Esta é a terceira série do folheto Toma Lá! de 2022-2023. Neste momento já está concluída a primeira série de 2023-2024 no formato Word, mas ainda vai levar muito tempo até conseguir produzir o vídeo correspondente. Não é possível transformar o Word em vídeo, é preciso refazer tudo novamente.
Paralelamente às séries habituais, em 2023-2024 vou produzir várias séries especiais: uma dedicada aos "Livros Que Quase Ninguém Lê", uma dedicada às Artes Performativas, uma dedicada à Ucrânia, uma dedicada a Israel...
Toma Lá! 2022 2023 - Série III - Abril a Junho de 2023
A segunda série de 2022-2023 foi especialmente dedicada à Ucrânia e ao povo ucraniano. Na introdução do vídeo escrevi, em Fevereiro de 2023, o mesmo que continuo a pensar hoje:
Um ano após a invasão russa em larga escala, a Ucrânia continua a lutar e a morrer por todos nós. O Mundo Livre continua cobarde e hipócrita. Não ajuda a Ucrânia para que vença, teme a vitória da Ucrânia. Ajuda a Ucrânia apenas para que não perca mais. Tem medo de vencer a Rússia, quando esse deveria ser o principal objectivo. Só há duas formas de pôr fim a esta guerra: ou a Rússia sai da Ucrânia e devolve todos os territórios ocupados e invadidos ou o Mundo Livre apoia de facto a Ucrânia e permite-lhe uma vitória total.
São Ludovino, Fevereiro de 2023
Toma Lá! 2022 2023 - Série II - Janeiro-Março 2023 - Standing With Ukraine
Em 2022-2023, voltei a editar o folheto Toma Lá!, que criei há cerca de 15 anos. O propósito inicial era promover o Concurso Literário anual e fomentar o gosto pela leitura e pela escrita. Com o tempo, foi-se tornando num instrumento de criação e expressão diversificado, mas também um elo com as realidades actuais. Para além do lugar privilegiado que a Literatura e a Arte continuam a ter, agora o Toma Lá! é também um receptáculo de informação e reflexões sobre o mundo que nos rodeia, sobretudo os factos mais preocupantes que ninguém pode ignorar.
O grande desafio deste projecto reside no facto de o folheto ter apenas 4 páginas no formato A5. É difícil escolher textos que caibam em tão exíguo espaço. Mais difícil ainda é escrever textos com alguma complexidade em apenas 15 ou vinte linhas...
Toma Lá! 2022 2023 - Série I - Setembro-Dezembro 2022
Tal como aconteceu com Inês de Castro,
também Agnes Bernauer inspirou escritores, compositores, artistas plásticos e
cineastas, não só na Alemanha, mas noutros países europeus. Para além das obras
de autores célebres, como Otto Ludwigs, Joseph August Törring e Friedrich Hebbel, existem também baladas e contos populares de autores
anónimos. Abaixo fica uma balada popular dialogada de autor anónimo, na
tradução francesa:
«Hebbel é o dramaturgo mais lógico,
ligando da maneira mais implacável os acontecimentos aos caracteres: quase
sugere o fatalismo. “Aquilo de que o homem é capaz de se tornar, isto ele já é
perante Deus.” O deus de Hebbel, porém, é a História, não no sentido de Hegel,
mas no sentido sociológico, como peso das tradições e convenções que se opõem à
vontade do indivíduo. E Hebbel chegou a apreciar a tradição como fator positivo,
superior ao arbítrio individualista. Depois da desilusão de 1848 escreveu a
tragédia Agnes Bernauer: os dramaturgos que tinham tratado esse episódio da
história medieval, tomaram todos o partido do príncipe bávaro, revoltando-se
contra o pai que lhe mandou assassinar a amante burguesa; Hebbel, porém, aprova
a “raison d’État” do velho duque que sacrifica a felicidade do filho aos
interesses da coletividade.»
(in História da Literatura Ocidental, Vol. III, Otto Maria Carpeaux,
Edições do Senado Federal, Brasília, 2008, p. 1725)
Friedrich Hebbel by Carl Rahl, 1855.
La Chanson de la belle
Bernauer (1)
Trois seigneurs sortent à cheval de
Munich; ils vont vers la maison de Bernauer. «Bernauer, es-tu là-dedans, oui,
là-dedans?»
«Si tu es là-dedans, viens, sors un
instant; le duc est devant ta maison, avec toute sa cour, oui, avec toute sa
cour.»
Dès que Bernauer eut entendu ces mots,
elle mit une chemise blanche comme neige, pour paraître convenablement devant
le duc, oui, devant le duc.
Sitôt qu'elle parut à la porte, les trois
seigneurs la saisirent. «Bernauer, que veux-tu faire, oui, que veux-tu faire?
«Veux-tu quitter le duc, ou bien quitter
ta vie, si jeune et si fraîche, être noyée dans le Danube, oui, dans le
Danube?»
«— Le duc est à moi, et je
suis à lui. Nous sommes fidèlement fiancés, oui, fiancés.»
Bernauer nagea sur Veau. Elle avait
invoqué Marie, la mère de Dieu, pour qu'elle l'aidât dans cette angoisse, oui,
dans cette angoisse.
«Marie, sors-moi de cette eau. Mon duc te
fera bâtir une église neuve; il te fera faire un autel de marbre, oui, de
marbre.»
Dès qu'elle eut ainsi parlé, Marie, là
mère de Dieu, vint à son aide, et la sauva de la mort, oui, de la mort.
Dès que Bernauer arriva sur le pont, un
Yalet de bourreau s'approcha d'elle. «Bernauer, que veux-tu faire, oui, que
veux-tu faire?»
«Veux-tu être la femme du bourreau, ou
veux-tu que ton corps jeune et fier soit noyé dans l’eau, oui, dans l'eau?
«— Avant de devenir la
femme du bourreau, je laisserai noyer mon jeune et fier corps dans l'eau du
Danube, oui, dans l'eau du Danube.»
A peine trois jours se sont écoulés, que
la triste nouvelle parvint au duc. «Bernauer est noyée, oui, noyée.»
«— Qu'on appelle tous les pêcheurs, qu'ils
pèchent jusqu'à la mer Rouge, qu'ils cherchent ma douce amie, oui, qu'ils la
cherchent !»
Tous les pécheurs arrivent; ils ont péché
jusque dans la mer Rouge, ils ont trouvé Bernauer, oui, ils l'ont trouvée.
Ils la mettent sur les genoux du duc. Le
duc verse des milliers de larmes. Comme de cœur il pleure, oui, comme il
pleure!
