sábado, 31 de dezembro de 2022

O Anjo de Augsburg - I

AGNES BERNAUER

     Como acontece com todas as figuras que se tornaram lendárias, pouco se sabe com exactidão sobre Agnes Bernauer (c. 1410-1435), mas o que se sabe permite traçar um retrato relativamente verosímil.

     Agnes Bernauer nasceu em Augsburg, nas margens de um dos braços do Danúbio, por volta de 1410. Esta mesma cidade viu nascer Bertolt Brecht (1898-1956), Leopold Mozart (1719-1787), compositor, violinista e pai de Wolfgang Amadeus Mozart, Hans Holbein, o Velho (1460-1524), um dos pioneiros da pintura renascentista, e Hans Holbein, o Jovem (1497-1543), entre outros. Nenhum deles foi contemporâneo da trágica história de Agnes ou, provavelmente, haveria mais registos coevos sobre a sua história. Assim, restam sobretudo a lenda, a recriação literária e alguns factos comprovados.

     Como introdução, e de modo muito simplista, poderia dizer que a história do “Anjo de Augsburg” (Agnes Bernauer) é a história de uma rapariga simples e bela por quem se apaixona um príncipe (Albrecht, 1401-1460, herdeiro do ducado da Baviera-Munique). Este terá casado secretamente com ela, deu-lhe o título de duquesa e levou-a para um dos seus castelos. O pai de Albrecht (o duque Ernst) opõe-se a esta união com uma plebeia. Albrecht recusa todos os conselhos e advertências, estando disposto a abdicar de todos os seus títulos e bens reais para permanecer com Agnes. Perante a firme determinação de Albrecht, e aproveitando uma ausência deste, oportunamente levado para uma caçada por um parente (Heinrich, duque da Baviera-Landshut), Ernst ordena às autoridades de Augsburg que prendam Agnes e a condenem à morte por crime de alta-traição e lesa-majestade. Agnes é presa, acaba por ser acusada de outros crimes, como a feitiçaria e o envenenamento, e é condenada a morrer afogada no Danúbio, num local próximo de Straubing, a 12 de Outubro de 1435.

Agnes Bernauer, c. 1410-1435.

     Albrecht, ao saber da notícia da execução de Agnes, alia-se aos inimigos de seu pai e pega em armas contra ele. A intervenção de outros familiares permitiu finalmente que Albrecht depusesse as armas, perdoasse ao pai e casasse novamente, desta vez com uma aristocrata (Anna von Brunswick-Grubenhagen-Einbeck, 1414-1474) de quem teve dez filhos, ascendendo ao poder, em 1438, como Albrecht III, duque da Baviera-Munique, mais tarde cognominado como o Pio. O casamento com Anna von Brunswick realizou-se em Novembro de 1436, cerca de um ano após a execução de Agnes… Um dos filhos chamou-se Ernst, mas nenhuma das filhas se chamou Agnes…

     A condição que Albrecht impôs ao pai para lhe perdoar foi a construção de uma capela em Straubing, iniciada logo em 1436, onde Agnes está sepultada. No mesmo ano de 1436, Albrecht instituiu a reza diária de uma missa em memória de Agnes Bernauer para todo o sempre. Consta que essa tradição se manteve até 1922; a partir daí, a missa passou a ser anual, aparentemente por falta de dinheiro. Parece que os “bens espirituais” afinal são bastante materiais! Desde data incerta, acrescentou-se à cerimónia religiosa a celebração quadrienal de festas profanas (Agnes Bernauer Festspiele), que incluem a reconstituição teatral dos amores de Albrecht e Agnes, do julgamento e execução do “Anjo de Augsburg” nas águas do Danúbio e um jantar com centenas de convivas. De entre as dezenas ou centenas de candidatos, todos os anos é escolhido o par Albrecht-Agnes do ano.

     Albrecht terá conhecido Agnes em 1428 durante um torneio em Augsburg. Dizem alguns que esse torneio foi decretado especificamente para celebrar o noivado de Albrecht com Elisabeth de Württemberg, embora este noivado só tenha sido formalizado em 1429. Outros negam completamente esta hipótese, talvez porque soaria estranho (ou não) que Albrecht se tivesse apaixonado perdidamente por Agnes precisamente quando estava prestes a casar com Elisabeth. Segundo algumas fontes, Albrecht nem terá chegado a participar no torneio. Por motivos pouco claros, os juízes da competição não terão aceitado a sua inscrição. É possível que o próprio pai tenha feito esse pedido com a intenção de proteger a vida do seu único herdeiro. Muitos cavaleiros ficavam gravemente feridos nestas competições e alguns morriam no próprio local. O nosso D. Afonso IV não permitiu que D. Pedro I, seu filho e herdeiro, participasse na batalha do Salado para lhe proteger a vida.

