A REGRA E AS EXCEPÇÕES
Na Idade Média e, provavelmente, em todas
as outras idades até à segunda metade do século XX, as relações sociais e
amorosas eram pré-determinadas. Salvo raras excepções, relacionavam-se e
uniam-se apenas os que pertenciam ao mesmo estrato social. As mulheres do povo
que fossem eventualmente escolhidas como concubinas nunca poderiam aspirar a uma
união legítima ou a um título nobiliárquico ou real, apesar de a História ter registado
vários casos de bastardia que abriram caminho à ascensão social. Em Portugal
existem inúmeros casos.
Os filhos bastardos de D. Dinis ou de D.
Pedro I são apenas alguns exemplos. A mãe de D. João I (Teresa Lourenço) era
uma mulher de classe média (talvez filha de um mercador, Vasco Lourenço
Martins, embora alguns acreditem que era uma fidalga galega) e foi ela a amante
a quem D. Pedro I se dedicou sempre, paralelamente com o casamento com D.ª
Constança e a relação com D.ª Inês e ainda depois de ambas estarem mortas; D.
João I nascerá cerca de dois anos após a morte de Inês de Castro e três anos
antes de D. Pedro ter declarado que, afinal, tinha casado com Inês,
declarando-a rainha póstuma.
O infante D. Afonso (Afonso de Portugal ou
Afonso I de Bragança), filho de D. João I, terá resultado de uma relação entre
o jovem Mestre de Avis, ainda solteiro, e a filha de um sapateiro de Veiros,
Pero Estevão ou Esteves (Inês Pires ou Peres Estevão ou Esteves, também
conhecida como Inês de Veiros por ser natural dessa localidade alentejana). D.
Afonso viria a tornar-se o primeiro duque de Bragança e oitavo conde de Barcelos
e, portanto, a primeira semente da dinastia bragantina que sucederá à dinastia
de Avis, em 1640, após o desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer Quibir (4
de Agosto de 1578), a morte do cardeal D. Henrique (1512-1580), o breve reinado
de D. António, Prior do Crato (1531-1595, reinou apenas em 1580) e o domínio
filipino (1580-1640). Curiosamente, o pai da donzela não se insurgiu contra o
Mestre de Avis, mas contra a própria filha por considerar que fora esta a
seduzir o infante quando um dia, enquanto lavava roupa com outras raparigas, e
sendo observadas por D. Pedro I e o infante D. João, levantou as saias e
mostrou as coxas dizendo às companheiras que se destinavam ao jovem Mestre de
Avis. O pai repudiou-a e repudiou também o neto (D. Afonso), apesar de ser de
sangue real, deixou crescer as barbas até lhe tocarem nos joelhos (provável
exagero, mas ficou por isso conhecido como o Barbadão) e, ainda em vida, mandou
gravar uma pedra tumular em que se lia:
«This sepulcher Barbadon caused to be made
(Being of Veyros a shoemaker by his trade)
For himself and the rest of his race,
Excepting his daughter Ines in any case».
(In A Continuation of The Lamentable and Admirable Adventures of Dom
Sabastian King of Portugale by Fr. José Teixeira, London, 1603, p. 34)
Segundo
Frei José Teixeira, D. Jaime, 4.º Duque de Bragança, filho de D.ª Isabel, irmã
do rei D. Manuel I, mandou apagar aquela inscrição do seu quarto avô. Conta
também o mesmo autor que Inês de Veiros viveu o resto da vida como “a very chast and virtuous woman” (op.
cit. p. 34). Recolheu-se ao convento de Santos, nos subúrbios de Lisboa, mandado
edificar pelo próprio rei (D. João I), que a nomeou Madre Superior, e aí
faleceu. As freiras deste convento, oriundas da aristocracia e realeza, tinham
permissão para casar com os cavaleiros que pertenciam à mesma ordem. Não
descobri mais informação sobre este convento construído no século XIV, mas é
provável que pertencesse à Ordem de Santiago, a mesma ordem a que pertenceu o
Convento de Santos-o-Novo, construído ao longo do século XVII; foi idealizado
pelo Cardeal D. Henrique, a construção iniciou-se no reinado de Felipe II (de
Portugal, III de Espanha), em 1609, e só foi concluído no reinado de D. Pedro
II, em 1685. Aquando dos terramotos de 1531 e de 1755, muitos edifícios
lisboetas ruíram; alguns foram reconstruídos mais tarde. É possível que o actual
convento de Santos-o-Novo, construído no século XVII, se localize no mesmo
local onde foi inicialmente erigido o convento de Santos no século XIV. No
presente o convento de Santos-o-Novo pertence ao património da Santa Casa da
Misericórdia.
Ao contrário da Inês que quase provocou a
extinção de Portugal, esta Agnes (Inês), não era uma mulher ambiciosa, traidora
e oportunista que se serve do seu estatuto social e dos seus dotes físicos para
ascender socialmente e obter poder político e económico para si e para os seus.
Agnes não escolheu o seu caminho, não escolheu ser amada por um príncipe; aceitou
o amor de Albrecht, herdeiro do ducado da Baviera-Munique, e as benesses que
lhe foram oferecidas. Todas as circunstâncias e escolhas ultrapassaram a sua
vontade. Agnes não arquitectou planos maquiavélicos nem vestiu uma pele de
cordeiro para os ocultar. Agnes foi de facto vítima inocente. Por isso é, muito
mais do que Inês de Castro, uma heroína trágica. Nenhuma das acusações que lhe
são feitas tem fundamento, mas isso pouco importa; o sistema está montado para
eliminar os fracos e os inocentes. Para além do nome e do facto de também ter
sido morta por motivos políticos ― uma “razão de Estado”―, a única afinidade
com Inês de Castro reside no facto de ter existido e de se ter tornado uma
lenda.
No caso de Agnes, a lenda que a imortaliza e enaltece pouco teve de inventar sobre as suas virtudes. Era um ser bom e humilde, amada por um príncipe que não podia amar mas apenas cumprir os seus deveres de herdeiro real. Ernst, pai de Albrecht, e restantes familiares entendiam que o herdeiro só poderia casar com alguém de sangue nobre ou perderia o direito ao trono e o próprio ducado da Baviera-Munique deixaria de existir. Como Albrecht nunca se deixou convencer pelos argumentos políticos e não tencionava separar-se de Agnes, era necessário eliminá-la. Agnes foi sacrificada por uma “razão de Estado”, que na verdade era apenas um preconceito social. As acusações que lhe foram feitas eram demasiado comuns na época (século XIV), dirigiam-se sobretudo a minorias (como os Judeus), aos rebeldes e dissidentes ou às camadas sociais mais baixas; eram fruto do fanatismo, da superstição, da intolerância e da prepotência.
A união de sangue real com sangue plebeu era intolerável. Aproveitando a ausência de Albrecht, as autoridades de Augsburg, a pedido do duque Ernst (pai de Albrecht) acusaram Agnes de bruxaria e envenenamento. Foi sumariamente julgada e condenada a morrer afogada nas águas do Danúbio. Era preciso fazer recair sobre Agnes os actos mais abomináveis e a acusação de bruxaria cobria quase todas as outras acusações que se quisessem formular. Uma bruxa não era sequer vista como um ser humano; era uma criatura que tinha um pacto com o diabo e servia apenas os desígnios do seu amo. Agnes foi acusada de usar poções mágicas para seduzir Albrecht e venenos para matar uma filha do tio deste.
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