«Appelez cinq mille hommes; je veux faire une
nouvelle guerre au seigneur mon père à l'instant même, oui, à l'instant même!»
«Et si je n'aimais autant le seigneur mon
père, je le ferais pendre comme un voleur. Mais ce me serait une grande honte, oui,
une grande honte.»
A peine trois jours sont écoulés, une
triste nouvelle parvient au duc: «Le seigneur son père est mort, oui, mort
«— Ceux qui m'aideront à enterrer le
seigneur mon père doivent porter des manteaux rouges; ils doivent porter des
manteaux rouges, oui, rouges.»
«―Ceux qui m'aideront à enterrer ma belle
amie doivent porter des manteaux noirs; ils doivent porter des manteaux noirs,
oui, noirs.»
«―Nous fonderons une messe perpétuelle,
pour qu'on n'oublie pas Bernauer. Que pour elle on prie, oui, que pour elle on
prie!»
*********************
(1) Agnès
Bernauer, fille d'un bourgeois d'Augsbourg, fut épousée secrètement par Albert
de Bavière, fils unique du duc Ernest. Celui-ci, pendant une absence du prince,
fit saisir Agnès à Straubing, où elle habitait, et la fit jeter dans le Danube,
le 16 octobre 1436. Elle surnagea pendant quelque temps, et appelait au
secours, lorsqu'elle fut replongée dans l'eau par le bourreau. Albert, furieux,
courut aux armes; mais, en 1437, il consentit à épouser Anne de Brunswick. Le
duc Ernest avait fait enterrer Agnès honorablement, et, dix ans plus tard,
Albert fonda une messe à perpétuité pour le repos de son âme. La beauté d'Agnès
est restée célèbre dans son pays.
(In Ballades et chants populaires (anciens et modernes) de l'Allemagne
by Hortense Cornu, Sébastien Albin Hortense Cornu, Paris, 1841, págs. 33-35.)
O poema que se segue é de um autor
contemporâneo, Günter Eich (1907-1972), poeta, letrista e dramaturgo alemão, polémico
durante e após o nazismo. Agnes não é aqui o centro do poema, é uma referência
associada a Augsburg e à luz passageira que não chega a ver-se brilhar porque é
demasiado lenta ou demasiado rápida.
Agnes Bernauer viveu numa época em que as
acusações de heresia, bruxaria e alta-traição eram frequentes. João Huss
(1369-1415), acusado de heresia, foi queimado vivo (em
Constança, Boémia, a 6 de Julho de 1415, o dia do seu aniversário) 20 anos antes de Agnes ser lançada ao Danúbio. João Huss
foi precursor de Lutero e da Reforma e angariou inúmeros seguidores durante o
seu tempo de pregador e professor na Universidade de Praga. Foi um crítico
frontal das práticas desonestas e prepotentes da Igreja Católica (as
indulgências, as simonias, o nepotismo, a intolerância e o materialismo). A sua
execução desencadeou as chamadas Guerras Hussitas, que se estenderam de 1419 a
1434 (um ano antes da execução de Agnes). Na região da Boémia, os Hussitas
moderados ganharam a guerra, mas a verdadeira Reforma só teria início a partir
de 1516-1517 com a publicação das 95
Teses de Martinho Lutero. A extrema repressão contra os dissidentes, levada
a cabo pelo Sacro Império Romano Germânico, governado por Carlos V e pelo
papado, prenunciava já os horrores da Contra-Reforma (a Inquisição e os seus
autos de fé) e a Guerra dos Trinta Anos entre Católicos e Protestantes, só
terminada em 1648 com a Paz de Vestefália. A Boémia e a Baviera foram dois dos
palcos destes conflitos religiosos e políticos.
John Huss (1369-1415).
Gustav Freytag, que prefaciou a publicação
das obras dramáticas de Otto Ludwig (1870), em que se incluiu a tragédia inacabada
Der Engel von Augsburg (O Anjo de Augsburgo), referindo-se às
Guerras Hussitas (contemporâneas de Agnes e Albrecht), assinala o facto de a
violência extrema e a execução bárbara de inocentes se ter tornado demasiado
banal. Já o era ainda antes da execução de João Huss.
«(…) It was the peculiar destiny of Germany that this great struggle
should first break out among the teachers and scholars in the halls of the
universities, and that the funeral pile of a Bohemian professor (refere-se a
João Huss ou Jan Huss) should give a new direction to the policy of
German princes and people.
The auto-da-fé of Huss did not appear to the
Germans a very striking or blamable occurrence; people in those days were
hastily condemned to death, and there hardly passed a year that the torch was
not laid to the stake in every large city. However great the grief and
indignation of the national party of Bohemia might be at these proceedings, the
wild fanaticism of the people was first roused by another and greater crime of
the reckless Emperor Sigismund, who, at the
head of the orthodox German fanatics, began the strife by the great massacre in 1420; this outrage gave the
Bohemians the strength of despair, and was the beginning of the wars which
raged between the Germans and the Sclaves to the end of that century.Even after dissensions had broken out amongst the
Bohemians themselves, and after the death of Georg von Podiebrad (refere-se ao
rei da Boémia que morreu em 1471), feuds continued, and predatory bands
spread themselves over the neighbouring lands, the people and nobility of
Bohemia as well as those of the suffering frontier lands became lawless, and a
hatred of races, less passionate but more savage and more enduring, took the
place of fanaticism.»
(In Pictures of
German Life in the XVth, XVIth and XVIIth
Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862.
Chapter I, “Scenes from the Hussite War”, pp. 23-24)
Execução de John Huss (1369-1415).
O
fanatismo era recíproco entre Católicos e Hussitas. Gustav Freytag transcreve o
relato de um mercador (Martin von Bolkenhain), datado de 1425, sobre o ataque
dos Hussitas a uma cidade da Silésia (Wünschelburg). Os cidadãos da cidade
refugiaram-se na casa acastelada do burgomestre e eles próprios incendiaram a
sua cidade na esperança de que os atacantes desistissem e fossem embora. Não
foram. Esperaram dias até que as chamas se apagaram. Vendo que a casa
fortificada do burgomestre ainda estava de pé, cercaram-na e exigiram a rendição
de todos os que se encontravam dentro dela. Pouco a pouco, todos se renderam,
incluindo o próprio burgomestre, excepto um padre e um grupo pequeno de
artesãos, dois capelães e um velho pároco de aldeia. Destes últimos, alguns
saíram disfarçados de mulheres com crianças ao colo; outros acabaram por
render-se também, excepto o padre (“Pastor Megerlein”) que permaneceu dentro da
casa. Os Hussitas foram buscá-lo e incendiaram a casa e os estábulos. Alguns
dos que se tinham escondido lá, sobretudo mulheres e crianças, morreram também
nas chamas. Os Hussitas levaram então o padre para o meio da multidão que se
rendera e exigiram-lhe que negasse tudo o que pregara. O padre recusou
veementemente, acabando por ser martirizado de forma semelhante à que os
Católicos usavam com os Hussitas. Eis um excerto do relato:
«(…) But
when they saw that the citizens had all surrendered, great fear came over them,
and they went down and submitted themselves; but the pastor remained there with
an old village priest to the last. Then the Hussites went up to them and
brought them down, and led them into the midst of the army and the multitude.
