sábado, 9 de janeiro de 2021

LENDA & HISTÓRIA IV

TESES LITERÁRIAS E ENGANADORAS

     Uma das teses, meramente literária e completamente descabida, defende que a morte de Inês de Castro se deveu a um amor não correspondido de Diogo Lopes Pacheco por D.ª Inês. Na perspectiva de Fernão Lopes, Diogo Lopes Pacheco apenas tenta afastar D. Pedro de D.ª Inês porque sabia que era uma relação perigosa para a paz e a soberania nacionais e que desagradava a D. Afonso IV. Na verdade, havia até uma grande proximidade entre D. Pedro e D. Diogo, já que parte da infância de ambos tinha sido passada na casa de D. Lopo Fernandes Pacheco (1280-1349), pai de D. Diogo, conselheiro de D. Afonso IV, mordomo-mor e chanceler de D.ª Beatriz (mulher de D. Afonso IV), testamenteiro de D.ª Isabel (mulher de D. Dinis), meirinho-mor e mordomo-mor do infante D. Pedro (futuro D. Pedro I), além de ter sido encarregue por D. Afonso IV da educação dos infantes D. Pedro (I) e D.ª Leonor:

     «Fernão Lopes defende outra versão, a de que Pacheco em cuja Casa o Infante Pedro foi criado por seu pai Lopo Fernandes Pacheco com quem dividiu boa parte de sua infância e juventude teria muitas vezes alertado o seu amigo e futuro rei da necessidade de afastar Inês do alcance e da sanha que contra ela alimentava Afonso IV

(In Usurpações, casamentos régios, exílios e confiscos, as agruras de um nobre português no século XIV, Fátima Fernandes, Revista de História Helikon, Curitiba, V.2, n.º 2, p. 02-15, 2º semestre, 2014)

     Júlio de Castilho foi um dos que propagou esta tese (cf. D. Ignez de Castro - drama em cinco actos e em verso, Júlio de Castilho (1840-1919), B. L. Garnier, Rio de Janeiro, 1875). No prólogo, em que traça um retrato das personagens principais e explica as suas escolhas dramáticas, dá a entender que esta perspectiva tem uma dimensão sobretudo literária e não genuinamente histórica. Comparando a forma como trata cada uma das personagens, e percebendo-se que há uma necessidade dramática de culpabilizar alguém, compreende-se por que escolheu Diogo Lopes Pacheco. Dado que D. Afonso IV revelou muitas e boas qualidades enquanto monarca, Júlio Castilho preferiu não destruir com a Literatura essa imagem histórica. De qualquer modo, Júlio de Castilho não pretendia escrever ou reescrever a História; o seu “drama” (não tragédia) situa-se entre a História e a Lenda, reclamando naturalmente a liberdade criativa a que tinha direito. Os excertos seguintes comprovam esta abordagem: (foi mantida a grafia original)


Júlio de Castilho, 1840-1919, filho de António Feliciano de Castilho, 1800-1875.

     «Nunca esta obra saberia aspirar aos altos foros litterarios de tragedia; a não ser pelo assumpto, que esse é dos mais trágicos da chronica portugueza. Não podendo pois edificar uma tragedia, na vasta significação d'essa palavra, contentou-se o autor com uma tentativa de drama.» (…)

     «Abramos o livro da nossa historia.» (…) «É essa, em dois traços, a historia-lenda da collo-de-garça.» (…)

     «Eleita a scena e chamados os actores, agrupou-os, metteu-os na sua perspectiva; depois pôz-se a escutá-los. Escutar os personagens é o melhor meio de compor um drama; é talvez o único. Os personagens não são titeres; são homens, ou foram-no. Ouvi-los é a arte

     Referindo-se a D. Pedro I, que divide em dois, o infante e o rei, de forma a atenuar a violência das atrocidades cometidas:

     «Houve de um (infante) para outro (rei) um reviramento, uma completa metamorphose. Suspeitamos até que o monstruoso Rei, a que alguns chamam Justiceiro, não tem perfeitas as faculdades mentaes. Só assim lhe atenuamos a imputação das inqualificáveis e sanguinosas demasias.» (…)

     «Assim, n'estas manifestações tão diversas do seu caracter, julgamos haver bosquejado a difficil personalidade do Justiceiro.»

D. Ignez de Castro - drama em cinco actos e em verso, Júlio de Castilho (1840-1919), 
B. L. Garnier, Rio de Janeiro, 1875 - rosto.

     Sobre D. Afonso IV diz o seguinte:

     «Quanto a El-Rei D. Affonso: disse-nos a meditação que as suas constantes tergiversações n'este demorado negocio, taes como no-las apresenta a tradição, eram um signal de que se pode ser o vencedor do Salado, e um dos homens mais valentes do seu século, e ao mesmo passo trepidar, hesitar, cair, quando a sangue frio se planeie, n'um recinto pouco menos que domestico, a morte de uma mulher que não tem culpas.

     Para explicar esse dúbio comportamento em tal homem, posémo-lo como que entalado entre a pressão enérgica dos seus conselheiros, e as persuasões suaves de uma esposa presadissima, e digna de o ser; indeciso entre o temor das suas altas responsabilidades reaes para com o povo, e a affeição paternal que dedicava a seu filho, e dedicaria á propria D. Ignez. D'essa luta de opposições saiu o caracter, que (bem ou mal) ahi supposémos a El-Rei.