     Logo no ano seguinte, 1429, Ernst assinou com Eberhard III, Conde de Württemberg um contrato de casamento que visava unir Albrecht a Elisabeth de Württemberg, filha do referido conde. Não se sabe como Albrecht reagiu a este contrato, mas sabe-se que Elisabeth fugiu pouco depois para casar com João IV de Werdenberg, que tinha sido escudeiro do próprio pai. Pouco depois, em 1432, Ernst nomeia Albrecht administrador do território da Baviera-Straubing.

     Albrecht abandona o palácio do pai e passa a viver num dos seus castelos na região de Sraubing. Embora não haja provas documentais do casamento, alguns historiadores pensam que foi nesse ano (1432) que Albrecht casou secretamente com Agnes e passou a viver com ela num castelo próximo de Straubing. Sabe-se sim que Agnes foi executada e sepultada em Straubing, não em Augsburg. A pedra tumular, com uma efígie em tamanho próximo do real foi colocada no soalho da capela de S. Pedro (depois chamada Agnes Bernauer) em Straubing e aí se manteve até finais do século XVIII. Para evitar o desgaste do baixo-relevo, em 1785, a pedra foi encastrada numa das paredes da capela onde se mantém até hoje. Há relativamente poucos anos (2013) foi erigido um memorial dedicado a Agnes e Albrecht no castelo de Blutenburg, supostamente um dos lugares onde teriam vivido juntos. Não, nunca viveram juntos nesse lugar; o castelo de Blutenburg foi mandado construir por Albrecht III após a morte de Agnes (1435) e após o casamento com Anna von Brunswick (1436); foi construído entre 1438 (o ano em que ascendeu ao trono) e 1439.

     Como acontece com todas as histórias que se transformaram em lendas, existem inúmeras versões, por vezes, completamente contraditórias. Segundo o poeta alemão August von Platen, que visitou a capela Agnes Bernauer em Straubing no ano de 1822, alguns dos habitantes locais tinham feito circular uma versão em que Agnes é que era a verdadeira filha do duque Ernst e Albrecht era filho de um barbeiro-cirurgião. Por motivos desconhecidos, as crianças tinham sido trocadas pouco depois da nascença. É claro que esta versão não pode ter fundamento: Albrecht tinha cerca de dez anos a mais do que Agnes…

     E agora, mergulhando um pouco mais nesta história tão semelhante e tão diferente da história de Pedro e Inês…

     Dizem uns que Agnes era filha de um barbeiro-cirurgião de Augsburg, Kaspar Bernauer, outros que era filha de um estalajadeiro ou taberneiro, de um padeiro, de um artesão, de um “banheiro” (proprietário de uma Casa de Banhos), de um burguês respeitável... Dizem uns que Agnes ajudava o pai no seu ofício (sobretudo os que dizem que ele era estalajadeiro e ela cozinhava e servia os hóspedes), outros vêem-na fechada no recato do lar, raramente se deixando ver por estranhos, outros ainda vêem uma alegre donzela passeando com as amigas pela margem do rio, e aqueles que menos simpatizam com Agnes vêem-na como uma ajudante numa Casa de Banhos Públicos… Seja como for, o certo é que Agnes não pertencia à aristocracia. Tinha origens humildes e vivia como uma vulgar rapariga do povo. E é precisamente aí que começa a sua tragédia. Aí e no facto de ser extremamente bela, uma combinação fatal numa sociedade rigidamente estratificada e sem mobilidade social. Por isso, alguns vêem nela um símbolo trágico da luta de classes. O mesmo juízo se poderia aplicar a Albrecht, porque é ele que faz verdadeiramente as escolhas contra tudo e contra todos; Agnes é arrastada para o centro de uma batalha de valores e preconceitos em que ela será a única verdadeira vítima.

     Um barbeiro-cirurgião não era propriamente um ignorante; tinha alguns conhecimentos de cirurgia, de medicina, das propriedades curativas das plantas e de algumas substâncias químicas. Também era dentista, aplicava ventosas e sanguessugas, fazia sangrias e, se tivesse carta de cirurgião, poderia até fazer trepanações, uma delicada operação que implicava perfurar o crânio para extrair tumores ou “humores malignos”. Esta operação aplicava-se sobretudo aos sifilíticos, aos epilépticos e aos “loucos”. Se Agnes era filha de um barbeiro-cirurgião, então, provavelmente, saberia ler e teria aprendido também alguns dos procedimentos que via o pai efectuar e conheceria as propriedades das plantas. O facto de ter sido acusada de fabricar venenos e poções mágicas poderia ligar-se a esta hipótese.