Then Master Ambrosius, a heretic of Gratz, being present, spoke to these
gentlemen in Latin: 'Pastor, wilt thou gainsay and retract what thou hast
preached? thus thou mayst preserve thy life; but if thou wilt not do this, thou
must be burnt.' Then answered Herr Megerlein the pastor, and said, “God forbid that I should deny the truth of
our holy Christian faith on account of this short pain. I have taught and
preached the truth at Prague, at Gorlitz, and at Gratz, and for this truth will
I gladly die”. Then one of them ran and fetched a truss of straw, which
they bound round about his body so that he could not be seen; they then set fire to the straw, and made him, thus surrounded by
flames, run and dance about in the midst of the multitude, till he was
suffocated. Then they took him as a corpse and threw him into a brewer's
vat of boiling water; they also threw in the old village priest, and let them
boil therein; thus they were both martyred; but the two chaplains of whom I
have before spoken, came out with the women
concealed in women's clothes, and the child that one of these priests
bore on his arm began to weep and to cry after its mother, and the priest tried
to comfort and quiet it. So the Hussites discovered by the voice that it was a
man, and one of them took the veil off him; then he let fall the child, took to
flight, and ran with all his might; they followed after and killed him. The
other came away with the women and children. This happened at Wünschelburg.»
(In Pictures of
German Life in the XVth, XVIth and XVIIth
Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862.
Chapter I, “Scenes from the Hussite War”, pp. 27-28)
Ernst,
pai de Albrecht era um católico conservador e dogmático. Ele próprio participou
nas Guerras Hussitas, directa e indirectamente, travando batalhas com aqueles a
quem chamavam “apóstatas” e “heréticos” ou apoiando outros monarcas que lideravam
a guerra contra os Hussitas, como o imperador Romano-Germânico Segismundo (“Emperor Sigismund was one of the worst of
his race”, op. cit., pp.37-38).
Ernst travou também inúmeras batalhas com os ducados e condados vizinhos, pois
nem a Baviera nem a Boémia eram reinos unificados e os senhores feudais que os
governavam, como Ernst e Albrecht, viviam em constante conflito com os
vizinhos, tentando manter ou alargar o território. Para além das fronteiras com
os vários ducados da Baviera, era também preciso manter e defender a longa
fronteira com a Boémia.
A forte incidência das Guerras Hussitas na
Boémia e na Silésia mostram também que para além dos conflitos religiosos e
territoriais, existia paralelamente um conflito étnico-político entre eslavos e
germânicos. Após a guerra dos Trinta Anos, Boémios e Silésios, sobretudo estes
últimos, viveram ainda mais um século de opressão e perseguições religiosas. O
facto de a Boémia ter vivido durante décadas a ferro e fogo permite também
pensar que Albrecht não recusou a coroa da Boémia apenas por não ser ambicioso,
mas também por não querer administrar um território que então era ingovernável.
Os “Barões Ladrões”, já mencionados acima, eram também responsáveis pela
guerrilha constante e pela insegurança generalizada. Alguns deles usaram como
pretexto as guerras religiosas para praticar a pilhagem e se apoderarem de
territórios onde já ninguém tinha autoridade.
Embora nunca use a expressão “Barões
Ladrões”, é certamente a eles que se refere Gustav Freytag quando diz o
seguinte:
«(…) This endless war ruined German Silesia: the plains lay waste and
desolate, and most of the German peasantry in this century of fire and sword
sank into a state little removed from that of the
Sclave serfs. The smaller cities were burnt down and impoverished, and
only a few of the larger ones have since attained any degree of importance. The
Silesian nobles became rude and predatory; they
learnt from the Bohemians to steal cattle, to seize merchants and traders, and
to levy contributions on the cities. The princes in their endless
disputes with one another allied themselves sometimes with the Bohemians, and
shared their booty with them; indeed, some of them
took pleasure in a wild robber life, carrying it on even in their own country.
These deeds of violence and lamentable struggles continued quite into the
sixteenth century, till the Reformation gave a new bent to this lively and
impressible race, and brought with it new sufferings.»
(In Pictures of
German Life in the XVth, XVIth and XVIIth
Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter
I, “Scenes from the Hussite War”, pp. 31-32)
A
acusação de bruxaria era inapelável e irremissível, por isso mesmo foi uma das
acusações feitas a Agnes Bernauer; nada nem ninguém a poderia salvar. E
qualquer que fosse a pena aplicada seria sempre horrenda. Regra geral, a
escolha era entre o fogo e a água. A água, que também servia para “eliminar” a
loucura; vestiam-se os loucos (ou supostos loucos) de branco, colocavam-se num
barco sem remos e sem velas e deixavam-no ir com a correnteza para não mais
voltar. O fogo, associado ao próprio diabo e às penas do inferno, era
contraditoriamente usado pelos que pregavam a pureza celestial e a misericórdia
divina. Milhares de supostas bruxas foram torturadas e queimadas, antes e
durante a vigência da Inquisição, nos países católicos e nos países
protestantes. A Agnes foi reservada a água, não certamente por implicar um
sofrimento menor, mas por ser mais rápida e haver sempre a hipótese de a
corrente do rio levar consigo o corpo e a memória de um acto hediondo. Sem
corpo poderia haver a ilusão de uma dor menor. Mas o corpo terá sido mesmo
retirado do rio e sepultado em Straubing. Mesmo assim, a cultura popular
encarregou-se de versejar e musicar outros desenlaces. Abaixo, transcrevo “La
Chanson de la belle Bernauer”, que apresenta um Albrecht completamente
destroçado, enviando pescadores pelo rio fora em busca do corpo de Agnes;
pede-lhes que sigam o rio e eles seguem… até ao Mar Vermelho, embora o Danúbio
desague no Mar Negro.
