domingo, 31 de dezembro de 2023

TOMA LÁ! - III

      Esta é a terceira série do folheto Toma Lá! de 2022-2023. Neste momento já está concluída a primeira série de 2023-2024 no formato Word, mas ainda vai levar muito tempo até conseguir produzir o vídeo correspondente. Não é possível transformar o Word em vídeo, é preciso refazer tudo novamente.

     Paralelamente às séries habituais, em 2023-2024 vou produzir várias séries especiais: uma dedicada aos "Livros Que Quase Ninguém Lê", uma dedicada às Artes Performativas, uma dedicada à Ucrânia, uma dedicada a Israel...


Toma Lá! 2022 2023 - Série III - Abril a Junho de 2023


TOMA LÁ! - II

      A segunda série de 2022-2023 foi especialmente dedicada à Ucrânia e ao povo ucraniano. Na introdução do vídeo escrevi, em Fevereiro de 2023,  o mesmo que continuo a pensar hoje:

     Um ano após a invasão russa em larga escala, a Ucrânia continua a lutar e a morrer por todos nós. O Mundo Livre continua cobarde e hipócrita. Não ajuda a Ucrânia para que vença, teme a vitória da Ucrânia. Ajuda a Ucrânia apenas para que não perca mais. Tem medo de vencer a Rússia, quando esse deveria ser o principal objectivo. Só há duas formas de pôr fim a esta guerra: ou a Rússia sai da Ucrânia e devolve todos os territórios ocupados e invadidos ou o Mundo Livre apoia de facto a Ucrânia e permite-lhe uma vitória total. 
São Ludovino, Fevereiro de 2023

Toma Lá! 2022 2023 - Série II - Janeiro-Março 2023 - Standing With Ukraine


TOMA LÁ! - I

      Em 2022-2023, voltei a editar o folheto Toma Lá!, que criei há cerca de 15 anos. O propósito inicial era promover o Concurso Literário anual e fomentar o gosto pela leitura e pela escrita. Com o tempo, foi-se tornando num instrumento de criação e expressão diversificado, mas também um elo com as realidades actuais. Para além do lugar privilegiado que a Literatura e a Arte continuam a ter, agora o Toma Lá! é também um receptáculo de informação e reflexões sobre o mundo que nos rodeia, sobretudo os factos mais preocupantes que ninguém pode ignorar. 

     O grande desafio deste projecto reside no facto de o folheto ter apenas 4 páginas no formato A5. É difícil escolher textos que caibam em tão exíguo espaço. Mais difícil ainda é escrever textos com alguma complexidade em apenas 15 ou vinte linhas...


Toma Lá! 2022 2023 - Série I - Setembro-Dezembro 2022


sábado, 31 de dezembro de 2022

O Anjo de Augsburg - VII

AGNES BERNAUER NAS ARTES

* Literatura

     Tal como aconteceu com Inês de Castro, também Agnes Bernauer inspirou escritores, compositores, artistas plásticos e cineastas, não só na Alemanha, mas noutros países europeus. Para além das obras de autores célebres, como Otto Ludwigs, Joseph August Törring e Friedrich Hebbel, existem também baladas e contos populares de autores anónimos. Abaixo fica uma balada popular dialogada de autor anónimo, na tradução francesa:

     «Hebbel é o dramaturgo mais lógico, ligando da maneira mais implacável os acontecimentos aos caracteres: quase sugere o fatalismo. “Aquilo de que o homem é capaz de se tornar, isto ele já é perante Deus.” O deus de Hebbel, porém, é a História, não no sentido de Hegel, mas no sentido sociológico, como peso das tradições e convenções que se opõem à vontade do indivíduo. E Hebbel chegou a apreciar a tradição como fator positivo, superior ao arbítrio individualista. Depois da desilusão de 1848 escreveu a tragédia Agnes Bernauer: os dramaturgos que tinham tratado esse episódio da história medieval, tomaram todos o partido do príncipe bávaro, revoltando-se contra o pai que lhe mandou assassinar a amante burguesa; Hebbel, porém, aprova a “raison d’État” do velho duque que sacrifica a felicidade do filho aos interesses da coletividade.»

(in História da Literatura Ocidental, Vol. III, Otto Maria Carpeaux, Edições do Senado Federal, Brasília, 2008, p. 1725)
     

Friedrich Hebbel by Carl Rahl, 1855.

La Chanson de la belle Bernauer (1)

     Trois seigneurs sortent à cheval de Munich; ils vont vers la maison de Bernauer. «Bernauer, es-tu là-dedans, oui, là-dedans?»

     «Si tu es là-dedans, viens, sors un instant; le duc est devant ta maison, avec toute sa cour, oui, avec toute sa cour.»

     Dès que Bernauer eut entendu ces mots, elle mit une chemise blanche comme neige, pour paraître convenablement devant le duc, oui, devant le duc.

     Sitôt qu'elle parut à la porte, les trois seigneurs la saisirent. «Bernauer, que veux-tu faire, oui, que veux-tu faire?

     «Veux-tu quitter le duc, ou bien quitter ta vie, si jeune et si fraîche, être noyée dans le Danube, oui, dans le Danube?»

«— Le duc est à moi, et je suis à lui. Nous sommes fidèlement fiancés, oui, fiancés.»

     Bernauer nagea sur Veau. Elle avait invoqué Marie, la mère de Dieu, pour qu'elle l'aidât dans cette angoisse, oui, dans cette angoisse.

     «Marie, sors-moi de cette eau. Mon duc te fera bâtir une église neuve; il te fera faire un autel de marbre, oui, de marbre.»

     Dès qu'elle eut ainsi parlé, Marie, là mère de Dieu, vint à son aide, et la sauva de la mort, oui, de la mort.

     Dès que Bernauer arriva sur le pont, un Yalet de bourreau s'approcha d'elle. «Bernauer, que veux-tu faire, oui, que veux-tu faire?»

     «Veux-tu être la femme du bourreau, ou veux-tu que ton corps jeune et fier soit noyé dans l’eau, oui, dans l'eau?

«— Avant de devenir la femme du bourreau, je laisserai noyer mon jeune et fier corps dans l'eau du Danube, oui, dans l'eau du Danube.»

     A peine trois jours se sont écoulés, que la triste nouvelle parvint au duc. «Bernauer est noyée, oui, noyée.»

     «— Qu'on appelle tous les pêcheurs, qu'ils pèchent jusqu'à la mer Rouge, qu'ils cherchent ma douce amie, oui, qu'ils la cherchent !»