     Era convencimento nosso que o seu retrato moral anda falseado por todos quantos crêem epilogar-lhe o julgamento com dizerem: foi mau filho, mau pae, mau irmão, e sogro cruel. Não; El-Rei D. Affonso IV não foi isso. Aquelle coração nobilíssimo, aberto a todos os rasgos, era (principalmente na madureza dos annos) cheio de mysteriosos cambiantes, que a poesia, bem mais do que a fria observação da historia, pode adivinhar, surprehender, e fixar. Aquella alma austera mas terna; leal, e fraca; desinteressada, e cavalleirosa, padeceu muito! e do seu estirado supplicio não poucos vestigios restam no longo, no trabalhoso fluctuar de tantos annos, entre os deveres de Monarcha, tal como lhos pintava a barbaria do tempo, e o suave pendor de pae.

     Entendeu pois o autor d'este drama dever pôr em evidencia, e com imparcialidade, o duro papel que as circumstanciás forçaram o Soberano a aceitar na inaudita condemnação de Ignez. Para quem meditar, tem consideráveis atenuações um tão brioso homem de armas, que assim se tornou, sem o querer, um algoz

     No que toca ao retrato dos três conselheiros de D. Afonso IV, Júlio de Castilho não recorreu apenas à conjectura; faz acusações directas à lealdade de Pero Coelho ao seu rei e ao seu país, apaga quase completamente Álvaro Gonçalves e coloca em Diogo Lopes Pacheco a causa principal do assassinato de D.ª Inês.   

     «Para variar quanto possível o caracter dos tres históricos matadores, fez-se de Pero Coelho um intrigante politico vendido aos castelhanos, e oppondo-se, pelo muito oiro que lhe chovia da banda de Castella, ao casamento do Infante com D. Ignez, casamento que, de um modo ou de outro, cedo ou tarde, podia roubar (como com effeito esteve talvez a pique de roubar) o sceptro ao primogénito, o senhor D. Fernando, vindo a caducar assim certas influencias de Castella na corte de Portugal. Alvaro Gonçalves por conveniencia scenica ficou mais em sombra, sem deixar de conspirar no mesmo conluio de rufiães.

     A alma porem da conjuração é Diogo Lopes Pacheco, que fizemos (carreguem os seus lémures com mais esta) amante repudiado da linda Ignez. É pois elle quem, por um ciúme concentrado e constante, vai movendo a trama, que perdeu a innocente; é elle quem, sempre prompto, doble e flexivel, tem na mão as chaves que lhe abrem, ora os cofres de Castella, ora o coração da Rainha, ora a annuencia pusillanime d'El-Rei (permitia-nos esse tremendo qualificativo a memoria do valoroso Monarcha).

     Poderá parecer ousadia insustentável a indole do papel que distribuimos a Diogo Pacheco; e poderá objectar-se-nos que nada auctorisa a cre-lo rival do Infante D. Pedro. Ao reparo contestaríamos o seguinte:

     No meio de tammanho esquecimento, como o que ennevoou este caso todo, a verdade guardou-a Deus para si; mas a tradição e o grande instincto nacional não desligam o Senhor de Ferreira de Aves do attentado de 1355. Assim pois, ficava á poesia dramática a liberdade ampla de fazer entrar esse cavalleiro do modo que mais conviesse.

     De tantas negruras como as que encerrou esta lugubre tragedia, inspiradora de lyras em todo o mundo, temos por certo que a historia não disse tudo. A historia calou-se com a chave de um cerrado enigma: com o verdadeiro porquê d'aquelle iniquissimo assassinamento de uma mulher. Ali havia causa latente (que hoje não sabemos rastrear) para tão acirrados odios, para enredos tão porfiados, para desfecho tão indigno dos punhaes de tres fidalgos.

     Supposémos amores n'esse motivo occulto; a cinco séculos de distancia era já licito no theatro interpretar assim livremente a historia patria; e Deus sabe se a intuição do dramaturgo não acertaria!

     Suppra mais esta conjectura em cinco actos o silencio das chronicas.»

Júlio de Castilho, 1840-1919, enquanto jovem.

     A liberdade criativa é legítima, mas é bom não confundir a ficção com a História. Esta tese dos ciúmes que conduzem à vingança e ao assassinato revestiu diversas variantes. Numa das versões francesas da história-lenda de Inês de Castro, a morte de D.ª Inês deve-se aos ciúmes desvairados de uma das suas aias, Elvira (cf. Historia de dona Ignez de Castro – Traduzida do Francês, Typographia Rollandiana, Lisboa, 1827). Nesta versão, Elvira é D.ª Elvira Gonçalves, irmã de D. Álvaro Gonçalves, um dos conselheiros de D. Afonso IV, considerado um dos responsáveis pela morte de Inês e barbaramente executado a mando de D. Pedro. Nesta versão, é Álvaro Gonçalves quem está apaixonado por D.ª Inês e ajuda a irmã, abandonada por D. Pedro, a arquitectar a morte de Inês… Para quem desconhece a História, ler e acreditar nestas histórias pode ser muito enganador… Eis alguns excertos exemplificativos:

Historia de dona Ignez de Castro – Traduzida do Francês
Typographia Rollandiana, Lisboa, 1827.
Logo na página 4, D. Pedro é descrito como um príncipe cheio de "doçura e virtude". 
De D. Branca o autor anónimo diz que  "só trouxe a Portugal enfermidades e poucos atractivos" 
e que partiu por sua própria vontade, acrescentando que, nem por isso, tinha o príncipe deixado de "viver bem com ela". 
Seria difícil distorcer mais a História, excepto no que toca à vida marital de D. Pedro com D. Branca que, 
segundo alguns autores, se terá prolongado por cerca de dois anos.