Note-se que, apesar de Inês de Castro ter
sido morta cerca de um século antes (1355), ninguém das esferas do poder teve a
veleidade de a acusar de bruxaria. Aliás, o fanatismo religioso em Portugal era
ainda incipiente, mesmo contra os Judeus; a grande luta era ainda contra o
infiel, os Mouros, não contra os hereges, os dissidentes da ortodoxia Católica.
Foi depois, o povo não a corte que criou uma série de adágios que atribuíam a
Inês um pacto com o demónio. Já dei, num post
anterior, um exemplo dessa antipatia popular e da associação de Inês de Castro ao
diabo plasmada em ditos populares. Gomes Monteiro, autor do prefácio ao drama Inês de Castro, de Victor Hugo, escrito
quando o autor tinha apenas catorze anos, acrescenta um outro adágio que
pretende dar de Inês de Castro a imagem de uma mulher de mau carácter,
traiçoeira, oportunista e ambiciosa:
«Inês de Castro, quando muito, foi a
precursora de Ana Bolena que, após ter atraiçoado a sua ama e senhora (refere-se a D.ª
Constança), se lhe apoderou da coroa e do marido. Inês não foi tão
longe, porque não lhe deram tempo para isso.
E tanto assim é que, ainda hoje, em
algumas das nossas províncias, quando pretendem definir uma má mulher, dizem:
“Aquilo é uma Ana Bolena!” ou “Aquilo é uma Inês de Carasto (sic)!”»
Certamente, quem inventou tal adágio não
conhecia Henrique VIII… e pensava que D. Pedro era uma alma delicada…
Inês de Castro, de Victor Hugo, Guimarães Editores
A Inês de Castro de Victor Hugo, como o
próprio autor confessa, inspira-se sobretudo em Camões (episódio lírico de Inês
de Castro, Os Lusíadas, canto III),
na Castro de António Ferreira e nos
relatos “históricos” que lhe tinham feito durante uma viagem a Espanha.
Percebe-se, portanto, que o seu drama, apesar de muito bem escrito, contenha
inúmeros “erros históricos”. Victor Hugo nunca chegou a publicar esta obra da
sua adolescência. Anos mais tarde, quando já era um autor reconhecido e
aclamado, e depois de ter estudado a história em outras fontes, Victor Hugo
explicou que nunca publicara este drama por considerá-lo “Tolices que fazia antes do meu nascimento”. Refere-se ele a tolices
como: “Inês, condessa de Castro”; Inês, uma grande patriota de Portugal; “D.
Afonso IV, o Justiceiro”; Inês como dama de honor de D. Beatriz; D. Beatriz,
mãe de D. Pedro, tomada como sua madrasta e autora do suposto envenenamento de
Inês de Castro, com quem D. Pedro teria inicialmente casado, para assim
permitir o casamento deste com uma princesa castelhana; os nomes de quase todos
os locais são espanhóis; o chefe muçulmano Albaracim tenta conquistar Lisboa e
D. Afonso IV morre na batalha de defesa da cidade; D. Pedro ascende ao poder e
vinga-se. Pois, são de facto muitas “tolices históricas”, mas perdoadas as
muitas imprecisões e mesmo distorções da verdade histórica, vale a pena ler
esta obra da adolescência de Victor Hugo. Os diálogos simples mas bem
construídos, escritos por vezes numa linguagem informal, que seria mais do séc.
XIX do que do séc. XIV sustentam bem a sua recriação da história. Alguns são
também ricos do ponto de vista social e psicológico. Um pequeno excerto da cena
I do acto II, entre os guardas e o carrasco, antes do início do suposto
julgamento formal de Inês de Castro:
O Primeiro Guarda
«Tens razão. (Dirigindo-se a um dos carrascos) Olá, Melchior, sabes quem é a
mulher que o Conselho vai julgar?
O Carrasco
Não
sei.
O Primeiro Guarda
Mas
é uma mulher, não é verdade?
O Carrasco
Não sei. De resto, isso não me diz
respeito. Eu só conheço os criminosos depois de condenados.
O Primeiro Guarda
Pois eu tenho dó da pessoa acusada, seja
ela quem for. Desde que se assente neste banco, está perdida.»
Não encontrei provérbios alemães sobre
Agnes Bernauer. O epíteto que lhe foi associado, Anjo de Augsburgo, está nos antípodas do diabolismo e da malvadez
que os seus juízes e executores lhe atribuíram. Otto Ludwig, 1813-1865, foi o
primeiro a usá-lo na literatura (Der
Engel von Augsburg, 1856), mas não é certo que tenha sido ele o criador da
expressão. Pode tratar-se de uma expressão popular assimilada pelos literatos.
Se assim for, o epíteto encerra uma nítida condenação popular daqueles que a sentenciaram e assassinaram, tomando-a como o cordeiro sacrificado, a inocente e
insignificante plebeia que teve de morrer para que o poder dos fortes
continuasse a imperar sobre os insignificantes. Parece ser também uma tentativa
de redenção de um ser injustiçado e uma forma de transformar Agnes num ente
luminoso e protector da própria cidade que a viu nascer. Esta interpretação
aplica-se à abordagem de Otto Ludwig e de outros autores.
Para mais informação sobre as penas
aplicadas aos que eram acusados de feitiçaria, sortilégios, adivinhação, uso de
poções e venenos, blasfémia, apostasia e pactos com o diabo veja-se, por
exemplo, o Dictionnaire de la pénalité
dans toutes les parties du monde connu, Edme Théodore Bourg, known as
Saint-Edme, 1785-1852, Tome V, Chez Rousselon, Paris, 1828, pp. 382-396.
Contém também inúmeros exemplos de casos
ocorridos nos locais mais diversos do mundo. Aqui fica apenas um excerto relativo a Portugal:
«Portugal. Le crime de
sorcellerie fut un de ceux que le roi Jean V laissa à la connaissance de
l'inquisition quand il restreignit la juridiction de ce tribunal tyrannique. Ce
fut une porte ouverte à une multitude de
condamnations et un champ immense pour la cruauté. On pouvait encore
allumer bien des bûchers et y précipiter des innocents et des imbéciles, tels
que ce jésuite Malagrida, qui avait choisi la sainte Vierge pour l'objet de ses
amours, et prenait, dans son délire, les effets d'une virilité prolongée pour
les extases de la béatitude.» (p. 395)
A literatura alemã, quer popular quer
erudita, é rica em narrativas fantásticas. A intervenção do sobrenatural, os
poderes mágicos, a superstição e o animismo das coisas naturais e inanimadas
que inspiraram tantas criações literárias têm a sua origem na própria vida, nas
crenças e tradições que, embora pagãs e profanas, coexistiram e imbuíram as
crenças religiosas e as vivências sociais. Dentro e fora da religião, estas
crenças persistiram; tiveram influência quer sobre os mais dogmáticos quer
sobre os mais reformistas e acompanharam a evolução do pensamento e das
mentalidades em toda a Europa. A eterna luta entre o bem e o mal está
subjacente a todas estas crenças e fantasias. Mas onde termina o bem e começa o
mal? E de que forma é que os conceitos de bem e mal moldam a justiça?