     As Casas de Banhos Públicos eram estabelecimentos onde as pessoas podiam tomar banho e receber massagens. Eram sobretudo frequentadas por homens, incluindo monges e nobres, e as ajudantes e massagistas eram sobretudo mulheres. Eram elas que carregavam os baldes de água, enchiam as tinas de madeira ou metal, ensaboavam e esfregavam os clientes e, por fim, davam-lhes massagens. Estas casas eram muitas vezes conhecidas como estabelecimentos de prostituição. Esta hipótese interessa sobretudo aos que queriam denegrir o carácter de Agnes, incluindo os juízes que a acusaram e condenaram em nome do duque Ernst, pai de Albrecht.

Mönche im Bad aus dem Jenaer Code Antithesis Christi et Antichrist (1490-1510).
Monges no banho do Código Jena Antithesis Christi et Antichrist (1490-1510).

     A hipótese da Casa de Banhos é também compatível com a exploração de uma estalagem, podendo coexistir a hospedagem e os banhos públicos no mesmo local. Mas uma estalagem em si mesma oferecia apenas dormida e comida, sobretudo aos viajantes ou aos que permaneciam temporariamente num local. No presente, existem em Augsburg restaurantes e bares com o nome de Agnes Bernauer; distribuem folhetos promocionais em que contam sucintamente uma das versões da história de Agnes e a apresentam como uma empregada de mesa risonha e gentil, seguindo provavelmente a tradição dos que acreditam que o pai era estalajadeiro ou taberneiro.

     Se era um artesão, qual era o seu ofício? Ninguém sabe dizer ao certo. Se era um padeiro, também podia ser estalajadeiro ou taberneiro. Um dos doces típicos de Straubing é a “Agnes Bernauer Torte”, criada a posteriori pelos locais como estratégia de marketing turístico e não pelo pai de Agnes, se de facto foi padeiro ou pasteleiro. Se era um burguês, poderia ser um mercador, um banqueiro ou também o proprietário rico de uma estalagem afamada.

     Mais importante do que saber a exacta profissão do pai de Agnes é o facto de ela e Albrecht terem conscientemente e de modo determinado infringido as convenções sociais e morais que impediam tal união. Ambos sabiam que as consequências podiam ser terríveis para ambos e para a sobrevivência do próprio ducado da Baviera-Munique. Como único herdeiro varão, Albrecht sabia que escolher Agnes significava que não poderia assumir o título e funções de duque da Baviera-Munique. Convém lembrar que a Baviera estava dividida em vários ducados e condados, não era um reino único com um só governante.

     Não era apenas o pai de Albrecht que se opunha, era toda a família e a aristocracia em geral. Escolhendo Agnes, só restava a Albrecht abandonar os seus territórios e tornar-se um apátrida. O ducado da Baviera-Munique seria assimilado por um condado ou ducado vizinho e seria governado por outra linhagem. A menos que alimentasse a ideia fantasiosa e ingénua de conseguir impor Agnes como sua legítima consorte e duquesa da Baviera-Munique. Provavelmente alimentou esta ideia e foi ela que conduziu à morte de Agnes. As elites teriam aceitado Agnes como concubina, desde que se mantivesse discreta e mais ou menos invisível. Aparentemente, nunca foi essa a intenção de Albrecht, o que só abona em seu favor. Que distância de Pedro e Inês! A Inês dissimulada e ambiciosa que serve os seus intuitos e os dos seus irmãos; o Pedro que não é fiel a ninguém, nem a Constança nem a Inês, e alimenta a pretensão de se tornar ele próprio rei de Castela!

     Abrecht, pelo contrário, era voluntarioso e determinado mas não ambicioso. Para compensar tinha outros defeitos e preconceitos, e bem terríveis. Após a morte de Agnes e do seu pai, Albrecht recusou (em 1440) a coroa da Boémia que lhe foi oferecida. Mas era tão intolerante e “justiceiro” como D. Pedro I, o Cru; em 1442 decreta a expulsão de todos os Judeus das terras do seu ducado e confisca-lhes os bens. Alguns suspeitam que a própria família de Agnes fosse de origem judaica; isso explicaria a total ausência de registos escritos relativos à sua família.

     Ao longo de 1444 e 1445, guerreia, persegue, prende e pune os chamados “Barões Ladrões” que, à semelhança de muitos senhores feudais prepotentes, impunham impostos elevados, mesmo em terras que não lhes pertenciam, cobravam taxas para passar em determinada estrada ou parcela do rio, exigiam a prestação de serviços gratuitos aos moradores das terras ocupadas e saqueavam indistintamente os senhores das terras (nobres, bispos e arcebispos), os mercadores, os viajantes e os servos. Eliminá-los era uma forma de preservar os seus próprios domínios e a segurança do seu ducado. Curiosamente, a própria Agnes terá participado na captura de um destes salteadores (Münnhauser) na zona de Munique.  


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