AGNES BERNAUER
Como acontece com todas as figuras que se
tornaram lendárias, pouco se sabe com exactidão sobre Agnes Bernauer (c.
1410-1435), mas o que se sabe permite traçar um retrato relativamente verosímil.
Agnes Bernauer nasceu em Augsburg, nas
margens de um dos braços do Danúbio, por volta de 1410. Esta mesma cidade viu
nascer Bertolt Brecht (1898-1956), Leopold Mozart (1719-1787), compositor, violinista
e pai de Wolfgang Amadeus Mozart, Hans Holbein, o Velho (1460-1524), um dos
pioneiros da pintura renascentista, e Hans Holbein, o Jovem (1497-1543), entre
outros. Nenhum deles foi contemporâneo da trágica história de Agnes ou,
provavelmente, haveria mais registos coevos sobre a sua história. Assim, restam
sobretudo a lenda, a recriação literária e alguns factos comprovados.
Como introdução, e de modo muito
simplista, poderia dizer que a história do “Anjo de Augsburg” (Agnes Bernauer)
é a história de uma rapariga simples e bela por quem se apaixona um príncipe
(Albrecht, 1401-1460, herdeiro do ducado da Baviera-Munique). Este terá casado
secretamente com ela, deu-lhe o título de duquesa e levou-a para um dos seus
castelos. O pai de Albrecht (o duque Ernst) opõe-se a esta união com uma
plebeia. Albrecht recusa todos os conselhos e advertências, estando disposto a
abdicar de todos os seus títulos e bens reais para permanecer com Agnes.
Perante a firme determinação de Albrecht, e aproveitando uma ausência deste, oportunamente
levado para uma caçada por um parente (Heinrich, duque da Baviera-Landshut), Ernst
ordena às autoridades de Augsburg que prendam Agnes e a condenem à morte por
crime de alta-traição e lesa-majestade. Agnes é presa, acaba por ser acusada de
outros crimes, como a feitiçaria e o envenenamento, e é condenada a morrer
afogada no Danúbio, num local próximo de Straubing, a 12 de Outubro de 1435.
Albrecht, ao saber da notícia da execução
de Agnes, alia-se aos inimigos de seu pai e pega em armas contra ele. A
intervenção de outros familiares permitiu finalmente que Albrecht depusesse as
armas, perdoasse ao pai e casasse novamente, desta vez com uma aristocrata
(Anna von Brunswick-Grubenhagen-Einbeck, 1414-1474) de quem teve dez filhos,
ascendendo ao poder, em 1438, como Albrecht III, duque da Baviera-Munique, mais
tarde cognominado como o Pio. O casamento com Anna von Brunswick realizou-se em
Novembro de 1436, cerca de um ano após a execução de Agnes… Um dos filhos
chamou-se Ernst, mas nenhuma das filhas se chamou Agnes…
A condição que Albrecht impôs ao pai para
lhe perdoar foi a construção de uma capela em Straubing, iniciada logo em 1436,
onde Agnes está sepultada. No mesmo ano de 1436, Albrecht instituiu a reza
diária de uma missa em memória de Agnes Bernauer para todo o sempre. Consta que
essa tradição se manteve até 1922; a partir daí, a missa passou a ser anual,
aparentemente por falta de dinheiro. Parece que os “bens espirituais” afinal
são bastante materiais! Desde data incerta, acrescentou-se à cerimónia
religiosa a celebração quadrienal de festas profanas (Agnes Bernauer Festspiele), que incluem a reconstituição teatral
dos amores de Albrecht e Agnes, do julgamento e execução do “Anjo de Augsburg”
nas águas do Danúbio e um jantar com centenas de convivas. De entre as dezenas
ou centenas de candidatos, todos os anos é escolhido o par Albrecht-Agnes do
ano.
Albrecht terá conhecido Agnes em 1428
durante um torneio em Augsburg. Dizem alguns que esse torneio foi decretado
especificamente para celebrar o noivado de Albrecht com Elisabeth de
Württemberg, embora este noivado só tenha sido formalizado em 1429. Outros
negam completamente esta hipótese, talvez porque soaria estranho (ou não) que
Albrecht se tivesse apaixonado perdidamente por Agnes precisamente quando
estava prestes a casar com Elisabeth. Segundo algumas fontes, Albrecht nem terá
chegado a participar no torneio. Por motivos pouco claros, os juízes da
competição não terão aceitado a sua inscrição. É possível que o próprio pai
tenha feito esse pedido com a intenção de proteger a vida do seu único
herdeiro. Muitos cavaleiros ficavam gravemente feridos nestas competições e
alguns morriam no próprio local. O nosso D. Afonso IV não permitiu que D. Pedro
I, seu filho e herdeiro, participasse na batalha do Salado para lhe proteger a
vida.