Na perspectiva de Gustav Freytag, a
mitologia greco-romana é a grande responsável pela disseminação de inúmeras
superstições, reformuladas e recriadas segundo a cultura pré-existente de cada
povo ou comunidade. A ideia de “diabo” (o supremo mal, o grande tentador) nasce
com o Cristianismo, que coloca Cristo (o supremo bem, o salvador) num confronto
com a sua antítese. O Cristianismo não eliminou as crenças primevas, adaptou-as
ou adaptou-se a elas, deu-lhes novas roupagens e propósitos. A luta entre o bem
e o mal, a luz e as trevas persiste com novos nomes, imagens e protagonistas.
Mais do que vencer o mal, as crenças e práticas religiosas (cristãs ou outras)
vêm proteger do mal. Um artifício que torna as religiões indispensáveis para
combater o grande tentador, mesmo que sejam as religiões a origem de tantos
males. As religiões apropriaram-se do bem e do mal, inventaram deuses e
demónios, e tornaram-nos dogmas, legislaram sobre eles, instituíram a sua
própria jurisdição e aplicaram sobre os descrentes, os críticos e os inocentes
as penas mais bárbaras.
No início do capítulo dedicado às
concepções do diabo na cultura alemã do século XVI, Gustav Freytag explica esta
génese da concepção do mal na cultura germânica. Em seu entender, as
superstições ligadas ao diabo floresceram mais na cultura alemã do que em
qualquer outra. Deve ter razão, ou não fosse um alemão o criador do Doutor
Fausto que vende a alma ao diabo em troca de todo o conhecimento. Os excertos
que transcrevo a seguir são longos mas vale a pena serem lidos. G. Freytag
narra também a relação pessoal de Lutero com o diabo (os “poor devils” que insistiam em atormentá-lo sem causar grande dano e
os “great devils” que em seu entender
eram os “doctores theologiae”, esses
sim, verdadeiramente perigosos e malévolos) e a forma matreira e engenhosa que
Lutero arranjou para o ridicularizar e enfraquecer. Esses episódios não são
aqui transcritos, mas também vale a pena lê-los.
Straubing und die Donaubrücke zur Zeit der
Agnes Bernauer in Die Gartenlaube, 1873, p. 455.
Straubing e a Ponte do
Danúbio na época de Agnes Bernauer in Die
Gartenlaube, 1873, p. 455.
Seguem-se dois longos excertos: um sobre a
forma como a religião forjou um fanatismo bárbaro; outro sobre a tentativa de
uns poucos iluminados e sensatos restabelecerem a humanidade nas terras e nas
mentes corrompidas e devastadas por dogmas absurdos.
EXCERTO
1:
«The
phantasies of the human mind have also a history; they form and develop
themselves with the character of a people whilst they influence it. In the century of the Reformation, these phantasies had
more weight than most earthly realities. It is the dark side of German development which we there
see, and to it is due the last place in the characteristic features of the
period of the Reformation.
In the most
ancient of the Jewish records there is no mention
of the devil except in the book of Job; but at the time of Christ, Satan
was considered by the Jews as the great tempter of
mankind, and as having the power to enter into men and animals, out of
which he could be driven by the invocations of pious men. The people estimated
the power of their teachers by the authority that they exercised over the devil.
When the Christian faith spread over the western empire, the Greek and Roman gods were looked upon as allies of the devil, and the superstition of many
who yet clung to the later worship of Rome, made
the devil the centre of their mythology.
But the
conceptions which the Fathers of the Church had of the person and power of the
devil, were still more changed when the German
tribes overthrew the government of the Roman empire and adopted Christianity.
In doing so thisfamily of people did not lose the fullness of their
own life, the highest manifestation of which was their old mythology. It is
true that the names of the old gods gradually died away; what was obviously contrary to the new faith was at last
set aside by the zeal of the priests, by force, and by pious artifices;
but innumerable familiar shapes and figures, customs and ideas, were kept
alive, nay, they not only were kept alive, but they entwined
themselves in a peculiar manner with Christianity. As Christian churches
were erected on the very spots where the heathen worship had been held, and as
the figure of the crucified Saviour, or the name of an apostle was attached to
sacred places like Donar's oak; thus the Christian
saints and their traditions took the place of the old gods. The people transferred their recollections of their ancient heathen
deities to the saints and apostles of the Church, and even to Christ himself,
and as there was a realm in their mythology which was ruled by the mysterious powers of darkness, this was assigned to the devil. The name devil, derived
from the Greek (diabolos), was changed into Fol, from the northern god Voland,
his ravens and the raging nightly host were transferred to him from Wuotan, his
hammer from Donar; but his black colour, his wolves or goat's form, his
grand-mother, the chains wherewith he was bound, and many other traditions, he inherited from the evil powers of heathendom which
had ever been inimical to the benevolent ruling gods. These powerful demons,
amongst whom was the dark god of death, belonged according to the heathen
mythology to the primeval race of giants, which as long as the world lasted
were to wage a deadly struggle with the powers of light. They formed a dark
realm of shapeless primordial powers, where the deepest science of magic was
cultivated. (…)Besides the worship of the Asengötter, there was in heathen
Germany a gloomy service for these demons, and we learn from early Christian
witnesses that even before the introduction of
Christianity, the priestesses and sorcerers of these dark deities were feared
and hated. They were able by their incantations to the goddess of death,
to bring storms upon the corn-fields and to destroy the cattle, and it was
probably they who were supposed to make the bodies and weapons of warriors
invulnerable. They carried on this worship by night, and sacrificed mysterious
animals to the goddess of death and to the race of giants. It was these
priestesses more especially — so at least we may conclude — who, as Hazusen or
Hegissen, or Hexen (witches), were handed down by tradition to a late period in
the middle ages.