     «Não era Constança a única que devia queixar-se de D. Pedro. Antes do seu divórcio de Branca, já tivera inclinação a Elvira Gonçalves, irmã de D. Álvaro Gonçalves, favorito do Rei de Portugal, e o que apenas fora mero divertimento na mocidade deste Principe, fez nella huma tao profunda irapressão, que o infeliz estado de Branca lhe fizera esperar que poderia hum dia desposar D. Pedro. Com secreto dissabor vio ella preencher Constança o lugar de que fora lisonjeada a sua ambição, e os encantos desta Princeza lhe fizerao mui cedo perder a esperanca de agradar para o futuro ao seu esposo.

     O ciume que disso teve, lhe fez examinar com cuidado todas as acções do Principe. Percebeo facilmente a sua frieza para com sua esposa, e suspeitou com razão que tinha o coração preoccupado de novos affectos. Propoz-se fortemente a contraria-los por toda a sorte de meios, assim que pudesse descobrir qual era o seu objecto. Tinha ella hum espirito capaz de emprehender as cousas mais atrevidas, e o credito de seu irmão tornava-a tão vã, que a mesma indifferença que D. Pedro lhe testemunhava, nao era bastante para abaixar o seu orgulho. (…) Ficou Elvira furiosa ao ouvir estas palavras: representou-se-lhe ao mesmo tempo Ignez de Castro com todos os seus attractivos, e não duvidando já que fosse ella que possuisse o coração de D. Pedro, concebeo tamanho odio a esta bella rival, como o amor que a elle tinha. (…)

     (…) Inês fala com Constança: De Elvira he que o Principe está apaixonado; elle a amava já antes de ser vosso, mesmo antes do seu divorcio de Branca. Ter-vos-hão sem dúvida feito huma infiel relação desta intriga da sua rnocidade. Mas, Senhora, depois do laço sagrado que o une a vós, decerto não ama ninguem mais. (…)

    Em quanto estas tres desgracadas pessoas (Constança, Pedro e Inês) se abandonavao ao seu desgosto, Elvira, para não deixar imperfeita a sua vinganca, procurou os meios de torna-la completa. Como julgava com razão que o Rei não approvaria o amor de D. Pedro a D. Ignez de Castro, descobrio-o a D. Alvaro, seu irmao. Tinha ella tanta maior razão para contar com elle, que este lhe mostrava muita amizade, e não ignorava que o Principe a havia amado. A paixao secreta que D. Alvaro sentia por Ignez, fez-lhe tornar hum grandissimo interesse nesta novidade: o cuidado que elle tivera na sua fortuna, lhe havia impedido até então o descobrir-lha, e esperava que o seu favor junto do Rei lhe obtivesse dignidades, que tornassem mais agradavel a offerta do seu coração

(In Historia de dona Ignez de Castro – Traduzida do Francês, Typographia Rollandiana, Lisboa, 1827, págs. 7-27)

      Na Nova Castro, de João Baptista Gomes, também aparece uma Elvira, mas é uma aia e confidente de D.ª Inês completamente dedicada à sua senhora. Nesta obra, Inês confessa-se culpada pelo sofrimento de Constança e merecedora do maior sofrimento e castigo. Elvira conforta-a e incentiva-a a prosseguir com a relação adúltera com D. Pedro, colocando o bem-estar e prazer de D. Pedro acima de todas as coisas:

Elvira (fala com D.ª Inês)


Oh! Ceos! Na primavera de teus annos,
Engolfada em fataes, loucos pezares,
Tu própria buscas terminar teus dias,
Sem que ao menos te lembres que depende
Da tua vida a vida do consorte;
Que huma lagrima só que tu derrames.
Se o Principe jamais a divisasse,
Seria de sobejo a envenenar-lhe
O terno coração, que affagar deves!...
Se neste estado agora elle te achasse,
Em que estado sua alma ficaria?
Por seu amor te rogo, enxuga o pranto,
As afflicções desterra, em que soçobras.

(In Nova Castro, tragedia, João Baptista Gomes (c. 1775-1803), Na Impressão Régia, Lisboa, 1815, p. 7)

 

CENA MACABRA

     Por muito que a lenda queira, também não há prova alguma de que tenha ocorrido o beija-mão da corte ao esqueleto de D.ª Inês. Em 1361, quando o cortejo fúnebre seguiu do Mosteiro de Santa Clara em Coimbra para o Mosteiro de Alcobaça, o corpo de D.ª Inês era apenas um amontoado de ossos (um corpo humano leva 5 a 6 anos a decompor-se na totalidade até só restarem alguns ossos). Alguns autores mais sensatos falam apenas na “trasladação das cinzas”; outros falam objectivamente da “trasladação do cadáver”; outros (Antero de Figueiredo) falam do “esqueleto verde e fétido de Inês de Castro”; e há ainda aqueles que falam de um corpo intacto, sem sinais de degenerescência (Marquês de Resende citado por Sousa Viterbo)... Outros dizem o mesmo de D. Pedro (um “corpo incorrupto”, cf. Historia chronologica, e critica da Real Abbadia de Alcobaça, da congregação Cisterciense de Portugal, Lisboa, 1827, p. 20).

Le Couronnement d'Inès de Castro en 1361, Pierre-Charles Comte vers 1849.