Logo no ano seguinte, 1429, Ernst assinou
com Eberhard III, Conde de Württemberg um contrato de casamento que visava unir
Albrecht a Elisabeth de Württemberg, filha do referido conde. Não se sabe como
Albrecht reagiu a este contrato, mas sabe-se que Elisabeth fugiu pouco depois
para casar com João IV de Werdenberg, que tinha sido escudeiro do próprio pai.
Pouco depois, em 1432, Ernst nomeia Albrecht administrador do território da
Baviera-Straubing.
Albrecht abandona o palácio do pai e passa
a viver num dos seus castelos na região de Sraubing. Embora não haja provas documentais
do casamento, alguns historiadores pensam que foi nesse ano (1432) que Albrecht
casou secretamente com Agnes e passou a viver com ela num castelo próximo de
Straubing. Sabe-se sim que Agnes foi executada e sepultada em Straubing, não em
Augsburg. A pedra tumular, com uma efígie em tamanho próximo do real foi colocada
no soalho da capela de S. Pedro (depois chamada Agnes Bernauer) em Straubing e
aí se manteve até finais do século XVIII. Para evitar o desgaste do
baixo-relevo, em 1785, a pedra foi encastrada numa das paredes da capela onde
se mantém até hoje. Há relativamente poucos anos (2013) foi erigido um memorial
dedicado a Agnes e Albrecht no castelo de Blutenburg, supostamente um dos
lugares onde teriam vivido juntos. Não, nunca viveram juntos nesse lugar; o
castelo de Blutenburg foi mandado construir por Albrecht III após a morte de
Agnes (1435) e após o casamento com Anna von Brunswick (1436); foi construído
entre 1438 (o ano em que ascendeu ao trono) e 1439.
Como acontece com todas as histórias que
se transformaram em lendas, existem inúmeras versões, por vezes, completamente
contraditórias. Segundo o poeta alemão August von Platen, que visitou a capela
Agnes Bernauer em Straubing no ano de 1822, alguns dos habitantes locais tinham
feito circular uma versão em que Agnes é que era a verdadeira filha do duque
Ernst e Albrecht era filho de um barbeiro-cirurgião. Por motivos desconhecidos,
as crianças tinham sido trocadas pouco depois da nascença. É claro que esta
versão não pode ter fundamento: Albrecht tinha cerca de dez anos a mais do que
Agnes…
E agora, mergulhando um pouco mais nesta
história tão semelhante e tão diferente da história de Pedro e Inês…
Dizem uns que Agnes era filha de um
barbeiro-cirurgião de Augsburg, Kaspar Bernauer, outros que era filha de um
estalajadeiro ou taberneiro, de um padeiro, de um artesão, de um “banheiro”
(proprietário de uma Casa de Banhos), de um burguês respeitável... Dizem uns
que Agnes ajudava o pai no seu ofício (sobretudo os que dizem que ele era
estalajadeiro e ela cozinhava e servia os hóspedes), outros vêem-na fechada no
recato do lar, raramente se deixando ver por estranhos, outros ainda vêem uma
alegre donzela passeando com as amigas pela margem do rio, e aqueles que menos
simpatizam com Agnes vêem-na como uma ajudante numa Casa de Banhos Públicos… Seja
como for, o certo é que Agnes não pertencia à aristocracia. Tinha origens
humildes e vivia como uma vulgar rapariga do povo. E é precisamente aí que
começa a sua tragédia. Aí e no facto de ser extremamente bela, uma combinação
fatal numa sociedade rigidamente estratificada e sem mobilidade social. Por
isso, alguns vêem nela um símbolo trágico da luta de classes. O mesmo juízo se
poderia aplicar a Albrecht, porque é ele que faz verdadeiramente as escolhas
contra tudo e contra todos; Agnes é arrastada para o centro de uma batalha de
valores e preconceitos em que ela será a única verdadeira vítima.
Um barbeiro-cirurgião não era propriamente
um ignorante; tinha alguns conhecimentos de cirurgia, de medicina, das
propriedades curativas das plantas e de algumas substâncias químicas. Também
era dentista, aplicava ventosas e sanguessugas, fazia sangrias e, se tivesse
carta de cirurgião, poderia até fazer trepanações, uma delicada operação que
implicava perfurar o crânio para extrair tumores ou “humores malignos”. Esta
operação aplicava-se sobretudo aos sifilíticos, aos epilépticos e aos “loucos”.
Se Agnes era filha de um barbeiro-cirurgião, então, provavelmente, saberia ler
e teria aprendido também alguns dos procedimentos que via o pai efectuar e
conheceria as propriedades das plantas. O facto de ter sido acusada de fabricar
venenos e poções mágicas poderia ligar-se a esta hipótese.
