concealed in women's clothes, and the child that one of these priests bore on his arm began to weep and to cry after its mother, and the priest tried to comfort and quiet it. So the Hussites discovered by the voice that it was a man, and one of them took the veil off him; then he let fall the child, took to flight, and ran with all his might; they followed after and killed him. The other came away with the women and children. This happened at Wünschelburg.»

(In Pictures of German Life in the XVth, XVIth and XVIIth Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter I, “Scenes from the Hussite War”, pp. 27-28)

     Ernst, pai de Albrecht era um católico conservador e dogmático. Ele próprio participou nas Guerras Hussitas, directa e indirectamente, travando batalhas com aqueles a quem chamavam “apóstatas” e “heréticos” ou apoiando outros monarcas que lideravam a guerra contra os Hussitas, como o imperador Romano-Germânico Segismundo (“Emperor Sigismund was one of the worst of his race”, op. cit., pp.37-38). Ernst travou também inúmeras batalhas com os ducados e condados vizinhos, pois nem a Baviera nem a Boémia eram reinos unificados e os senhores feudais que os governavam, como Ernst e Albrecht, viviam em constante conflito com os vizinhos, tentando manter ou alargar o território. Para além das fronteiras com os vários ducados da Baviera, era também preciso manter e defender a longa fronteira com a Boémia.

     A forte incidência das Guerras Hussitas na Boémia e na Silésia mostram também que para além dos conflitos religiosos e territoriais, existia paralelamente um conflito étnico-político entre eslavos e germânicos. Após a guerra dos Trinta Anos, Boémios e Silésios, sobretudo estes últimos, viveram ainda mais um século de opressão e perseguições religiosas. O facto de a Boémia ter vivido durante décadas a ferro e fogo permite também pensar que Albrecht não recusou a coroa da Boémia apenas por não ser ambicioso, mas também por não querer administrar um território que então era ingovernável. Os “Barões Ladrões”, já mencionados acima, eram também responsáveis pela guerrilha constante e pela insegurança generalizada. Alguns deles usaram como pretexto as guerras religiosas para praticar a pilhagem e se apoderarem de territórios onde já ninguém tinha autoridade.

     Embora nunca use a expressão “Barões Ladrões”, é certamente a eles que se refere Gustav Freytag quando diz o seguinte:

     «(…) This endless war ruined German Silesia: the plains lay waste and desolate, and most of the German peasantry in this century of fire and sword sank into a state little removed from that of the Sclave serfs. The smaller cities were burnt down and impoverished, and only a few of the larger ones have since attained any degree of importance. The Silesian nobles became rude and predatory; they learnt from the Bohemians to steal cattle, to seize merchants and traders, and to levy contributions on the cities. The princes in their endless disputes with one another allied themselves sometimes with the Bohemians, and shared their booty with them; indeed, some of them took pleasure in a wild robber life, carrying it on even in their own country. These deeds of violence and lamentable struggles continued quite into the sixteenth century, till the Reformation gave a new bent to this lively and impressible race, and brought with it new sufferings.»

(In Pictures of German Life in the XVth, XVIth and XVIIth Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter I, “Scenes from the Hussite War”, pp. 31-32)

     A acusação de bruxaria era inapelável e irremissível, por isso mesmo foi uma das acusações feitas a Agnes Bernauer; nada nem ninguém a poderia salvar. E qualquer que fosse a pena aplicada seria sempre horrenda. Regra geral, a escolha era entre o fogo e a água. A água, que também servia para “eliminar” a loucura; vestiam-se os loucos (ou supostos loucos) de branco, colocavam-se num barco sem remos e sem velas e deixavam-no ir com a correnteza para não mais voltar. O fogo, associado ao próprio diabo e às penas do inferno, era contraditoriamente usado pelos que pregavam a pureza celestial e a misericórdia divina. Milhares de supostas bruxas foram torturadas e queimadas, antes e durante a vigência da Inquisição, nos países católicos e nos países protestantes. A Agnes foi reservada a água, não certamente por implicar um sofrimento menor, mas por ser mais rápida e haver sempre a hipótese de a corrente do rio levar consigo o corpo e a memória de um acto hediondo. Sem corpo poderia haver a ilusão de uma dor menor. Mas o corpo terá sido mesmo retirado do rio e sepultado em Straubing. Mesmo assim, a cultura popular encarregou-se de versejar e musicar outros desenlaces. Abaixo, transcrevo “La Chanson de la belle Bernauer”, que apresenta um Albrecht completamente destroçado, enviando pescadores pelo rio fora em busca do corpo de Agnes; pede-lhes que sigam o rio e eles seguem… até ao Mar Vermelho, embora o Danúbio desague no Mar Negro.

     Note-se que, apesar de Inês de Castro ter sido morta cerca de um século antes (1355), ninguém das esferas do poder teve a veleidade de a acusar de bruxaria. Aliás, o fanatismo religioso em Portugal era ainda incipiente, mesmo contra os Judeus; a grande luta era ainda contra o infiel, os Mouros, não contra os hereges, os dissidentes da ortodoxia Católica. Foi depois, o povo não a corte que criou uma série de adágios que atribuíam a Inês um pacto com o demónio. Já dei, num post anterior, um exemplo dessa antipatia popular e da associação de Inês de Castro ao diabo plasmada em ditos populares. Gomes Monteiro, autor do prefácio ao drama Inês de Castro, de Victor Hugo, escrito quando o autor tinha apenas catorze anos, acrescenta um outro adágio que pretende dar de Inês de Castro a imagem de uma mulher de mau carácter, traiçoeira, oportunista e ambiciosa:

     «Inês de Castro, quando muito, foi a precursora de Ana Bolena que, após ter atraiçoado a sua ama e senhora (refere-se a D.ª Constança), se lhe apoderou da coroa e do marido. Inês não foi tão longe, porque não lhe deram tempo para isso.