     Num tempo de excessos e acontecimentos devastadores, como os surtos de peste negra (peste bubónica), que, a partir de 1348, espalharam a morte por toda a parte, não é crível que os cortesãos se dignassem beijar um amontoado de ossos. Segundo Fortunato de S. Boaventura, em 1348, num só mês morreram 150 monges do Mosteiro de Alcobaça (cf. Historia chronologica, e critica da Real Abbadia de Alcobaça, da congregação Cisterciense de Portugal, Lisboa, 1827, p. 178). E os surtos de peste continuaram a surgir ciclicamente nas décadas seguintes. É no entanto plausível pensar que D. Pedro tenha ordenado que se criasse alguma espécie de efígie pictórica que representasse simbolicamente D.ª Inês e que os membros da corte lhe tenham prestado homenagem, por vontade própria ou forçados, pois D. Pedro não se eximia de cortar cabeças, queimar pessoas vivas ou sujeitá-las a torturas horrendas. E os seus súbditos sabiam isso melhor do que ninguém.

Le Couronnement d'Inès de Castro, Gillot Saint-Evre, 1791-1858, 1827.

     Nesta matéria, é espantoso o poder da opinião pública e dos leitores. Na primeira edição da Nova Castro (1803), tragédia de João Baptista Gomes Júnior (c. 1775-1803), não existia a cena da coroação de D. Inês depois de morta. Mas para agradar a um certo número de leitores, o editor vê-se obrigado a acrescentar essa “cena”, já depois da morte do autor. De algum modo, o editor sentiu-se culpado por esta deturpação da obra original que não teria agradado ao autor e chamou-lhe “mutação”, acompanhada por esta nota: «A lembrança de que muitas pessoas desejam ver no fim daquela óptima Tragedia uma Coroação, fez com que se imprimisse esta, apesar da falta de unidade que há, o que forma um erro dramático, que o seu Autor não desculparia se existisse, —o Editor.» Mesmo assim, o editor não se eximiu de colocar na página de rosto um subtítulo apelativo «Correcta de muitos erros, e aumentada com a brilhante cena da COROAÇÃO.» Não tenho dúvidas de que esta condescendência para com o gosto de um certo público ajudou a vender muitos mais exemplares desta obra.

Nova Castro, tragedia de João Baptista Gomes Junior
Nova edição correcta de muitos erros, e augmentada com a brilhante scena da coroação
Typographia de Sebastião José Ferreira, Porto, 1857.


Nova Castro, tragedia by Gomes, João Baptista, c. 1775-1803, 
Livraria Portugueza de J. P. Aillaud, Paris, 1848.
A nota do editor que antecede a cena da coroação.

Nova Castro, tragedia by Gomes, João Baptista, c. 1775-1803, 
Livraria Portugueza de J. P. Aillaud, Paris, 1848.

Les tableaux de M. le comte de Forbin, ou, La mort de Pline l'Ancien, et Inès de Castro. 
Nouvelles historiques, par Mme la comtesse de Genlis, Paris, 1817.


La iffanta (sic) coronada, por el Rey Don Pedro, Doña Ines de Castro - en octava rima 
por Don Juan Soares de Alarcón, Lisboa, 1606.
Embora António Ferreira, 1528-1569, (A Castro, tragédia publicada postumamente apenas em 1587 embora fosse muito anterior) já insinuasse a elevação de Inês de Castro ao estatuto de rainha, foram sobretudo os autores castelhanos (Jerónimo Bermúdez e Luis Vélez de Guevara) que propagaram a ideia da coroação e do beija-mão, depois replicada por toda a Europa. O primeiro, Jerónimo Bermúdez de Castro, copia em grande parte a obra de António Ferreira, tal como já foi demonstrado por vários estudiosos. Depois de ter estado em Lisboa e convivido com António Ferreira, e provavelmente depois de ter lido o manuscrito de Ferreira, publica em Madrid, no ano de 1577 as duas tragédias Nise lastimosa e Nise laureada, ambas sob o pseudónimo António Silva. João Soares de Alarcão, autor desta obra, embora fosse português, escreveu quase sempre em castelhano, tal como atesta Camilo Castelo Branco nas suas Noites de Insónia (N.º 4, Abril de 1874): 
«D. João Soares morreu em 1618, com 33 annos de idade. Escreveu e imprimiu em língua castelhana: Archimusa de varias rimas y efetos, e La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro, etc. Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pêro Coelho, avoengo do poeta


Historia de dona Ignez de Castro – Traduzida do Francês
Typographia Rollandiana, Lisboa, 1827.


quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

LENDA & HISTÓRIA III

 OS CASTRO E OS PACHECO

 

     Alguns defendem que a trágica morte de D.ª Inês se deveu apenas à rivalidade e aos conflitos entre duas das mais poderosas e influentes famílias aristocráticas portuguesas: os Pacheco (família genuinamente portuguesa) e os Castro (mistura de sangue castelhano e português). É admissível que este conflito tenha pesado na decisão de eliminar D.ª Inês, mas não é crível que alguém como D. Afonso IV, um rei sensato, pacificador, diplomata e determinado, pelo menos depois de ascender ao trono, tenha sido manipulado a tal ponto.