     Tous les pécheurs arrivent; ils ont péché jusque dans la mer Rouge, ils ont trouvé Bernauer, oui, ils l'ont trouvée.

     Ils la mettent sur les genoux du duc. Le duc verse des milliers de larmes. Comme de cœur il pleure, oui, comme il pleure!

     «Appelez cinq mille hommes; je veux faire une nouvelle guerre au seigneur mon père à l'instant même, oui, à l'instant même!»

     «Et si je n'aimais autant le seigneur mon père, je le ferais pendre comme un voleur. Mais ce me serait une grande honte, oui, une grande honte.»

     A peine trois jours sont écoulés, une triste nouvelle parvient au duc: «Le seigneur son père est mort, oui, mort

     «— Ceux qui m'aideront à enterrer le seigneur mon père doivent porter des manteaux rouges; ils doivent porter des manteaux rouges, oui, rouges.»

     «―Ceux qui m'aideront à enterrer ma belle amie doivent porter des manteaux noirs; ils doivent porter des manteaux noirs, oui, noirs.»

     «―Nous fonderons une messe perpétuelle, pour qu'on n'oublie pas Bernauer. Que pour elle on prie, oui, que pour elle on prie!»

*********************

(1) Agnès Bernauer, fille d'un bourgeois d'Augsbourg, fut épousée secrètement par Albert de Bavière, fils unique du duc Ernest. Celui-ci, pendant une absence du prince, fit saisir Agnès à Straubing, où elle habitait, et la fit jeter dans le Danube, le 16 octobre 1436. Elle surnagea pendant quelque temps, et appelait au secours, lorsqu'elle fut replongée dans l'eau par le bourreau. Albert, furieux, courut aux armes; mais, en 1437, il consentit à épouser Anne de Brunswick. Le duc Ernest avait fait enterrer Agnès honorablement, et, dix ans plus tard, Albert fonda une messe à perpétuité pour le repos de son âme. La beauté d'Agnès est restée célèbre dans son pays.

(In Ballades et chants populaires (anciens et modernes) de l'Allemagne by Hortense Cornu, Sébastien Albin Hortense Cornu, Paris, 1841, págs. 33-35.)

Agnes-Bernauer-Festspiele, 2019 - Agnes aufgebahrt in-Schwarz mit-Albrecht.

     O poema que se segue é de um autor contemporâneo, Günter Eich (1907-1972), poeta, letrista e dramaturgo alemão, polémico durante e após o nazismo. Agnes não é aqui o centro do poema, é uma referência associada a Augsburg e à luz passageira que não chega a ver-se brilhar porque é demasiado lenta ou demasiado rápida.

Augsburg

The sluggish light.

I used to like going swimming with Agnes Bernauer
but she had herself sewn into a sack
in Straubing.

Light is supposed to be fast,

but it doesn't reach me.

So she found a possibility

to escape from me,
sluggish as light,
fast as light.

Günter Eich (1907–1972) 


O Anjo de Augsburg - VI

NA VORAGEM DOS TEMPOS

     Agnes Bernauer viveu numa época em que as acusações de heresia, bruxaria e alta-traição eram frequentes. João Huss (1369-1415), acusado de heresia, foi queimado vivo (em Constança, Boémia, a 6 de Julho de 1415, o dia do seu aniversário) 20 anos antes de Agnes ser lançada ao Danúbio. João Huss foi precursor de Lutero e da Reforma e angariou inúmeros seguidores durante o seu tempo de pregador e professor na Universidade de Praga. Foi um crítico frontal das práticas desonestas e prepotentes da Igreja Católica (as indulgências, as simonias, o nepotismo, a intolerância e o materialismo). A sua execução desencadeou as chamadas Guerras Hussitas, que se estenderam de 1419 a 1434 (um ano antes da execução de Agnes). Na região da Boémia, os Hussitas moderados ganharam a guerra, mas a verdadeira Reforma só teria início a partir de 1516-1517 com a publicação das 95 Teses de Martinho Lutero. A extrema repressão contra os dissidentes, levada a cabo pelo Sacro Império Romano Germânico, governado por Carlos V e pelo papado, prenunciava já os horrores da Contra-Reforma (a Inquisição e os seus autos de fé) e a Guerra dos Trinta Anos entre Católicos e Protestantes, só terminada em 1648 com a Paz de Vestefália. A Boémia e a Baviera foram dois dos palcos destes conflitos religiosos e políticos.

John Huss (1369-1415).

     Gustav Freytag, que prefaciou a publicação das obras dramáticas de Otto Ludwig (1870), em que se incluiu a tragédia inacabada Der Engel von Augsburg (O Anjo de Augsburgo), referindo-se às Guerras Hussitas (contemporâneas de Agnes e Albrecht), assinala o facto de a violência extrema e a execução bárbara de inocentes se ter tornado demasiado banal. Já o era ainda antes da execução de João Huss.

     «(…) It was the peculiar destiny of Germany that this great struggle should first break out among the teachers and scholars in the halls of the universities, and that the funeral pile of a Bohemian professor (refere-se a João Huss ou Jan Huss) should give a new direction to the policy of German princes and people.

     The auto-da-fé of Huss did not appear to the Germans a very striking or blamable occurrence; people in those days were hastily condemned to death, and there hardly passed a year that the torch was not laid to the stake in every large city. However great the grief and indignation of the national party of Bohemia might be at these proceedings, the wild fanaticism of the people was first roused by another and greater crime of the reckless Emperor Sigismund, who, at the head of the orthodox German fanatics, began the strife by the great massacre in 1420; this outrage gave the Bohemians the strength of despair, and was the beginning of the wars which raged between the Germans and the Sclaves to the end of that century. Even after dissensions had broken out amongst the Bohemians themselves, and after the death of Georg von Podiebrad (refere-se ao rei da Boémia que morreu em 1471), feuds continued, and predatory bands spread themselves over the neighbouring lands, the people and nobility of Bohemia as well as those of the suffering frontier lands became lawless, and a hatred of races, less passionate but more savage and more enduring, took the place of fanaticism.»

(In Pictures of German Life in the XVth, XVIth and XVIIth Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter I, “Scenes from the Hussite War”, pp. 23-24)

Execução de John Huss (1369-1415).