«(…) The
western Church in the beginning of the middle ages
kept itself pure from this chaos of gloomy conceptions; it condemned them as
devilish, but punished them on the whole with
mildness and humanity, when they did not lead to social crimes. But when
the Church itself was frozen into the rigidity of a
hierarchical system, when strong hearts were driven into heresy by the
worldly claims of the papacy, and the people became degraded under the
nomination of begging monks, these superstitions
gradually produced in the Church a narrow-minded system. Whatever was
considered to be connected with the devil was put an end to by bloody persecution. After the thirteenth century,
about the period when great masses of the people poured into the Sclave
countries from the interior of Germany, fanatical
monks disseminated the odious notion that the devil, as ruler of the witches,
held intercourse with them at nightly meetings, and that there was a formal
ritual for the worship of Satan, by accursed men and women, who had abjured the
Christian faith; and for this a countless number of
suspected persons, in France, in the first instance, were punished with torture
and the stake, by delegated inquisitors. In Germany
itself, these persecutions of the devil's associates first became prevalent after the funeral pile of Huss.
The more vehement the opposition of reason to these persecutions, the more
violent became the fury of the Church. After the fatal bull
of Innocent VIII., from the year 1484, the burning
of witches in masses began to a great extent in Germany, and continued,
with some interruptions, till late in the eighteenth century. Whoever owned to
being a witch was considered for ever doomed to hell, and the Church hardly
made an effort to convert them.
According
to popular belief, the connection of man with the
devil was of three kinds. Either they renounced the worship of God for
that of the devil, swearing allegiance to him, and doing him homage, like the witches and their associates; or they
were possessed by him, a belief derived by the Germans from Holy Scripture; or
men might conclude a compact with the devil binding both parties under mutual
obligations.
«(…) Then
came Luther and the Reformation. Together
with everyone else in Germany, the devil also was
brought into the great struggle of the century. The Roman Catholics looked upon him as the head of the whole body of heretics; while the Protestants took the popular view of him as a figure standing with a bellows behind the pope and
cardinals, inflating them with attacks on the reformed doctrines. He was
mixed up in all theological and political transactions (…).»
(In Pictures of
German Life in the XVth, XVIth and XVIIth
Centuries, Vol. I
by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter XII – “The German
Ideas of the Devil in the Sixteenth Century”, pp. 281-285)
Pictures of German Life in
the XVth, XVIth and XVIIth Centuries,
Vol.
I by Gustav Freytag, Chapman and Hall,
London, 1862.
EXCERTO 2:
O próprio Martinho Lutero acreditava em
bruxas mas de uma forma natural e benigna, como quem sabe que o mistério existe
e não é possível saber e controlar tudo. As vítimas podiam pertencer a qualquer
estrato social e a qualquer escalão etário, mas eram sobretudo os mais
insignificantes as principais vítimas, e, de entre estes, as mulheres. A
insaciável ganância do poder político e eclesiástico escolhia também alguns de
entre os mais abastados (Judeus e outros) e assim, o vil metal, que é um dos
verdadeiros demónios criados pelo homem, enchia os cofres dos que fingiam
purificar o mundo com as chamas do seu supremo mal.
«(…) But fierce indeed was the hatred with which was regarded, in the
last half of the century, that other connection with hell, —the old witchcraft.
Even Luther believed in witches; he mentions
incidentally that such a woman had injured his mother; and in another place was
angry with the lawyers who did not punish similar sorceresses when they injured
their fellow-creatures. But these expressions were not intended to be very
severe; he on the whole troubled himself little with this phase of
superstition. He, the copious writer, never considered it necessary to
discourse to his people concerning it; in his sermons he only occasionally
mentions witchcraft, and his whole nature was repugnant to the application of
violence. But if happily for us, Luther's pure spirit preserved him from
bitterness against the devil's helpmates, his
scholars and successors had little of his high-mindedness. Young
Protestantism was on this point little better than the old belief. In
Protestant countries the ministers of God were by no means the only
persecutors; the civil authorities were also willing to follow the example of
the ecclesiastical courts of the Roman Catholics, and above all of the Jesuits.
The victims were countless; they amount without
doubt to hundreds of thousands. It was first in the domains of the
ecclesiastical princes, that the contagion burst forth, which devastated whole
provinces as in Eichstadt, Wurtsburg and Cologne. In twenty villages in the
vicinity of Treves, three hundred and sixty-eight
persons were executed in seven years, besides many who were burnt in the
city itself; in Brunswick the burnt stakes stood like a little forest on the
place of execution. In every province hundreds and
thousands might be counted. Every kind of
baseness was practiced by the ecclesiastical and temporal judges; the
most contemptible grounds of suspicion sufficed to depopulate whole villages. No
position and no age was a security; children and the aged, learned men and even
councillors, were bound to the stake, but the
greater part were women; — we shudder when we look at the method of
these condemnations. It is not impossible, although it cannot be spoken of with
certainty, that a victim here and there did live in the mad delusion that they
were in union with the devil through magic arts; it is not impossible, although
this cannot be certified, that hurtful mediums, intoxicating beverages and
superstitious medicaments were in some cases used for the detriment of others.
But it is the strongest proof of the infamy of the whole proceeding, that
amidst the monstrous mass of old records concerning witches, we find no ground of belief that in any case the judgment was
justified by the real misdeeds of the accused, though they were made the
excuse for it; for so great was the degree of fanaticism, narrow-mindedness, or
malice, that the mere accusation was almost certain
to be fatal. Torture was applied on the most frivolous charges; the capability even of bearing pain was taken as evidence
against those who held out under torture; and every kind of accidental
symptom, disease of the body, outward appearance, or countless fortuitous
circumstances, were also considered as evidence. The
possessions of the condemned were confiscated; the greediness and
covetousness of the judges were united with brutality and stupidity. This fearful
disorder did not end with that century: through the whole of the sixteenth and
up to the middle of the eighteenth century these horrible judicial murders
continued. It was not till the time of the great Frederick that they ceased.
(…) One
name belongs to the sixteenth century which should ever be named with
gratitude; that of the Protestant physician Johann
Weier, physician in ordinary to Duke Wilhelm of Cloves, who in 1593
wrote his three volumes — De praestigiis
Daemonum. Even he believed in necromancers, who, by the help of the devil,
wrought mischief, in which case they were to fall under the punishment of the
laws; but the witches he considered as poor miserable beldames, who, in the
worst cases, only imagined themselves to be doing the work of the devil, but
were for the most part quite innocent. His warm heart for the oppressed, and
his noble indignation against the brutality of the judges in the cases of witchcraft,
made an immense sensation. Within his limited sphere of action Weier appears to us as a supplement to Luther.
Against him also the raging orthodox crew upraised themselves. The good effect
produced by Weier's book was in a great manner counteracted by a flood of
opposition writings. But again amidst the horrors of the Thirty years' war, Friedrich Spee, the best of the German Jesuits,
wrote secretly his Cautio Criminalis
against the burning of heretics; he published this anonymously in a Protestant
printing-press.