     Convém, no entanto notar que os Pacheco sempre tinham sido leais servidores da coroa portuguesa e opositores à subserviência de Portugal em relação a Castela e Leão; e os Castro tendiam a inclinar-se para o partido e situação que mais os poderia favorecer. Os Pacheco nunca tentaram arrebatar para si a própria coroa de Portugal ou de Castela; os Castro tentaram fazê-lo diversas vezes e de diversos modos, recorrendo à conspiração, à traição e à manipulação, como aconteceu com o próprio D. Pedro I de Portugal, a quem prometeram a coroa de Castela se os auxiliasse na luta contra o rei castelhano. O próprio D. Pedro manifestou abertamente esta pretensão e causou conflitos desnecessários com Castela. Foi o seu pai, D. Afonso IV, que ergueu a voz contra tal insensatez e o obrigou a desistir de entrar em guerra com Castela para tomar o trono. Não terá desistido por completo porque continuou a cooperar e a servir os intuitos e interesses dos Castro. Mas também não traiu por completo a memória de seu pai, D. Afonso IV, porque ainda antes de morrer jurou herdeiro o seu filho legítimo, D. Fernando.

      «O Infante Pedro de Portugal teria recebido em 1353 a oferta do nobre Álvaro Peres de Castro de assumir o trono castelhano após uma pretensa deposição de Pedro, o Cruel, coordenada por uma coalisão constituída pelos nobres João Afonso de Albuquerque, Fernando Peres de Castro, seu meio-irmão, Álvaro Peres de Castro, apoiados ainda pelos chamados Infantes de Aragão, Fernando e Juan, condutores de uma revolta contra o rei de Castela (D. Pedro I de Castela, o Cruel). Tratava-se, portanto, de uma proposta de colaboração e envolvimento português numa guerra civil em Castela que prometia a princípio, a união dos dois reinos sob a égide portuguesa; uma proposta que, no entanto, o rei português, Afonso IV impede seu filho de aceitar. Em primeiro lugar pela fragilidade das condições de implementação desta promessa para, além disso, outras razões políticas justificariam plenamente as reservas do experiente rei Afonso

 (In Usurpações, casamentos régios, exílios e confiscos, as agruras de um nobre português no século XIV, Fátima Fernandes, Revista de História Helikon, Curitiba, V.2, n.º 2, p. 02-15, 2º semestre, 2014)

      Quem era João Afonso de Albuquerque? Era filho de Afonso Sanches, Senhor de Albuquerque, filho bastardo e predilecto de D. Dinis, pai de Afonso IV e avô de D. Pedro I. Foi mordomo-mor e chanceler-mor de D. Pedro I de Portugal e um elo forte com os Castro. Igualmente interessante é o facto de ter sido aio de D.ª Maria de Portugal (irmã de D. Pedro) e ter sido padrinho de D. Pedro de Castela (filho de D.ª Maria de Portugal) no casamento com D.ª Branca de Bourbon. Foi também um dos membros da corte castelhana que integraram o séquito de D.ª Constança Manuel quando (depois de libertada do Castelo de Toro onde D. Afonso XI a enclausurara) veio para Portugal para casar com D. Pedro I. Nesse mesmo séquito vinha também D.ª Inês de Castro.

D. Afonso Sanches, c. 1289-1329, filho bastardo e predilecto de D. Dinis, senhor de Albuquerque.
(in The Portuguese Genealogy - Genealogia dos Reis de Portugal).

     Foi no Castelo de Albuquerque que D.ª Inês foi criada pela mulher de Afonso Sanches, D.ª Teresa Martins de Meneses, e foi neste castelo que foi exilada por D. Afonso IV, por ser notória e ofensiva a ligação entre D. Pedro e a a aia de D.ª Constança. João Afonso de Albuquerque, para além de primo, era uma espécie de irmão de Inês de Castro, foi criado com ela desde criança sempre com a proximidade de Álvaro Pires de Castro, irmão de D.ª Inês. Tanto Inês como Álvaro eram filhos bastardos de D. Pedro Fernandes de Castro. Segundo Lopez de Ayala (Crónica Geral de Espanha), João Afonso Albuquerque terá sido envenenado por ordem de D. Pedro I de Castela.

D. Pedro I, o Justiceiro ou o Cru.

     Logo no reinado seguinte, D. Fernando, filho de D. Pedro I, cria o título de “Condestável”, em 1382, para D. Álvaro Pires de Castro (1310-1384), irmão de Inês de Castro. O mesmo monarca já tinha criado dois outros títulos, em 1371, para este mesmo Álvaro Pires de Castro: foi o 1.º Conde de Viana da Foz do Lima e o 1.º Conde de Arraiolos.

     A irmã de D.ª Inês de Castro, D.ª Joana de Castro, que seria tão ou mais bela do que D.ª Inês, consegue de facto ascender à realeza, mas por pouco tempo; consta que foi rainha apenas por uma noite. D. Pedro I de Castela, sobrinho de D. Pedro I de Portugal, apaixona-se subitamente por D. Joana de Castro, casa com ela, mas logo a repudia e mata-a. Consta que o rei a terá repudiado logo após a primeira noite em comum e terá sido morta pouco depois. Algumas fontes sustentam não ser completamente verdade; D.ª Joana de Castro terá vivido ainda cerca de um ano (embora repudiada como rainha) e terá tido um filho de D. Pedro I de Castela, em 1354. Assim sendo, as irmãs D.ª Joana e D.ª Inês terão sido assassinadas quase na mesma data. Esta união entre D.ª Joana de Castro e D. Pedro de Castela também terá sido urdida e propiciada pelos irmãos Castro. Eles sabiam bem quão belas e sedutoras eram as suas irmãs, elas podiam ser um meio tão eficaz para conquistar o poder como as conspirações ou o gume da espada. Só não esperariam que ambas acabassem mortas, uma rainha de facto, mesmo que só por um dia ou uma noite (D.ª Joana), a outra, uma rainha simbólica após a morte (D.ª Inês).