     O fanatismo era recíproco entre Católicos e Hussitas. Gustav Freytag transcreve o relato de um mercador (Martin von Bolkenhain), datado de 1425, sobre o ataque dos Hussitas a uma cidade da Silésia (Wünschelburg). Os cidadãos da cidade refugiaram-se na casa acastelada do burgomestre e eles próprios incendiaram a sua cidade na esperança de que os atacantes desistissem e fossem embora. Não foram. Esperaram dias até que as chamas se apagaram. Vendo que a casa fortificada do burgomestre ainda estava de pé, cercaram-na e exigiram a rendição de todos os que se encontravam dentro dela. Pouco a pouco, todos se renderam, incluindo o próprio burgomestre, excepto um padre e um grupo pequeno de artesãos, dois capelães e um velho pároco de aldeia. Destes últimos, alguns saíram disfarçados de mulheres com crianças ao colo; outros acabaram por render-se também, excepto o padre (“Pastor Megerlein”) que permaneceu dentro da casa. Os Hussitas foram buscá-lo e incendiaram a casa e os estábulos. Alguns dos que se tinham escondido lá, sobretudo mulheres e crianças, morreram também nas chamas. Os Hussitas levaram então o padre para o meio da multidão que se rendera e exigiram-lhe que negasse tudo o que pregara. O padre recusou veementemente, acabando por ser martirizado de forma semelhante à que os Católicos usavam com os Hussitas. Eis um excerto do relato:

     «(…) But when they saw that the citizens had all surrendered, great fear came over them, and they went down and submitted themselves; but the pastor remained there with an old village priest to the last. Then the Hussites went up to them and brought them down, and led them into the midst of the army and the multitude. Then Master Ambrosius, a heretic of Gratz, being present, spoke to these gentlemen in Latin: 'Pastor, wilt thou gainsay and retract what thou hast preached? thus thou mayst preserve thy life; but if thou wilt not do this, thou must be burnt.' Then answered Herr Megerlein the pastor, and said, “God forbid that I should deny the truth of our holy Christian faith on account of this short pain. I have taught and preached the truth at Prague, at Gorlitz, and at Gratz, and for this truth will I gladly die”. Then one of them ran and fetched a truss of straw, which they bound round about his body so that he could not be seen; they then set fire to the straw, and made him, thus surrounded by flames, run and dance about in the midst of the multitude, till he was suffocated. Then they took him as a corpse and threw him into a brewer's vat of boiling water; they also threw in the old village priest, and let them boil therein; thus they were both martyred; but the two chaplains of whom I have before spoken, came out with the women concealed in women's clothes, and the child that one of these priests bore on his arm began to weep and to cry after its mother, and the priest tried to comfort and quiet it. So the Hussites discovered by the voice that it was a man, and one of them took the veil off him; then he let fall the child, took to flight, and ran with all his might; they followed after and killed him. The other came away with the women and children. This happened at Wünschelburg.»

(In Pictures of German Life in the XVth, XVIth and XVIIth Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter I, “Scenes from the Hussite War”, pp. 27-28)

     Ernst, pai de Albrecht era um católico conservador e dogmático. Ele próprio participou nas Guerras Hussitas, directa e indirectamente, travando batalhas com aqueles a quem chamavam “apóstatas” e “heréticos” ou apoiando outros monarcas que lideravam a guerra contra os Hussitas, como o imperador Romano-Germânico Segismundo (“Emperor Sigismund was one of the worst of his race”, op. cit., pp.37-38). Ernst travou também inúmeras batalhas com os ducados e condados vizinhos, pois nem a Baviera nem a Boémia eram reinos unificados e os senhores feudais que os governavam, como Ernst e Albrecht, viviam em constante conflito com os vizinhos, tentando manter ou alargar o território. Para além das fronteiras com os vários ducados da Baviera, era também preciso manter e defender a longa fronteira com a Boémia.

     A forte incidência das Guerras Hussitas na Boémia e na Silésia mostram também que para além dos conflitos religiosos e territoriais, existia paralelamente um conflito étnico-político entre eslavos e germânicos. Após a guerra dos Trinta Anos, Boémios e Silésios, sobretudo estes últimos, viveram ainda mais um século de opressão e perseguições religiosas. O facto de a Boémia ter vivido durante décadas a ferro e fogo permite também pensar que Albrecht não recusou a coroa da Boémia apenas por não ser ambicioso, mas também por não querer administrar um território que então era ingovernável. Os “Barões Ladrões”, já mencionados acima, eram também responsáveis pela guerrilha constante e pela insegurança generalizada. Alguns deles usaram como pretexto as guerras religiosas para praticar a pilhagem e se apoderarem de territórios onde já ninguém tinha autoridade.

     Embora nunca use a expressão “Barões Ladrões”, é certamente a eles que se refere Gustav Freytag quando diz o seguinte:

     «(…) This endless war ruined German Silesia: the plains lay waste and desolate, and most of the German peasantry in this century of fire and sword sank into a state little removed from that of the Sclave serfs. The smaller cities were burnt down and impoverished, and only a few of the larger ones have since attained any degree of importance. The Silesian nobles became rude and predatory; they learnt from the Bohemians to steal cattle, to seize merchants and traders, and to levy contributions on the cities. The princes in their endless disputes with one another allied themselves sometimes with the Bohemians, and shared their booty with them; indeed, some of them took pleasure in a wild robber life, carrying it on even in their own country. These deeds of violence and lamentable struggles continued quite into the sixteenth century, till the Reformation gave a new bent to this lively and impressible race, and brought with it new sufferings.»

(In Pictures of German Life in the XVth, XVIth and XVIIth Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter I, “Scenes from the Hussite War”, pp. 31-32)

     A acusação de bruxaria era inapelável e irremissível, por isso mesmo foi uma das acusações feitas a Agnes Bernauer; nada nem ninguém a poderia salvar. E qualquer que fosse a pena aplicada seria sempre horrenda. Regra geral, a escolha era entre o fogo e a água. A água, que também servia para “eliminar” a loucura; vestiam-se os loucos (ou supostos loucos) de branco, colocavam-se num barco sem remos e sem velas e deixavam-no ir com a correnteza para não mais voltar. O fogo, associado ao próprio diabo e às penas do inferno, era contraditoriamente usado pelos que pregavam a pureza celestial e a misericórdia divina. Milhares de supostas bruxas foram torturadas e queimadas, antes e durante a vigência da Inquisição, nos países católicos e nos países protestantes. A Agnes foi reservada a água, não certamente por implicar um sofrimento menor, mas por ser mais rápida e haver sempre a hipótese de a corrente do rio levar consigo o corpo e a memória de um acto hediondo. Sem corpo poderia haver a ilusão de uma dor menor. Mas o corpo terá sido mesmo retirado do rio e sepultado em Straubing. Mesmo assim, a cultura popular encarregou-se de versejar e musicar outros desenlaces. Abaixo, transcrevo “La Chanson de la belle Bernauer”, que apresenta um Albrecht completamente destroçado, enviando pescadores pelo rio fora em busca do corpo de Agnes; pede-lhes que sigam o rio e eles seguem… até ao Mar Vermelho, embora o Danúbio desague no Mar Negro.