As Casas de Banhos Públicos eram
estabelecimentos onde as pessoas podiam tomar banho e receber massagens. Eram
sobretudo frequentadas por homens, incluindo monges e nobres, e as ajudantes e
massagistas eram sobretudo mulheres. Eram elas que carregavam os baldes de
água, enchiam as tinas de madeira ou metal, ensaboavam e esfregavam os clientes
e, por fim, davam-lhes massagens. Estas casas eram muitas vezes conhecidas como
estabelecimentos de prostituição. Esta hipótese interessa sobretudo aos que
queriam denegrir o carácter de Agnes, incluindo os juízes que a acusaram e
condenaram em nome do duque Ernst, pai de Albrecht.
A
hipótese da Casa de Banhos é também compatível com a exploração de uma estalagem,
podendo coexistir a hospedagem e os banhos públicos no mesmo local. Mas uma
estalagem em si mesma oferecia apenas dormida e comida, sobretudo aos viajantes
ou aos que permaneciam temporariamente num local. No presente, existem em
Augsburg restaurantes e bares com o nome de Agnes Bernauer; distribuem folhetos
promocionais em que contam sucintamente uma das versões da história de Agnes e
a apresentam como uma empregada de mesa risonha e gentil, seguindo
provavelmente a tradição dos que acreditam que o pai era estalajadeiro ou
taberneiro.
Se era um artesão, qual era o seu ofício?
Ninguém sabe dizer ao certo. Se era um padeiro, também podia ser estalajadeiro
ou taberneiro. Um dos doces típicos de Straubing é a “Agnes Bernauer Torte”,
criada a posteriori pelos locais como
estratégia de marketing turístico e não pelo pai de Agnes, se de facto foi
padeiro ou pasteleiro. Se era um burguês, poderia ser um mercador, um banqueiro
ou também o proprietário rico de uma estalagem afamada.
Mais importante do que saber a exacta
profissão do pai de Agnes é o facto de ela e Albrecht terem conscientemente e
de modo determinado infringido as convenções sociais e morais que impediam tal
união. Ambos sabiam que as consequências podiam ser terríveis para ambos e para
a sobrevivência do próprio ducado da Baviera-Munique. Como único herdeiro varão,
Albrecht sabia que escolher Agnes significava que não poderia assumir o título
e funções de duque da Baviera-Munique. Convém lembrar que a Baviera estava
dividida em vários ducados e condados, não era um reino único com um só
governante.
Não era apenas o pai de Albrecht que se
opunha, era toda a família e a aristocracia em geral. Escolhendo Agnes, só
restava a Albrecht abandonar os seus territórios e tornar-se um apátrida. O
ducado da Baviera-Munique seria assimilado por um condado ou ducado vizinho e
seria governado por outra linhagem. A menos que alimentasse a ideia fantasiosa
e ingénua de conseguir impor Agnes como sua legítima consorte e duquesa da
Baviera-Munique. Provavelmente alimentou esta ideia e foi ela que conduziu à
morte de Agnes. As elites teriam aceitado Agnes como concubina, desde que se
mantivesse discreta e mais ou menos invisível. Aparentemente, nunca foi essa a
intenção de Albrecht, o que só abona em seu favor. Que distância de Pedro e
Inês! A Inês dissimulada e ambiciosa que serve os seus intuitos e os dos seus
irmãos; o Pedro que não é fiel a ninguém, nem a Constança nem a Inês, e
alimenta a pretensão de se tornar ele próprio rei de Castela!
Abrecht, pelo contrário, era voluntarioso
e determinado mas não ambicioso. Para compensar tinha outros defeitos e
preconceitos, e bem terríveis. Após a morte de Agnes e do seu pai, Albrecht
recusou (em 1440) a coroa da Boémia que lhe foi oferecida. Mas era tão
intolerante e “justiceiro” como D. Pedro I, o Cru; em 1442 decreta a expulsão
de todos os Judeus das terras do seu ducado e confisca-lhes os bens. Alguns
suspeitam que a própria família de Agnes fosse de origem judaica; isso
explicaria a total ausência de registos escritos relativos à sua família.
Ao longo de 1444 e 1445, guerreia,
persegue, prende e pune os chamados “Barões Ladrões” que, à semelhança de
muitos senhores feudais prepotentes, impunham impostos elevados, mesmo em
terras que não lhes pertenciam, cobravam taxas para passar em determinada
estrada ou parcela do rio, exigiam a prestação de serviços gratuitos aos moradores
das terras ocupadas e saqueavam indistintamente os senhores das terras (nobres,
bispos e arcebispos), os mercadores, os viajantes e os servos. Eliminá-los era
uma forma de preservar os seus próprios domínios e a segurança do seu ducado. Curiosamente,
a própria Agnes terá participado na captura de um destes salteadores (Münnhauser)
na zona de Munique.
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