     Resta saber o quão envolvidas estavam as irmãs nos planos dos irmãos. Mortas as irmãs, os irmãos Castro continuam próximos de D. Pedro de Portugal, pois havia ainda três filhos vivos de Inês de Castro e de D. Pedro (João, Dinis e Beatriz) que poderiam ascender ao trono. Depois de D. Pedro I de Castela (neto de D. Afonso IV e sobrinho de D. Pedro I de Portugal) ser assassinado pelo irmão bastardo, Henrique de Trastâmara, os irmãos Castro passam a apoiar D. João I de Castela contra D. João I de Portugal, o Mestre de Avis, nas pretensões ao trono de Portugal.

     Simultaneamente, D. Fernando também favoreceu Diogo Lopes Pacheco (c. 1305-1393), conselheiro de D. Afonso IV, acusado de sentenciar D.ª Inês à morte, atribuindo-lhe responsabilidades diplomáticas, incluindo na assinatura do Tratado de Alcoutim (1371). Exilou-se em França mas manteve-se leal a Portugal, regressando ao país após a morte de D. Pedro. Mas chegou de facto a pegar em armas contra Portugal, tal como alguns o acusam, porque considerava o casamento de D. Fernando (filho de D. Pedro) com D.ª Leonor Teles (parente de D.ª Inês por via materna) perigoso para a soberania de Portugal. É obrigado a exilar-se novamente e regressa a Portugal para apoiar o Mestre de Avis (D. João I). Sabe-se que, sendo já octogenário, ainda participou na batalha de Aljubarrota de espada na mão.

     Os Castro sediaram-se na Galiza no século XII e tornaram-se uma das cinco famílias mais influentes de Castela. Pedro Fernandes de Castro, o da Guerra (pai de D.ª Inês) cresceu em Portugal com o seu primo, D. Pedro Afonso, 3.º Conde de Barcelos (o autor do primeiro Livro de Linhagens, filho bastardo de D. Dinis e um dos poucos filhos bastardos deste rei que respeitaram D. Afonso IV, o herdeiro legítimo), habituando-se desde a infância a conviver com reis. Quando regressa a Castela, torna-se mordomo-mor da corte. Casa duas vezes, primeiro com D.ª Beatriz (que era filha de D. Afonso de Portugal, filho de D. Afonso III) de quem não teve filhos; depois casa com D.ª Isabel Ponce de Leão, de quem teve dois filhos: D. Fernando Rodrigues de Castro, o de Toda a Lealdade de Espanha (partidário de D. Pedro I de Castela), que casou com D.ª Joana Afonso, filha de Afonso XI de Castela (marido de D. Maria de Portugal, cunhado de D. Pedro I de Portugal e genro de D. Afonso IV); e D.ª Joana de Castro que veio a casar com D. Pedro I de Castela e foi “rainha por uma noite”. Fora do casamento, teve com a bela portuguesa Aldonça Lourenço de Valadares (filha de Lourenço Soares de Valadares, conselheiro de D. Afonso III e de D. Dinis) dois filhos bastardos: D.ª Inês de Castro e D. Álvaro Pires de Castro (que constituem a linha ilegítima dos Castro). Tal convívio e uniões matrimoniais com membros da alta aristocracia e da realeza despertaram ainda mais a ambição de subir mais alto.

     Séculos mais tarde, a memória maculada destes Castros seria parcialmente redimida por alguns dos seus descendentes. Saliento apenas os dois homónimos João de Castro: um foi o quarto vice-rei da Índia (1500-1548) o outro (c. 1550 - c. 1628) foi historiador e escritor. O primeiro foi aquele que empenhou os ossos do filho, D. Fernando de Castro, morto em batalha, e as próprias barbas como garantia de que cumpriria a sua “palavra de honra”. O segundo opôs-se veementemente à ocupação castelhana a partir de 1580, apoiou D. António, Prior do Crato e foi obrigado a exilar-se em Paris para continuar a escrever e a defender a sua pátria original. Foi ele o verdadeiro fundador do Sebastianismo e do Quinto Império, ideias depois retomadas e desenvolvidas por nomes grandes como o P.e António Vieira e Fernando Pessoa.

D. João de Castro, 1500-1548, 4.º Vice-rei da Índia.

Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, capateiro de Trancoso 
de João de Castro, c. 1550-c. 1623, Ed. José Lopes da Silva, Porto, 1901.
Esta obra foi publicada pela primeira vez em Paris (1603) durante o exílio de D. João de Castro.
Em 1901, o editor José Lopes da Silva encontra um exemplar desta obra no Porto e propõe a Sampaio Bruno que se faça uma edição fac-similada, prefaciada e anotada por este último.

Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, capateiro de Trancoso 
de João de Castro, c. 1550-c. 1623, Ed. José Lopes da Silva, Porto, 1901.
Na página acima, que se segue à folha de rosto, pode ler-se: 
"D. Sebastião, por graça de Deus, Rei de Portugal, aparecido e profetizado".

Paraphrase et concordancia de algvas prophecias de Bandarra, capateiro de Trancoso 
de João de Castro, c. 1550-c. 1623, Ed. José Lopes da Silva, Porto, 1901.