     Note-se que, apesar de Inês de Castro ter sido morta cerca de um século antes (1355), ninguém das esferas do poder teve a veleidade de a acusar de bruxaria. Aliás, o fanatismo religioso em Portugal era ainda incipiente, mesmo contra os Judeus; a grande luta era ainda contra o infiel, os Mouros, não contra os hereges, os dissidentes da ortodoxia Católica. Foi depois, o povo não a corte que criou uma série de adágios que atribuíam a Inês um pacto com o demónio. Já dei, num post anterior, um exemplo dessa antipatia popular e da associação de Inês de Castro ao diabo plasmada em ditos populares. Gomes Monteiro, autor do prefácio ao drama Inês de Castro, de Victor Hugo, escrito quando o autor tinha apenas catorze anos, acrescenta um outro adágio que pretende dar de Inês de Castro a imagem de uma mulher de mau carácter, traiçoeira, oportunista e ambiciosa:

     «Inês de Castro, quando muito, foi a precursora de Ana Bolena que, após ter atraiçoado a sua ama e senhora (refere-se a D.ª Constança), se lhe apoderou da coroa e do marido. Inês não foi tão longe, porque não lhe deram tempo para isso.

     E tanto assim é que, ainda hoje, em algumas das nossas províncias, quando pretendem definir uma má mulher, dizem: “Aquilo é uma Ana Bolena!” ou “Aquilo é uma Inês de Carasto (sic)!”»

     Certamente, quem inventou tal adágio não conhecia Henrique VIII… e pensava que D. Pedro era uma alma delicada…

Inês de Castro, de Victor Hugo, Guimarães Editores

     A Inês de Castro de Victor Hugo, como o próprio autor confessa, inspira-se sobretudo em Camões (episódio lírico de Inês de Castro, Os Lusíadas, canto III), na Castro de António Ferreira e nos relatos “históricos” que lhe tinham feito durante uma viagem a Espanha. Percebe-se, portanto, que o seu drama, apesar de muito bem escrito, contenha inúmeros “erros históricos”. Victor Hugo nunca chegou a publicar esta obra da sua adolescência. Anos mais tarde, quando já era um autor reconhecido e aclamado, e depois de ter estudado a história em outras fontes, Victor Hugo explicou que nunca publicara este drama por considerá-lo “Tolices que fazia antes do meu nascimento”. Refere-se ele a tolices como: “Inês, condessa de Castro”; Inês, uma grande patriota de Portugal; “D. Afonso IV, o Justiceiro”; Inês como dama de honor de D. Beatriz; D. Beatriz, mãe de D. Pedro, tomada como sua madrasta e autora do suposto envenenamento de Inês de Castro, com quem D. Pedro teria inicialmente casado, para assim permitir o casamento deste com uma princesa castelhana; os nomes de quase todos os locais são espanhóis; o chefe muçulmano Albaracim tenta conquistar Lisboa e D. Afonso IV morre na batalha de defesa da cidade; D. Pedro ascende ao poder e vinga-se. Pois, são de facto muitas “tolices históricas”, mas perdoadas as muitas imprecisões e mesmo distorções da verdade histórica, vale a pena ler esta obra da adolescência de Victor Hugo. Os diálogos simples mas bem construídos, escritos por vezes numa linguagem informal, que seria mais do séc. XIX do que do séc. XIV sustentam bem a sua recriação da história. Alguns são também ricos do ponto de vista social e psicológico. Um pequeno excerto da cena I do acto II, entre os guardas e o carrasco, antes do início do suposto julgamento formal de Inês de Castro:  

O Primeiro Guarda

     «Tens razão. (Dirigindo-se a um dos carrascos) Olá, Melchior, sabes quem é a mulher que o Conselho vai julgar?

O Carrasco

Não sei.

O Primeiro Guarda

Mas é uma mulher, não é verdade?

O Carrasco

     Não sei. De resto, isso não me diz respeito. Eu só conheço os criminosos depois de condenados.

O Primeiro Guarda

     Pois eu tenho dó da pessoa acusada, seja ela quem for. Desde que se assente neste banco, está perdida.»

     Não encontrei provérbios alemães sobre Agnes Bernauer. O epíteto que lhe foi associado, Anjo de Augsburgo, está nos antípodas do diabolismo e da malvadez que os seus juízes e executores lhe atribuíram. Otto Ludwig, 1813-1865, foi o primeiro a usá-lo na literatura (Der Engel von Augsburg, 1856), mas não é certo que tenha sido ele o criador da expressão. Pode tratar-se de uma expressão popular assimilada pelos literatos. Se assim for, o epíteto encerra uma nítida condenação popular daqueles que a sentenciaram e assassinaram, tomando-a como o cordeiro sacrificado, a inocente e insignificante plebeia que teve de morrer para que o poder dos fortes continuasse a imperar sobre os insignificantes. Parece ser também uma tentativa de redenção de um ser injustiçado e uma forma de transformar Agnes num ente luminoso e protector da própria cidade que a viu nascer. Esta interpretação aplica-se à abordagem de Otto Ludwig e de outros autores.

     Para mais informação sobre as penas aplicadas aos que eram acusados de feitiçaria, sortilégios, adivinhação, uso de poções e venenos, blasfémia, apostasia e pactos com o diabo veja-se, por exemplo, o Dictionnaire de la pénalité dans toutes les parties du monde connu, Edme Théodore Bourg, known as Saint-Edme, 1785-1852, Tome V, Chez Rousselon, Paris, 1828, pp. 382-396.