The various
popular transformations of the devil did not end with the century in which
Luther taught, and Weier endeavoured to banish the stake from the place of
execution. The Thirty years' war brought forward another set of gloomy
fantasies concerning him. Satan was considered by the wild troopers as a demon
who made fortresses, and cast magic balls which could penetrate every kind of
armour.
When the
peace came, the war-devil withdrew into the woods, where he taught his arts to
the wild huntsmen; and when there remained nothing
in the land but an impoverished population devoid of faith and hope, the devil
was sought after in his ancient and quiet occupation-only disturbed by thecovetousness of men — as the guardian of
hidden treasures. Much money and property had been buried during the long war,
and was discovered by lucky accidents after the peace.»
(In Pictures of
German Life in the XVth, XVIth and XVIIth
Centuries, Vol. I
by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter XII – “The German
Ideas of the Devil in the Sixteenth Century”, pp. 307-309)
Na Idade Média e, provavelmente, em todas
as outras idades até à segunda metade do século XX, as relações sociais e
amorosas eram pré-determinadas. Salvo raras excepções, relacionavam-se e
uniam-se apenas os que pertenciam ao mesmo estrato social. As mulheres do povo
que fossem eventualmente escolhidas como concubinas nunca poderiam aspirar a uma
união legítima ou a um título nobiliárquico ou real, apesar de a História ter registado
vários casos de bastardia que abriram caminho à ascensão social. Em Portugal
existem inúmeros casos.
Os filhos bastardos de D. Dinis ou de D.
Pedro I são apenas alguns exemplos. A mãe de D. João I (Teresa Lourenço) era
uma mulher de classe média (talvez filha de um mercador, Vasco Lourenço
Martins, embora alguns acreditem que era uma fidalga galega) e foi ela a amante
a quem D. Pedro I se dedicou sempre, paralelamente com o casamento com D.ª
Constança e a relação com D.ª Inês e ainda depois de ambas estarem mortas; D.
João I nascerá cerca de dois anos após a morte de Inês de Castro e três anos
antes de D. Pedro ter declarado que, afinal, tinha casado com Inês,
declarando-a rainha póstuma.
O infante D. Afonso (Afonso de Portugal ou
Afonso I de Bragança), filho de D. João I, terá resultado de uma relação entre
o jovem Mestre de Avis, ainda solteiro, e a filha de um sapateiro de Veiros,
Pero Estevão ou Esteves (Inês Pires ou Peres Estevão ou Esteves, também
conhecida como Inês de Veiros por ser natural dessa localidade alentejana). D.
Afonso viria a tornar-se o primeiro duque de Bragança e oitavo conde de Barcelos
e, portanto, a primeira semente da dinastia bragantina que sucederá à dinastia
de Avis, em 1640, após o desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer Quibir (4
de Agosto de 1578), a morte do cardeal D. Henrique (1512-1580), o breve reinado
de D. António, Prior do Crato (1531-1595, reinou apenas em 1580) e o domínio
filipino (1580-1640). Curiosamente, o pai da donzela não se insurgiu contra o
Mestre de Avis, mas contra a própria filha por considerar que fora esta a
seduzir o infante quando um dia, enquanto lavava roupa com outras raparigas, e
sendo observadas por D. Pedro I e o infante D. João, levantou as saias e
mostrou as coxas dizendo às companheiras que se destinavam ao jovem Mestre de
Avis. O pai repudiou-a e repudiou também o neto (D. Afonso), apesar de ser de
sangue real, deixou crescer as barbas até lhe tocarem nos joelhos (provável
exagero, mas ficou por isso conhecido como o Barbadão) e, ainda em vida, mandou
gravar uma pedra tumular em que se lia:
«This sepulcher Barbadon caused to be made
(Being of Veyros a shoemaker by his trade)
For himself and the rest of his race,
Excepting his daughter Ines in any case».
(In A Continuation of The Lamentable and Admirable Adventures of Dom
Sabastian King of Portugale by Fr. José Teixeira, London, 1603, p. 34)
Segundo
Frei José Teixeira, D. Jaime, 4.º Duque de Bragança, filho de D.ª Isabel, irmã
do rei D. Manuel I, mandou apagar aquela inscrição do seu quarto avô. Conta
também o mesmo autor que Inês de Veiros viveu o resto da vida como “a very chast and virtuous woman” (op.
cit. p. 34). Recolheu-se ao convento de Santos, nos subúrbios de Lisboa, mandado
edificar pelo próprio rei (D. João I), que a nomeou Madre Superior, e aí
faleceu. As freiras deste convento, oriundas da aristocracia e realeza, tinham
permissão para casar com os cavaleiros que pertenciam à mesma ordem. Não
descobri mais informação sobre este convento construído no século XIV, mas é
provável que pertencesse à Ordem de Santiago, a mesma ordem a que pertenceu o
Convento de Santos-o-Novo, construído ao longo do século XVII; foi idealizado
pelo Cardeal D. Henrique, a construção iniciou-se no reinado de Felipe II (de
Portugal, III de Espanha), em 1609, e só foi concluído no reinado de D. Pedro
II, em 1685. Aquando dos terramotos de 1531 e de 1755, muitos edifícios
lisboetas ruíram; alguns foram reconstruídos mais tarde. É possível que o actual
convento de Santos-o-Novo, construído no século XVII, se localize no mesmo
local onde foi inicialmente erigido o convento de Santos no século XIV. No
presente o convento de Santos-o-Novo pertence ao património da Santa Casa da
Misericórdia.
Ao contrário da Inês que quase provocou a
extinção de Portugal, esta Agnes (Inês), não era uma mulher ambiciosa, traidora
e oportunista que se serve do seu estatuto social e dos seus dotes físicos para
ascender socialmente e obter poder político e económico para si e para os seus.
Agnes não escolheu o seu caminho, não escolheu ser amada por um príncipe; aceitou
o amor de Albrecht, herdeiro do ducado da Baviera-Munique, e as benesses que
lhe foram oferecidas. Todas as circunstâncias e escolhas ultrapassaram a sua
vontade. Agnes não arquitectou planos maquiavélicos nem vestiu uma pele de
cordeiro para os ocultar. Agnes foi de facto vítima inocente. Por isso é, muito
mais do que Inês de Castro, uma heroína trágica. Nenhuma das acusações que lhe
são feitas tem fundamento, mas isso pouco importa; o sistema está montado para
eliminar os fracos e os inocentes. Para além do nome e do facto de também ter
sido morta por motivos políticos ― uma “razão de Estado”―, a única afinidade
com Inês de Castro reside no facto de ter existido e de se ter tornado uma
lenda.