     Mas para voltar a macular a linhagem dos Castro vieram depois outros, como D. Francisco de Castro, 1574-1653, (neto do vice-rei da Índia D. João de Castro e descendente de Álvaro Pires de Castro), que além de Bispo da Guarda e Reitor da Universidade de Coimbra, foi Inquisidor Mor ou Inquisidor Geral do Santo Ofício, nomeado em 1629. Compilou um minucioso código legal do Tribunal do Santo Ofício para que nenhum “hereje”, Judeu, bruxa, mezinheiro, dissidente político ou pacato cidadão pudesse fugir ao longo braço da Inquisição e às labaredas das suas insaciáveis fogueiras. Muitas dezenas de desgraçados perderam a vida por sua ordem… uma vergonhosa honra… Colocou-se ao lado dos Filipes e foi por eles recompensado, em 1611, com o cargo de Presidente da Mesa de Consciência e Ordens. Em 1619, participou nas Cortes que Filipe II celebrou em Lisboa para jurar herdeiro o seu filho, futuro Filipe III (de Portugal). De modo oportuno e conveniente, após a Restauração (1 de Dezembro de 1640), muda radicalmente a sua posição política e coloca-se ao lado de D. João IV. Mas logo foi descoberta uma conspiração para incendiar o palácio real e assassinar D. João IV e, segundo alguns, este pio inquisidor faria parte da trama. Esteve preso durante dois anos na Torre de Belém, mas como bom inquisidor, foi perdoado e reintegrado no quadro dos funcionários da corte e em todos os importantes cargos que antes tivera, todos conquistados durante o domínio filipino. Só com ironia se pode exclamar: “Abençoada seja a incoerência, o oportunismo e o nepotismo, pois desinteressada misericórdia não foi certamente…” (cf. Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza, Tomo I, Pedro José de Figueiredo, Lisboa, 1817).

D. Francisco de Castro, 1574-1653, o Inquisidor Geral.
(In Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza
Tomo I, Pedro José de Figueiredo, 1762-1826, Lisboa, 1817).

Lopo Fernandes Pacheco, 1280-1349, pai de Diogo Lopes Pacheco, 
tutor e Mordomo-Mor de D. Pedro e chanceler da rainha D. Beatriz.
(In Retratos, e elogios dos varões, e donas, que illustraram a nação portugueza
Tomo I, Pedro José de Figueiredo, 1762-1826, Lisboa, 1817).

Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), navegador, militar e cosmógrafo português. 
Autor do Esmeraldo de Situ Orbis, c. 1505-1507, foi uma das testemunhas portuguesas 
na cerimónia de assinatura do Tratado de Tordesilhas em 7 de Junho de 1494.

A Revolução da experiência - Duarte Pacheco Pereira e D. João de Castro
Idearium, Antologia do Pensamento Português, Edições SNI, 1947.
Nesta obra reúne-se o pensamento pioneiro de um Castro e um Pacheco.
D. João de Castro inaugurou o profetismo sebastianista e a ideia de Quinto Império; Duarte Pacheco Pereira foi um percursor do experimentalismo, defendendo o primado da observação e da experiência, além de ter sido, provavelmente, o primeiro a chegar ao Brasil (por volta de 1498) e a explorar as costas e ilhas da América do Sul, Central e das Antilhas. Na sequência da assinatura do Tratado de Tordesilhas, D. Manuel I terá enviado Duarte Pacheco Pereira numa viagem de reconhecimento secreta.


LENDA & HISTÓRIA II

 O CASAMENTO SECRETO

 

     Em 1360, D. Pedro declara solenemente em Cantanhede ter casado secretamente com D. Inês “há cerca de 7 anos”. O que é curioso, e tristemente divertido, é que nem ele nem as supostas testemunhas se lembrem ao certo do dia e mês em que casou! (cf. Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes). De facto, D. Pedro fez registar nesse ano (18 de Junho de 1360) um juramento escrito para legitimar este casamento. Esse documento existe ainda hoje na Torre do Tombo. Mas a sua simples existência não comprova a autenticidade do casamento secreto de Bragança, que teria ocorrido no dia 1 de Janeiro de 1354, um ano antes do assassinato de D.ª Inês. Esta data não é indicada por D. Pedro, mas por um seu “criado”, Estevão Lobato (Guarda-Roupa d’El-Rei), que, repentinamente, se lembrou da data.

Inès de Castro se jetant avec ses enfants aux pieds d'Alphonse IV roi, Eugénie Honorée Marguerite Servières, 1786. 

     Não seria este o primeiro nem o último documento forjado na História de Portugal. E, num caso específico, há até uma relação estreita com a actuação de D. Pedro (o favorecimento da Ordem de Cister). Um dos autores da Monarquia Lusitana, Frei Bernardo de Brito, clérigo cisterciense de Alcobaça, na ânsia de elucidar sobres os períodos anteriores à fundação da nacionalidade, atreve-se a escrever a História do mundo desde a sua “criação”. Para fundamentar as suas narrativas mitológicas forja cerca de duas centenas de documentos, todos referentes a um passado mítico ou tão distante que já ninguém podia confirmar com os próprios olhos nem através de documentos, que não existiam ou se perderam na poeira do tempo. Existem, contudo, múltiplos documentos que atestam que o Mosteiro de Alcobaça e os seus clérigos da Ordem de Cister foram repetidamente favorecidos por quase todos os monarcas desde a fundação de Portugal, sobretudo por um rei que não tinha grande simpatia pelo clero, D. Pedro I (cf. Chancelaria de D. Pedro I, ANTT).