     Contém também inúmeros exemplos de casos ocorridos nos locais mais diversos do mundo. Aqui fica apenas um excerto relativo a Portugal:

     «Portugal. Le crime de sorcellerie fut un de ceux que le roi Jean V laissa à la connaissance de l'inquisition quand il restreignit la juridiction de ce tribunal tyrannique. Ce fut une porte ouverte à une multitude de condamnations et un champ immense pour la cruauté. On pouvait encore allumer bien des bûchers et y précipiter des innocents et des imbéciles, tels que ce jésuite Malagrida, qui avait choisi la sainte Vierge pour l'objet de ses amours, et prenait, dans son délire, les effets d'une virilité prolongée pour les extases de la béatitude.» (p. 395) 

Ugly History: Witch Hunts - Brian A. Pavlac


O Anjo de Augsburg - V

INVENTORES DE ANJOS E DEMÓNIOS

     A literatura alemã, quer popular quer erudita, é rica em narrativas fantásticas. A intervenção do sobrenatural, os poderes mágicos, a superstição e o animismo das coisas naturais e inanimadas que inspiraram tantas criações literárias têm a sua origem na própria vida, nas crenças e tradições que, embora pagãs e profanas, coexistiram e imbuíram as crenças religiosas e as vivências sociais. Dentro e fora da religião, estas crenças persistiram; tiveram influência quer sobre os mais dogmáticos quer sobre os mais reformistas e acompanharam a evolução do pensamento e das mentalidades em toda a Europa. A eterna luta entre o bem e o mal está subjacente a todas estas crenças e fantasias. Mas onde termina o bem e começa o mal? E de que forma é que os conceitos de bem e mal moldam a justiça?

     Na perspectiva de Gustav Freytag, a mitologia greco-romana é a grande responsável pela disseminação de inúmeras superstições, reformuladas e recriadas segundo a cultura pré-existente de cada povo ou comunidade. A ideia de “diabo” (o supremo mal, o grande tentador) nasce com o Cristianismo, que coloca Cristo (o supremo bem, o salvador) num confronto com a sua antítese. O Cristianismo não eliminou as crenças primevas, adaptou-as ou adaptou-se a elas, deu-lhes novas roupagens e propósitos. A luta entre o bem e o mal, a luz e as trevas persiste com novos nomes, imagens e protagonistas. Mais do que vencer o mal, as crenças e práticas religiosas (cristãs ou outras) vêm proteger do mal. Um artifício que torna as religiões indispensáveis para combater o grande tentador, mesmo que sejam as religiões a origem de tantos males. As religiões apropriaram-se do bem e do mal, inventaram deuses e demónios, e tornaram-nos dogmas, legislaram sobre eles, instituíram a sua própria jurisdição e aplicaram sobre os descrentes, os críticos e os inocentes as penas mais bárbaras.

     No início do capítulo dedicado às concepções do diabo na cultura alemã do século XVI, Gustav Freytag explica esta génese da concepção do mal na cultura germânica. Em seu entender, as superstições ligadas ao diabo floresceram mais na cultura alemã do que em qualquer outra. Deve ter razão, ou não fosse um alemão o criador do Doutor Fausto que vende a alma ao diabo em troca de todo o conhecimento. Os excertos que transcrevo a seguir são longos mas vale a pena serem lidos. G. Freytag narra também a relação pessoal de Lutero com o diabo (os “poor devils” que insistiam em atormentá-lo sem causar grande dano e os “great devils” que em seu entender eram os “doctores theologiae”, esses sim, verdadeiramente perigosos e malévolos) e a forma matreira e engenhosa que Lutero arranjou para o ridicularizar e enfraquecer. Esses episódios não são aqui transcritos, mas também vale a pena lê-los.

Straubing und die Donaubrücke zur Zeit der Agnes Bernauer in Die Gartenlaube, 1873, p. 455.
Straubing e a Ponte do Danúbio na época de Agnes Bernauer in Die Gartenlaube, 1873, p. 455.

     Seguem-se dois longos excertos: um sobre a forma como a religião forjou um fanatismo bárbaro; outro sobre a tentativa de uns poucos iluminados e sensatos restabelecerem a humanidade nas terras e nas mentes corrompidas e devastadas por dogmas absurdos.

EXCERTO 1:

     «The phantasies of the human mind have also a history; they form and develop themselves with the character of a people whilst they influence it. In the century of the Reformation, these phantasies had more weight than most earthly realities. It is the dark side of German development which we there see, and to it is due the last place in the characteristic features of the period of the Reformation.

     In the most ancient of the Jewish records there is no mention of the devil except in the book of Job; but at the time of Christ, Satan was considered by the Jews as the great tempter of mankind, and as having the power to enter into men and animals, out of which he could be driven by the invocations of pious men. The people estimated the power of their teachers by the authority that they exercised over the devil. When the Christian faith spread over the western empire, the Greek and Roman gods were looked upon as allies of the devil, and the superstition of many who yet clung to the later worship of Rome, made the devil the centre of their mythology.  

     But the conceptions which the Fathers of the Church had of the person and power of the devil, were still more changed when the German tribes overthrew the government of the Roman empire and adopted Christianity. In doing so this family of people did not lose the fullness of their own life, the highest manifestation of which was their old mythology. It is true that the names of the old gods gradually died away; what was obviously contrary to the new faith was at last set aside by the zeal of the priests, by force, and by pious artifices; but innumerable familiar shapes and figures, customs and ideas, were kept alive, nay, they not only were kept alive, but they entwined themselves in a peculiar manner with Christianity. As Christian churches were erected on the very spots where the heathen worship had been held, and as the figure of the crucified Saviour, or the name of an apostle was attached to sacred places like Donar's oak; thus the Christian saints and their traditions took the place of the old gods. The people transferred their recollections of their ancient heathen deities to the saints and apostles of the Church, and even to Christ himself, and as there was a realm in their mythology which was ruled by the mysterious powers of darkness, this was assigned to the devil. The name devil, derived from the Greek (diabolos), was changed into Fol, from the northern god Voland, his ravens and the raging nightly host were transferred to him from Wuotan, his hammer from Donar; but his black colour, his wolves or goat's form, his grand-mother, the chains wherewith he was bound, and many other traditions, he inherited from the evil powers of heathendom which had ever been inimical to the benevolent ruling gods. These powerful demons, amongst whom was the dark god of death, belonged according to the heathen mythology to the primeval race of giants, which as long as the world lasted were to wage a deadly struggle with the powers of light. They formed a dark realm of shapeless primordial powers, where the deepest science of magic was cultivated. (…)Besides the worship of the Asengötter, there was in heathen Germany a gloomy service for these demons, and we learn from early Christian witnesses that even before the introduction of Christianity, the priestesses and sorcerers of these dark deities were feared and hated. They were able by their incantations to the goddess of death, to bring storms upon the corn-fields and to destroy the cattle, and it was probably they who were supposed to make the bodies and weapons of warriors invulnerable. They carried on this worship by night, and sacrificed mysterious animals to the goddess of death and to the race of giants. It was these priestesses more especially — so at least we may conclude — who, as Hazusen or Hegissen, or Hexen (witches), were handed down by tradition to a late period in the middle ages.