Bildnis der Agnes Bernauerinn Johann Michael Mettenleiter,
1800.
Retrato de
Agnes Bernauer por Johann Michael Mettenleiter, 1800.
No caso de Agnes, a lenda que a imortaliza
e enaltece pouco teve de inventar sobre as suas virtudes. Era um ser bom e
humilde, amada por um príncipe que não podia amar mas apenas cumprir os seus
deveres de herdeiro real. Ernst, pai de Albrecht, e restantes familiares
entendiam que o herdeiro só poderia casar com alguém de sangue nobre ou
perderia o direito ao trono e o próprio ducado da Baviera-Munique deixaria de
existir. Como Albrecht nunca se deixou convencer pelos argumentos políticos e
não tencionava separar-se de Agnes, era necessário eliminá-la. Agnes foi
sacrificada por uma “razão de Estado”, que na verdade era apenas um preconceito
social. As acusações que lhe foram feitas eram demasiado comuns na época
(século XIV), dirigiam-se sobretudo a minorias (como os Judeus), aos rebeldes e
dissidentes ou às camadas sociais mais baixas; eram fruto do fanatismo, da
superstição, da intolerância e da prepotência.
A união de sangue real com sangue plebeu
era intolerável. Aproveitando a ausência de Albrecht, as autoridades de
Augsburg, a pedido do duque Ernst (pai de Albrecht) acusaram Agnes de bruxaria
e envenenamento. Foi sumariamente julgada e condenada a morrer afogada nas
águas do Danúbio. Era preciso fazer recair sobre Agnes os actos mais
abomináveis e a acusação de bruxaria cobria quase todas as outras acusações que
se quisessem formular. Uma bruxa não era sequer vista como um ser humano; era
uma criatura que tinha um pacto com o diabo e servia apenas os desígnios do seu
amo. Agnes foi acusada de usar poções mágicas para seduzir Albrecht e venenos para
matar uma filha do tio deste.
Não é apenas no folclore alemão que o
carácter dos plebeus supera muitas vezes o carácter das elites sociais,
políticas, económicas, jurídicas e até culturais. Acontece o mesmo nas
histórias tradicionais de locais muito diversos do mundo, incluindo em
Portugal. E esta não é exclusivamente uma crença da cultura popular; estudiosos
e criadores literários como Oliveira Martins, Teixeira de Pascoais ou até
Cesário Verde defenderam uma ideia semelhante: a verdadeira alma de um povo
está (ou estava) nas classes mais baixas, na sua energia, nas suas tradições e
força de trabalho. Para o bem e para o mal, a imobilidade social da plebe alimenta
a constância da identidade dos povos e cria verdadeiras raízes. É dessa força
de trabalho que se alimentam as elites. E é dessas raízes populares que se
alimenta uma grande parte da cultura popular e erudita, da literatura, da
música e das artes plásticas. Este influxo verificou-se sobretudo durante o
Romantismo (primeira metade do séc. XIX) e, mais tarde e de forma bem
diferente, no Neorrealismo (meados do séc. XX).
Muito antes, já Gonçalo Fernandes Trancoso
(1515-1596), que foi provavelmente o primeiro contista português, nos seus Contos e Histórias de Proveito e Exemplo
(1.ª edição de 1575), tinha entretecido de tal forma a cultura popular com a
cultura erudita e religiosa, que se torna difícil identificar a origem primeira
das suas narrativas. E essa era provavelmente a intenção, já que os seus contos
não se destinavam apenas à leitura recreativa mas à morigeração dos costumes,
que é transversal a todas as classes sociais e a todas as manifestações
culturais, tal como os vícios e as virtudes, mas em proporção muito diversa. A
degeneração tende a vir das cúpulas e a regeneração emana, regra geral, das
bases da pirâmide social.
Entre as narrativas de Gonçalo Fernandes
Trancoso, as de Charles Perrault e as dos irmãos Grimm, entre outros, existem
pelo menos dois traços comuns: bebem a principal inspiração na tradição popular
e as suas personagens, regra geral, ou são tipos sociais, psicológicos e morais
(independentemente do estrato social) e/ou são personagens anónimas, não
identificáveis de forma explícita com nenhuma figura histórica. Desta forma,
assumem um carácter mais universal e acabam por ter uma função crítica mais
eficaz.
Há indícios, na literatura alemã, de que
muito antes das primeiras obras eruditas serem publicadas já circulavam na
tradição oral popular várias versões da história trágica de Agnes Bernauer,
quer sob a forma de contos ou “rimances” (narrativas rimadas) quer sob a forma
de baladas e canções populares. Os próprios autores das primeiras e principais
obras literárias de vulto sobre Agnes Bernauer (Joseph August Graf von Toerring
ou Törring, 1753-1826, dramaturgo e político, Otto Ludwig, 1813-1865,
dramaturgo, romancista, compositor, libretista e crítico literário, Christian Friedrich
Hebbel, 1813-1863 ou Martin Greif, 1839-1911) reconhecem que entre as suas
fontes estão as narrativas populares, mas também as crónicas históricas e
outros documentos escritos nos séculos anteriores ou coevos da própria Agnes.
Agnes
Bernauerin, Joseph August Törring, Manheim, 1791.
Joseph August von Törring, na nota que
antecede Agnes Bernauerin (tragédia
em cinco actos, primeiramente publicada em 1780), esclarece que o fundamento
histórico da sua peça pode ser encontrado em crónicas históricas, em diversos
relatos medievos e nas “cartas de doação” dos próprios duques da
Baviera-Munique, Ernst e Albrecht. Salienta especialmente o Rerum Boicarum Scriptores Nusquam Antehac
Editi, compilação escrita em latim que reúne inúmeras crónicas e documentos
históricos da Idade Média, publicada pela primeira vez em Ausburgo no ano de
1763. Os dois tomos que constituem a obra, com quase duas mil páginas, foram
coligidos e anotados por Andreas Felix von Oefele (1706-1780), ele sim
verdadeiramente filho de um estalajadeiro de Munique e um exemplo de mobilidade
social. Estudou Direito, História e Teologia, foi historiador e bibliotecário
da Biblioteca Nacional Alemã. Já antes publicara uma compilação ainda maior, em
dez volumes, com as biografias dos autores mais relevantes da Baviera (Lebensgeschichten der gelehrtesten Männer
Bayerns / História das vidas dos
homens mais eruditos da Baviera). Törring refere ainda uma outra obra ou
documento ―Bermuthung ― que não consegui localizar.