     E tanto assim é que, ainda hoje, em algumas das nossas províncias, quando pretendem definir uma má mulher, dizem: “Aquilo é uma Ana Bolena!” ou “Aquilo é uma Inês de Carasto (sic)!”»

     Certamente, quem inventou tal adágio não conhecia Henrique VIII… e pensava que D. Pedro era uma alma delicada…

Inês de Castro, de Victor Hugo, Guimarães Editores

     A Inês de Castro de Victor Hugo, como o próprio autor confessa, inspira-se sobretudo em Camões (episódio lírico de Inês de Castro, Os Lusíadas, canto III), na Castro de António Ferreira e nos relatos “históricos” que lhe tinham feito durante uma viagem a Espanha. Percebe-se, portanto, que o seu drama, apesar de muito bem escrito, contenha inúmeros “erros históricos”. Victor Hugo nunca chegou a publicar esta obra da sua adolescência. Anos mais tarde, quando já era um autor reconhecido e aclamado, e depois de ter estudado a história em outras fontes, Victor Hugo explicou que nunca publicara este drama por considerá-lo “Tolices que fazia antes do meu nascimento”. Refere-se ele a tolices como: “Inês, condessa de Castro”; Inês, uma grande patriota de Portugal; “D. Afonso IV, o Justiceiro”; Inês como dama de honor de D. Beatriz; D. Beatriz, mãe de D. Pedro, tomada como sua madrasta e autora do suposto envenenamento de Inês de Castro, com quem D. Pedro teria inicialmente casado, para assim permitir o casamento deste com uma princesa castelhana; os nomes de quase todos os locais são espanhóis; o chefe muçulmano Albaracim tenta conquistar Lisboa e D. Afonso IV morre na batalha de defesa da cidade; D. Pedro ascende ao poder e vinga-se. Pois, são de facto muitas “tolices históricas”, mas perdoadas as muitas imprecisões e mesmo distorções da verdade histórica, vale a pena ler esta obra da adolescência de Victor Hugo. Os diálogos simples mas bem construídos, escritos por vezes numa linguagem informal, que seria mais do séc. XIX do que do séc. XIV sustentam bem a sua recriação da história. Alguns são também ricos do ponto de vista social e psicológico. Um pequeno excerto da cena I do acto II, entre os guardas e o carrasco, antes do início do suposto julgamento formal de Inês de Castro:  

O Primeiro Guarda

     «Tens razão. (Dirigindo-se a um dos carrascos) Olá, Melchior, sabes quem é a mulher que o Conselho vai julgar?

O Carrasco

Não sei.

O Primeiro Guarda

Mas é uma mulher, não é verdade?

O Carrasco

     Não sei. De resto, isso não me diz respeito. Eu só conheço os criminosos depois de condenados.

O Primeiro Guarda

     Pois eu tenho dó da pessoa acusada, seja ela quem for. Desde que se assente neste banco, está perdida.»

     Não encontrei provérbios alemães sobre Agnes Bernauer. O epíteto que lhe foi associado, Anjo de Augsburgo, está nos antípodas do diabolismo e da malvadez que os seus juízes e executores lhe atribuíram. Otto Ludwig, 1813-1865, foi o primeiro a usá-lo na literatura (Der Engel von Augsburg, 1856), mas não é certo que tenha sido ele o criador da expressão. Pode tratar-se de uma expressão popular assimilada pelos literatos. Se assim for, o epíteto encerra uma nítida condenação popular daqueles que a sentenciaram e assassinaram, tomando-a como o cordeiro sacrificado, a inocente e insignificante plebeia que teve de morrer para que o poder dos fortes continuasse a imperar sobre os insignificantes. Parece ser também uma tentativa de redenção de um ser injustiçado e uma forma de transformar Agnes num ente luminoso e protector da própria cidade que a viu nascer. Esta interpretação aplica-se à abordagem de Otto Ludwig e de outros autores.

     Para mais informação sobre as penas aplicadas aos que eram acusados de feitiçaria, sortilégios, adivinhação, uso de poções e venenos, blasfémia, apostasia e pactos com o diabo veja-se, por exemplo, o Dictionnaire de la pénalité dans toutes les parties du monde connu, Edme Théodore Bourg, known as Saint-Edme, 1785-1852, Tome V, Chez Rousselon, Paris, 1828, pp. 382-396.

     Contém também inúmeros exemplos de casos ocorridos nos locais mais diversos do mundo. Aqui fica apenas um excerto relativo a Portugal:

     «Portugal. Le crime de sorcellerie fut un de ceux que le roi Jean V laissa à la connaissance de l'inquisition quand il restreignit la juridiction de ce tribunal tyrannique. Ce fut une porte ouverte à une multitude de condamnations et un champ immense pour la cruauté. On pouvait encore allumer bien des bûchers et y précipiter des innocents et des imbéciles, tels que ce jésuite Malagrida, qui avait choisi la sainte Vierge pour l'objet de ses amours, et prenait, dans son délire, les effets d'une virilité prolongée pour les extases de la béatitude.» (p. 395) 

Ugly History: Witch Hunts - Brian A. Pavlac


Sem comentários:

Enviar um comentário