     «(…) The western Church in the beginning of the middle ages kept itself pure from this chaos of gloomy conceptions; it condemned them as devilish, but punished them on the whole with mildness and humanity, when they did not lead to social crimes. But when the Church itself was frozen into the rigidity of a hierarchical system, when strong hearts were driven into heresy by the worldly claims of the papacy, and the people became degraded under the nomination of begging monks, these superstitions gradually produced in the Church a narrow-minded system. Whatever was considered to be connected with the devil was put an end to by bloody persecution. After the thirteenth century, about the period when great masses of the people poured into the Sclave countries from the interior of Germany, fanatical monks disseminated the odious notion that the devil, as ruler of the witches, held intercourse with them at nightly meetings, and that there was a formal ritual for the worship of Satan, by accursed men and women, who had abjured the Christian faith; and for this a countless number of suspected persons, in France, in the first instance, were punished with torture and the stake, by delegated inquisitors. In Germany itself, these persecutions of the devil's associates first became prevalent after the funeral pile of Huss. The more vehement the opposition of reason to these persecutions, the more violent became the fury of the Church. After the fatal bull of Innocent VIII., from the year 1484, the burning of witches in masses began to a great extent in Germany, and continued, with some interruptions, till late in the eighteenth century. Whoever owned to being a witch was considered for ever doomed to hell, and the Church hardly made an effort to convert them.

     According to popular belief, the connection of man with the devil was of three kinds. Either they renounced the worship of God for that of the devil, swearing allegiance to him, and doing him homage, like the witches and their associates; or they were possessed by him, a belief derived by the Germans from Holy Scripture; or men might conclude a compact with the devil binding both parties under mutual obligations.

     «(…) Then came Luther and the Reformation. Together with everyone else in Germany, the devil also was brought into the great struggle of the century. The Roman Catholics looked upon him as the head of the whole body of heretics; while the Protestants took the popular view of him as a figure standing with a bellows behind the pope and cardinals, inflating them with attacks on the reformed doctrines. He was mixed up in all theological and political transactions (…).»

(In Pictures of German Life in the XVth, XVIth and XVIIth Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter XII – “The German Ideas of the Devil in the Sixteenth Century”, pp. 281-285)

Pictures of German Life in the XVth, XVIth and XVIIth Centuries
Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. 

EXCERTO 2:

     O próprio Martinho Lutero acreditava em bruxas mas de uma forma natural e benigna, como quem sabe que o mistério existe e não é possível saber e controlar tudo. As vítimas podiam pertencer a qualquer estrato social e a qualquer escalão etário, mas eram sobretudo os mais insignificantes as principais vítimas, e, de entre estes, as mulheres. A insaciável ganância do poder político e eclesiástico escolhia também alguns de entre os mais abastados (Judeus e outros) e assim, o vil metal, que é um dos verdadeiros demónios criados pelo homem, enchia os cofres dos que fingiam purificar o mundo com as chamas do seu supremo mal. 

     «(…) But fierce indeed was the hatred with which was regarded, in the last half of the century, that other connection with hell, —the old witchcraft. Even Luther believed in witches; he mentions incidentally that such a woman had injured his mother; and in another place was angry with the lawyers who did not punish similar sorceresses when they injured their fellow-creatures. But these expressions were not intended to be very severe; he on the whole troubled himself little with this phase of superstition. He, the copious writer, never considered it necessary to discourse to his people concerning it; in his sermons he only occasionally mentions witchcraft, and his whole nature was repugnant to the application of violence. But if happily for us, Luther's pure spirit preserved him from bitterness against the devil's helpmates, his scholars and successors had little of his high-mindedness. Young Protestantism was on this point little better than the old belief. In Protestant countries the ministers of God were by no means the only persecutors; the civil authorities were also willing to follow the example of the ecclesiastical courts of the Roman Catholics, and above all of the Jesuits. The victims were countless; they amount without doubt to hundreds of thousands. It was first in the domains of the ecclesiastical princes, that the contagion burst forth, which devastated whole provinces as in Eichstadt, Wurtsburg and Cologne. In twenty villages in the vicinity of Treves, three hundred and sixty-eight persons were executed in seven years, besides many who were burnt in the city itself; in Brunswick the burnt stakes stood like a little forest on the place of execution. In every province hundreds and thousands might be counted. Every kind of baseness was practiced by the ecclesiastical and temporal judges; the most contemptible grounds of suspicion sufficed to depopulate whole villages. No position and no age was a security; children and the aged, learned men and even councillors, were bound to the stake, but the greater part were women; — we shudder when we look at the method of these condemnations. It is not impossible, although it cannot be spoken of with certainty, that a victim here and there did live in the mad delusion that they were in union with the devil through magic arts; it is not impossible, although this cannot be certified, that hurtful mediums, intoxicating beverages and superstitious medicaments were in some cases used for the detriment of others. But it is the strongest proof of the infamy of the whole proceeding, that amidst the monstrous mass of old records concerning witches, we find no ground of belief that in any case the judgment was justified by the real misdeeds of the accused, though they were made the excuse for it; for so great was the degree of fanaticism, narrow-mindedness, or malice, that the mere accusation was almost certain to be fatal. Torture was applied on the most frivolous charges; the capability even of bearing pain was taken as evidence against those who held out under torture; and every kind of accidental symptom, disease of the body, outward appearance, or countless fortuitous circumstances, were also considered as evidence. The possessions of the condemned were confiscated; the greediness and covetousness of the judges were united with brutality and stupidity. This fearful disorder did not end with that century: through the whole of the sixteenth and up to the middle of the eighteenth century these horrible judicial murders continued. It was not till the time of the great Frederick that they ceased.

     (…) One name belongs to the sixteenth century which should ever be named with gratitude; that of the Protestant physician Johann Weier, physician in ordinary to Duke Wilhelm of Cloves, who in 1593 wrote his three volumes — De praestigiis Daemonum. Even he believed in necromancers, who, by the help of the devil, wrought mischief, in which case they were to fall under the punishment of the laws; but the witches he considered as poor miserable beldames, who, in the worst cases, only imagined themselves to be doing the work of the devil, but were for the most part quite innocent. His warm heart for the oppressed, and his noble indignation against the brutality of the judges in the cases of witchcraft, made an immense sensation. Within his limited sphere of action Weier appears to us as a supplement to Luther. Against him also the raging orthodox crew upraised themselves. The good effect produced by Weier's book was in a great manner counteracted by a flood of opposition writings. But again amidst the horrors of the Thirty years' war, Friedrich Spee, the best of the German Jesuits, wrote secretly his Cautio Criminalis against the burning of heretics; he published this anonymously in a Protestant printing-press.

