sábado, 31 de dezembro de 2022

O Anjo de Augsburg - III

FONTES ORAIS E ESCRITAS

     Não é apenas no folclore alemão que o carácter dos plebeus supera muitas vezes o carácter das elites sociais, políticas, económicas, jurídicas e até culturais. Acontece o mesmo nas histórias tradicionais de locais muito diversos do mundo, incluindo em Portugal. E esta não é exclusivamente uma crença da cultura popular; estudiosos e criadores literários como Oliveira Martins, Teixeira de Pascoais ou até Cesário Verde defenderam uma ideia semelhante: a verdadeira alma de um povo está (ou estava) nas classes mais baixas, na sua energia, nas suas tradições e força de trabalho. Para o bem e para o mal, a imobilidade social da plebe alimenta a constância da identidade dos povos e cria verdadeiras raízes. É dessa força de trabalho que se alimentam as elites. E é dessas raízes populares que se alimenta uma grande parte da cultura popular e erudita, da literatura, da música e das artes plásticas. Este influxo verificou-se sobretudo durante o Romantismo (primeira metade do séc. XIX) e, mais tarde e de forma bem diferente, no Neorrealismo (meados do séc. XX).

     Muito antes, já Gonçalo Fernandes Trancoso (1515-1596), que foi provavelmente o primeiro contista português, nos seus Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1.ª edição de 1575), tinha entretecido de tal forma a cultura popular com a cultura erudita e religiosa, que se torna difícil identificar a origem primeira das suas narrativas. E essa era provavelmente a intenção, já que os seus contos não se destinavam apenas à leitura recreativa mas à morigeração dos costumes, que é transversal a todas as classes sociais e a todas as manifestações culturais, tal como os vícios e as virtudes, mas em proporção muito diversa. A degeneração tende a vir das cúpulas e a regeneração emana, regra geral, das bases da pirâmide social.

     Entre as narrativas de Gonçalo Fernandes Trancoso, as de Charles Perrault e as dos irmãos Grimm, entre outros, existem pelo menos dois traços comuns: bebem a principal inspiração na tradição popular e as suas personagens, regra geral, ou são tipos sociais, psicológicos e morais (independentemente do estrato social) e/ou são personagens anónimas, não identificáveis de forma explícita com nenhuma figura histórica. Desta forma, assumem um carácter mais universal e acabam por ter uma função crítica mais eficaz.

     Há indícios, na literatura alemã, de que muito antes das primeiras obras eruditas serem publicadas já circulavam na tradição oral popular várias versões da história trágica de Agnes Bernauer, quer sob a forma de contos ou “rimances” (narrativas rimadas) quer sob a forma de baladas e canções populares. Os próprios autores das primeiras e principais obras literárias de vulto sobre Agnes Bernauer (Joseph August Graf von Toerring ou Törring, 1753-1826, dramaturgo e político, Otto Ludwig, 1813-1865, dramaturgo, romancista, compositor, libretista e crítico literário, Christian Friedrich Hebbel, 1813-1863 ou Martin Greif, 1839-1911) reconhecem que entre as suas fontes estão as narrativas populares, mas também as crónicas históricas e outros documentos escritos nos séculos anteriores ou coevos da própria Agnes.

Agnes Bernauerin, Joseph August Törring, Manheim, 1791.

     Joseph August von Törring, na nota que antecede Agnes Bernauerin (tragédia em cinco actos, primeiramente publicada em 1780), esclarece que o fundamento histórico da sua peça pode ser encontrado em crónicas históricas, em diversos relatos medievos e nas “cartas de doação” dos próprios duques da Baviera-Munique, Ernst e Albrecht. Salienta especialmente o Rerum Boicarum Scriptores Nusquam Antehac Editi, compilação escrita em latim que reúne inúmeras crónicas e documentos históricos da Idade Média, publicada pela primeira vez em Ausburgo no ano de 1763. Os dois tomos que constituem a obra, com quase duas mil páginas, foram coligidos e anotados por Andreas Felix von Oefele (1706-1780), ele sim verdadeiramente filho de um estalajadeiro de Munique e um exemplo de mobilidade social. Estudou Direito, História e Teologia, foi historiador e bibliotecário da Biblioteca Nacional Alemã. Já antes publicara uma compilação ainda maior, em dez volumes, com as biografias dos autores mais relevantes da Baviera (Lebensgeschichten der gelehrtesten Männer Bayerns / História das vidas dos homens mais eruditos da Baviera). Törring refere ainda uma outra obra ou documento ―  Bermuthung ― que não consegui localizar.


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