sábado, 31 de dezembro de 2022

O Anjo de Augsburg - IV

A REGRA E AS EXCEPÇÕES

     Na Idade Média e, provavelmente, em todas as outras idades até à segunda metade do século XX, as relações sociais e amorosas eram pré-determinadas. Salvo raras excepções, relacionavam-se e uniam-se apenas os que pertenciam ao mesmo estrato social. As mulheres do povo que fossem eventualmente escolhidas como concubinas nunca poderiam aspirar a uma união legítima ou a um título nobiliárquico ou real, apesar de a História ter registado vários casos de bastardia que abriram caminho à ascensão social. Em Portugal existem inúmeros casos.

     Os filhos bastardos de D. Dinis ou de D. Pedro I são apenas alguns exemplos. A mãe de D. João I (Teresa Lourenço) era uma mulher de classe média (talvez filha de um mercador, Vasco Lourenço Martins, embora alguns acreditem que era uma fidalga galega) e foi ela a amante a quem D. Pedro I se dedicou sempre, paralelamente com o casamento com D.ª Constança e a relação com D.ª Inês e ainda depois de ambas estarem mortas; D. João I nascerá cerca de dois anos após a morte de Inês de Castro e três anos antes de D. Pedro ter declarado que, afinal, tinha casado com Inês, declarando-a rainha póstuma.

     O infante D. Afonso (Afonso de Portugal ou Afonso I de Bragança), filho de D. João I, terá resultado de uma relação entre o jovem Mestre de Avis, ainda solteiro, e a filha de um sapateiro de Veiros, Pero Estevão ou Esteves (Inês Pires ou Peres Estevão ou Esteves, também conhecida como Inês de Veiros por ser natural dessa localidade alentejana). D. Afonso viria a tornar-se o primeiro duque de Bragança e oitavo conde de Barcelos e, portanto, a primeira semente da dinastia bragantina que sucederá à dinastia de Avis, em 1640, após o desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer Quibir (4 de Agosto de 1578), a morte do cardeal D. Henrique (1512-1580), o breve reinado de D. António, Prior do Crato (1531-1595, reinou apenas em 1580) e o domínio filipino (1580-1640). Curiosamente, o pai da donzela não se insurgiu contra o Mestre de Avis, mas contra a própria filha por considerar que fora esta a seduzir o infante quando um dia, enquanto lavava roupa com outras raparigas, e sendo observadas por D. Pedro I e o infante D. João, levantou as saias e mostrou as coxas dizendo às companheiras que se destinavam ao jovem Mestre de Avis. O pai repudiou-a e repudiou também o neto (D. Afonso), apesar de ser de sangue real, deixou crescer as barbas até lhe tocarem nos joelhos (provável exagero, mas ficou por isso conhecido como o Barbadão) e, ainda em vida, mandou gravar uma pedra tumular em que se lia:

«This sepulcher Barbadon caused to be made

(Being of Veyros a shoemaker by his trade)

For himself and the rest of his race,

Excepting his daughter Ines in any case».

 

(In A Continuation of The Lamentable and Admirable Adventures of Dom Sabastian King of Portugale by Fr. José Teixeira, London, 1603, p. 34)

 

     Segundo Frei José Teixeira, D. Jaime, 4.º Duque de Bragança, filho de D.ª Isabel, irmã do rei D. Manuel I, mandou apagar aquela inscrição do seu quarto avô. Conta também o mesmo autor que Inês de Veiros viveu o resto da vida como “a very chast and virtuous woman” (op. cit. p. 34). Recolheu-se ao convento de Santos, nos subúrbios de Lisboa, mandado edificar pelo próprio rei (D. João I), que a nomeou Madre Superior, e aí faleceu. As freiras deste convento, oriundas da aristocracia e realeza, tinham permissão para casar com os cavaleiros que pertenciam à mesma ordem. Não descobri mais informação sobre este convento construído no século XIV, mas é provável que pertencesse à Ordem de Santiago, a mesma ordem a que pertenceu o Convento de Santos-o-Novo, construído ao longo do século XVII; foi idealizado pelo Cardeal D. Henrique, a construção iniciou-se no reinado de Felipe II (de Portugal, III de Espanha), em 1609, e só foi concluído no reinado de D. Pedro II, em 1685. Aquando dos terramotos de 1531 e de 1755, muitos edifícios lisboetas ruíram; alguns foram reconstruídos mais tarde. É possível que o actual convento de Santos-o-Novo, construído no século XVII, se localize no mesmo local onde foi inicialmente erigido o convento de Santos no século XIV. No presente o convento de Santos-o-Novo pertence ao património da Santa Casa da Misericórdia. 

     Ao contrário da Inês que quase provocou a extinção de Portugal, esta Agnes (Inês), não era uma mulher ambiciosa, traidora e oportunista que se serve do seu estatuto social e dos seus dotes físicos para ascender socialmente e obter poder político e económico para si e para os seus. Agnes não escolheu o seu caminho, não escolheu ser amada por um príncipe; aceitou o amor de Albrecht, herdeiro do ducado da Baviera-Munique, e as benesses que lhe foram oferecidas. Todas as circunstâncias e escolhas ultrapassaram a sua vontade. Agnes não arquitectou planos maquiavélicos nem vestiu uma pele de cordeiro para os ocultar. Agnes foi de facto vítima inocente. Por isso é, muito mais do que Inês de Castro, uma heroína trágica. Nenhuma das acusações que lhe são feitas tem fundamento, mas isso pouco importa; o sistema está montado para eliminar os fracos e os inocentes. Para além do nome e do facto de também ter sido morta por motivos políticos ― uma “razão de Estado”―, a única afinidade com Inês de Castro reside no facto de ter existido e de se ter tornado uma lenda.  

Bildnis der Agnes Bernauerinn Johann Michael Mettenleiter, 1800.
Retrato de Agnes Bernauer por Johann Michael Mettenleiter, 1800.

     No caso de Agnes, a lenda que a imortaliza e enaltece pouco teve de inventar sobre as suas virtudes. Era um ser bom e humilde, amada por um príncipe que não podia amar mas apenas cumprir os seus deveres de herdeiro real. Ernst, pai de Albrecht, e restantes familiares entendiam que o herdeiro só poderia casar com alguém de sangue nobre ou perderia o direito ao trono e o próprio ducado da Baviera-Munique deixaria de existir. Como Albrecht nunca se deixou convencer pelos argumentos políticos e não tencionava separar-se de Agnes, era necessário eliminá-la. Agnes foi sacrificada por uma “razão de Estado”, que na verdade era apenas um preconceito social. As acusações que lhe foram feitas eram demasiado comuns na época (século XIV), dirigiam-se sobretudo a minorias (como os Judeus), aos rebeldes e dissidentes ou às camadas sociais mais baixas; eram fruto do fanatismo, da superstição, da intolerância e da prepotência.

     A união de sangue real com sangue plebeu era intolerável. Aproveitando a ausência de Albrecht, as autoridades de Augsburg, a pedido do duque Ernst (pai de Albrecht) acusaram Agnes de bruxaria e envenenamento. Foi sumariamente julgada e condenada a morrer afogada nas águas do Danúbio. Era preciso fazer recair sobre Agnes os actos mais abomináveis e a acusação de bruxaria cobria quase todas as outras acusações que se quisessem formular. Uma bruxa não era sequer vista como um ser humano; era uma criatura que tinha um pacto com o diabo e servia apenas os desígnios do seu amo. Agnes foi acusada de usar poções mágicas para seduzir Albrecht e venenos para matar uma filha do tio deste. 


Sem comentários:

Enviar um comentário