     The various popular transformations of the devil did not end with the century in which Luther taught, and Weier endeavoured to banish the stake from the place of execution. The Thirty years' war brought forward another set of gloomy fantasies concerning him. Satan was considered by the wild troopers as a demon who made fortresses, and cast magic balls which could penetrate every kind of armour.

     When the peace came, the war-devil withdrew into the woods, where he taught his arts to the wild huntsmen; and when there remained nothing in the land but an impoverished population devoid of faith and hope, the devil was sought after in his ancient and quiet occupation-only disturbed by the covetousness of men — as the guardian of hidden treasures. Much money and property had been buried during the long war, and was discovered by lucky accidents after the peace.»

(In Pictures of German Life in the XVth, XVIth and XVIIth Centuries, Vol. I by Gustav Freytag, Chapman and Hall, London, 1862. Chapter XII – “The German Ideas of the Devil in the Sixteenth Century”, pp. 307-309)


O Anjo de Augsburg - IV

A REGRA E AS EXCEPÇÕES

     Na Idade Média e, provavelmente, em todas as outras idades até à segunda metade do século XX, as relações sociais e amorosas eram pré-determinadas. Salvo raras excepções, relacionavam-se e uniam-se apenas os que pertenciam ao mesmo estrato social. As mulheres do povo que fossem eventualmente escolhidas como concubinas nunca poderiam aspirar a uma união legítima ou a um título nobiliárquico ou real, apesar de a História ter registado vários casos de bastardia que abriram caminho à ascensão social. Em Portugal existem inúmeros casos.

     Os filhos bastardos de D. Dinis ou de D. Pedro I são apenas alguns exemplos. A mãe de D. João I (Teresa Lourenço) era uma mulher de classe média (talvez filha de um mercador, Vasco Lourenço Martins, embora alguns acreditem que era uma fidalga galega) e foi ela a amante a quem D. Pedro I se dedicou sempre, paralelamente com o casamento com D.ª Constança e a relação com D.ª Inês e ainda depois de ambas estarem mortas; D. João I nascerá cerca de dois anos após a morte de Inês de Castro e três anos antes de D. Pedro ter declarado que, afinal, tinha casado com Inês, declarando-a rainha póstuma.

     O infante D. Afonso (Afonso de Portugal ou Afonso I de Bragança), filho de D. João I, terá resultado de uma relação entre o jovem Mestre de Avis, ainda solteiro, e a filha de um sapateiro de Veiros, Pero Estevão ou Esteves (Inês Pires ou Peres Estevão ou Esteves, também conhecida como Inês de Veiros por ser natural dessa localidade alentejana). D. Afonso viria a tornar-se o primeiro duque de Bragança e oitavo conde de Barcelos e, portanto, a primeira semente da dinastia bragantina que sucederá à dinastia de Avis, em 1640, após o desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer Quibir (4 de Agosto de 1578), a morte do cardeal D. Henrique (1512-1580), o breve reinado de D. António, Prior do Crato (1531-1595, reinou apenas em 1580) e o domínio filipino (1580-1640). Curiosamente, o pai da donzela não se insurgiu contra o Mestre de Avis, mas contra a própria filha por considerar que fora esta a seduzir o infante quando um dia, enquanto lavava roupa com outras raparigas, e sendo observadas por D. Pedro I e o infante D. João, levantou as saias e mostrou as coxas dizendo às companheiras que se destinavam ao jovem Mestre de Avis. O pai repudiou-a e repudiou também o neto (D. Afonso), apesar de ser de sangue real, deixou crescer as barbas até lhe tocarem nos joelhos (provável exagero, mas ficou por isso conhecido como o Barbadão) e, ainda em vida, mandou gravar uma pedra tumular em que se lia:

«This sepulcher Barbadon caused to be made

(Being of Veyros a shoemaker by his trade)

For himself and the rest of his race,

Excepting his daughter Ines in any case».

 

(In A Continuation of The Lamentable and Admirable Adventures of Dom Sabastian King of Portugale by Fr. José Teixeira, London, 1603, p. 34)

 

     Segundo Frei José Teixeira, D. Jaime, 4.º Duque de Bragança, filho de D.ª Isabel, irmã do rei D. Manuel I, mandou apagar aquela inscrição do seu quarto avô. Conta também o mesmo autor que Inês de Veiros viveu o resto da vida como “a very chast and virtuous woman” (op. cit. p. 34). Recolheu-se ao convento de Santos, nos subúrbios de Lisboa, mandado edificar pelo próprio rei (D. João I), que a nomeou Madre Superior, e aí faleceu. As freiras deste convento, oriundas da aristocracia e realeza, tinham permissão para casar com os cavaleiros que pertenciam à mesma ordem. Não descobri mais informação sobre este convento construído no século XIV, mas é provável que pertencesse à Ordem de Santiago, a mesma ordem a que pertenceu o Convento de Santos-o-Novo, construído ao longo do século XVII; foi idealizado pelo Cardeal D. Henrique, a construção iniciou-se no reinado de Felipe II (de Portugal, III de Espanha), em 1609, e só foi concluído no reinado de D. Pedro II, em 1685. Aquando dos terramotos de 1531 e de 1755, muitos edifícios lisboetas ruíram; alguns foram reconstruídos mais tarde. É possível que o actual convento de Santos-o-Novo, construído no século XVII, se localize no mesmo local onde foi inicialmente erigido o convento de Santos no século XIV. No presente o convento de Santos-o-Novo pertence ao património da Santa Casa da Misericórdia. 

     Ao contrário da Inês que quase provocou a extinção de Portugal, esta Agnes (Inês), não era uma mulher ambiciosa, traidora e oportunista que se serve do seu estatuto social e dos seus dotes físicos para ascender socialmente e obter poder político e económico para si e para os seus. Agnes não escolheu o seu caminho, não escolheu ser amada por um príncipe; aceitou o amor de Albrecht, herdeiro do ducado da Baviera-Munique, e as benesses que lhe foram oferecidas. Todas as circunstâncias e escolhas ultrapassaram a sua vontade. Agnes não arquitectou planos maquiavélicos nem vestiu uma pele de cordeiro para os ocultar. Agnes foi de facto vítima inocente. Por isso é, muito mais do que Inês de Castro, uma heroína trágica. Nenhuma das acusações que lhe são feitas tem fundamento, mas isso pouco importa; o sistema está montado para eliminar os fracos e os inocentes. Para além do nome e do facto de também ter sido morta por motivos políticos ― uma “razão de Estado”―, a única afinidade com Inês de Castro reside no facto de ter existido e de se ter tornado uma lenda.  

Bildnis der Agnes Bernauerinn Johann Michael Mettenleiter, 1800.
Retrato de Agnes Bernauer por Johann Michael Mettenleiter, 1800.

     No caso de Agnes, a lenda que a imortaliza e enaltece pouco teve de inventar sobre as suas virtudes. Era um ser bom e humilde, amada por um príncipe que não podia amar mas apenas cumprir os seus deveres de herdeiro real. Ernst, pai de Albrecht, e restantes familiares entendiam que o herdeiro só poderia casar com alguém de sangue nobre ou perderia o direito ao trono e o próprio ducado da Baviera-Munique deixaria de existir. Como Albrecht nunca se deixou convencer pelos argumentos políticos e não tencionava separar-se de Agnes, era necessário eliminá-la. Agnes foi sacrificada por uma “razão de Estado”, que na verdade era apenas um preconceito social. As acusações que lhe foram feitas eram demasiado comuns na época (século XIV), dirigiam-se sobretudo a minorias (como os Judeus), aos rebeldes e dissidentes ou às camadas sociais mais baixas; eram fruto do fanatismo, da superstição, da intolerância e da prepotência.

     A união de sangue real com sangue plebeu era intolerável. Aproveitando a ausência de Albrecht, as autoridades de Augsburg, a pedido do duque Ernst (pai de Albrecht) acusaram Agnes de bruxaria e envenenamento. Foi sumariamente julgada e condenada a morrer afogada nas águas do Danúbio. Era preciso fazer recair sobre Agnes os actos mais abomináveis e a acusação de bruxaria cobria quase todas as outras acusações que se quisessem formular. Uma bruxa não era sequer vista como um ser humano; era uma criatura que tinha um pacto com o diabo e servia apenas os desígnios do seu amo. Agnes foi acusada de usar poções mágicas para seduzir Albrecht e venenos para matar uma filha do tio deste. 


O Anjo de Augsburg - III

FONTES ORAIS E ESCRITAS

     Não é apenas no folclore alemão que o carácter dos plebeus supera muitas vezes o carácter das elites sociais, políticas, económicas, jurídicas e até culturais. Acontece o mesmo nas histórias tradicionais de locais muito diversos do mundo, incluindo em Portugal. E esta não é exclusivamente uma crença da cultura popular; estudiosos e criadores literários como Oliveira Martins, Teixeira de Pascoais ou até Cesário Verde defenderam uma ideia semelhante: a verdadeira alma de um povo está (ou estava) nas classes mais baixas, na sua energia, nas suas tradições e força de trabalho. Para o bem e para o mal, a imobilidade social da plebe alimenta a constância da identidade dos povos e cria verdadeiras raízes. É dessa força de trabalho que se alimentam as elites. E é dessas raízes populares que se alimenta uma grande parte da cultura popular e erudita, da literatura, da música e das artes plásticas. Este influxo verificou-se sobretudo durante o Romantismo (primeira metade do séc. XIX) e, mais tarde e de forma bem diferente, no Neorrealismo (meados do séc. XX).

     Muito antes, já Gonçalo Fernandes Trancoso (1515-1596), que foi provavelmente o primeiro contista português, nos seus Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1.ª edição de 1575), tinha entretecido de tal forma a cultura popular com a cultura erudita e religiosa, que se torna difícil identificar a origem primeira das suas narrativas. E essa era provavelmente a intenção, já que os seus contos não se destinavam apenas à leitura recreativa mas à morigeração dos costumes, que é transversal a todas as classes sociais e a todas as manifestações culturais, tal como os vícios e as virtudes, mas em proporção muito diversa. A degeneração tende a vir das cúpulas e a regeneração emana, regra geral, das bases da pirâmide social.

     Entre as narrativas de Gonçalo Fernandes Trancoso, as de Charles Perrault e as dos irmãos Grimm, entre outros, existem pelo menos dois traços comuns: bebem a principal inspiração na tradição popular e as suas personagens, regra geral, ou são tipos sociais, psicológicos e morais (independentemente do estrato social) e/ou são personagens anónimas, não identificáveis de forma explícita com nenhuma figura histórica. Desta forma, assumem um carácter mais universal e acabam por ter uma função crítica mais eficaz.

     Há indícios, na literatura alemã, de que muito antes das primeiras obras eruditas serem publicadas já circulavam na tradição oral popular várias versões da história trágica de Agnes Bernauer, quer sob a forma de contos ou “rimances” (narrativas rimadas) quer sob a forma de baladas e canções populares. Os próprios autores das primeiras e principais obras literárias de vulto sobre Agnes Bernauer (Joseph August Graf von Toerring ou Törring, 1753-1826, dramaturgo e político, Otto Ludwig, 1813-1865, dramaturgo, romancista, compositor, libretista e crítico literário, Christian Friedrich Hebbel, 1813-1863 ou Martin Greif, 1839-1911) reconhecem que entre as suas fontes estão as narrativas populares, mas também as crónicas históricas e outros documentos escritos nos séculos anteriores ou coevos da própria Agnes.

Agnes Bernauerin, Joseph August Törring, Manheim, 1791.

     Joseph August von Törring, na nota que antecede Agnes Bernauerin (tragédia em cinco actos, primeiramente publicada em 1780), esclarece que o fundamento histórico da sua peça pode ser encontrado em crónicas históricas, em diversos relatos medievos e nas “cartas de doação” dos próprios duques da Baviera-Munique, Ernst e Albrecht. Salienta especialmente o Rerum Boicarum Scriptores Nusquam Antehac Editi, compilação escrita em latim que reúne inúmeras crónicas e documentos históricos da Idade Média, publicada pela primeira vez em Ausburgo no ano de 1763. Os dois tomos que constituem a obra, com quase duas mil páginas, foram coligidos e anotados por Andreas Felix von Oefele (1706-1780), ele sim verdadeiramente filho de um estalajadeiro de Munique e um exemplo de mobilidade social. Estudou Direito, História e Teologia, foi historiador e bibliotecário da Biblioteca Nacional Alemã. Já antes publicara uma compilação ainda maior, em dez volumes, com as biografias dos autores mais relevantes da Baviera (Lebensgeschichten der gelehrtesten Männer Bayerns / História das vidas dos homens mais eruditos da Baviera). Törring refere ainda uma outra obra ou documento ―  Bermuthung ― que não consegui localizar.