Carta de confirmação pela qual o rei D. Pedro I revalidou a Alcobaça os coutos e jurisdições, e restituiu as que seu pai, D. Afonso IV, tinha tirado ao mosteiro, c. 8-9-1358 - ANTT.

     Curiosamente, o único rei que não favoreceu a ordem e o mosteiro com mais terras, bens e privilégios foi D. Afonso IV. Este monarca, pelo contrário, considerando que os clérigos de Alcobaça já tinham sido excessivamente privilegiados e tendiam a alargar cada vez mais o seu domínio e poder, retirou-lhes algumas terras e benesses. Pode haver, pois, diversos motivos para forjar documentos ou fazer apologias.

     Todos os autores da Monarquia Lusitana (oito partes, escritas entre 1597 e 1729) eram cistercienses. Curiosamente, embora D. Pedro I tenha sido um dos principais benfeitores do Mosteiro de Alcobaça, não há um capítulo dedicado a este rei; mas existe um dedicado a D. Afonso IV onde D. Pedro é mencionado (Monarquia Lusitana, Sétima Parte, Rafael de Jesus, 1683 – cf. Capítulo III, págs. 361). A oitava e última parte incide sobre os reinados de D. Fernando e D. João I. Adiante, voltarei a falar da Ordem de Cister (A SUPREMACIA DE CISTER) e dos seus conflitos com os reis de Portugal que tentaram limitar-lhe o poder, sobretudo D. Afonso IV.

     Com a publicação do suposto casamento secreto de Bragança, para além de querer honrar D.ª Inês, D. Pedro queria sobretudo legitimar os seus filhos bastardos, para justificar as benesses de príncipes que lhes concedeu e, se as circunstâncias fossem propícias, permitir que um ou outro (D. João ou D. Dinis), pudesse ser seu sucessor no trono de Portugal. Tal possibilidade assustava aqueles que conheciam melhor as motivações e a ambição da família Castro. 

Gravura fictícia, representando o casamento secreto de D. Pedro I de Portugal com Inês de Castro.

     Retornemos aos meandros da história de Pedro e Inês. As dúvidas são tantas como as certezas, o que se sabe tanto como o que não se sabe ou menos. O certo é que no caso de D. Pedro, as motivações pessoais e privadas se misturam e confundem amiúde com a imagem e os actos públicos e políticos.

     Nas notas à bibliografia, que surgem nos posts seguintes, refiro-me à instituição do beneplácito régio por D. Pedro I (alguns consideram que apenas o confirmou). Esta lei pretendia impedir a falsificação de documentos eclesiásticos (abuso praticado frequentemente pelo clero em proveito próprio ou de terceiros) e a publicação de bulas papais sem a aprovação do rei. No que toca ao casamento secreto de Bragança, esta era uma lei muito conveniente.

     Segundo alguns autores, o papa João XXII (papado de Avinhão, 1316-1334) terá recusado o pedido de dispensa de D. Pedro para casar com D.ª Inês (?), porque eram primos. A data indica que só pode tratar-se de um lapso: o pedido de dispensa não podia referir-se a D. Inês nem podia ter sido feito por D. Pedro mas por seu pai. Após esta recusa, há sim provas de que D. Pedro solicitou (nova) dispensa para casar e legitimar os filhos de D.ª Inês ao papa Inocêncio VI (papado de Avinhão, 1352-1362) e este recusou.

     No entanto, a bula apresentada (no juramento de Cantanhede) por D. Pedro é a de João XXII. Caso deveras estranho, já que o papa João XXII faleceu em 1334, mais de vinte e cinco anos antes da declaração de Cantanhede! Nesta bula refere-se que o pedido é feito por D. Afonso IV em nome de D. Pedro, mas não menciona explicitamente o nome de D.ª Inês nem o de outra mulher. Fernão Lopes transcreve o juramento de Cantanhede em que se inclui esta bula, deixando a impressão de que não acredita na sua autenticidade. Na verdade, no capítulo (Crónica de D. Pedro I) referente às objecções e dúvidas sobre este casamento, fica bem claro que os argumentos dos que o negavam eram bem mais credíveis do que o embuste montado por D. Pedro. Para que D.ª Inês recebesse as honras de rainha, tinha de ser forjado um documento que comprovasse a existência de um casamento enquanto ela foi viva. E os filhos de uma rainha eram necessariamente pretendentes ao trono português.

Juramento de D. Pedro I do matrimónio celebrado com D. Inês de Castro. Portugal, Torre do Tombo, 18-6-1360 - ANTT.

      «Ora, assim é, que emquanto Dona Ignez foi viva, nem depois da morte d'ella emquanto el-rei seu padre viveu, nem depois que elle reinou até este presente tempo, nunca el-rei Dom Pedro a nomeou por sua mulher; antes dizem que muitas vezes lhe enviava el-rei Dom Affonso perguntar se a recebera, e honral-a-ia como sua mulher, e elle respondia sempre que a não recebera, nem o era

      In Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes, Capítulo XXVII (Como el-rei Dom Pedro de Portugal disse por Dona Ignes que fora sua mulher recebida, e da maneira que em ello teve.)

     A bula de João XXII foi apresentada como prova ao longo dos séculos pelos mais diversos autores. Alguns copiam apenas Fernão Lopes ou Rui de Pina. Eis o texto da bula numa versão do século XVIII, legitimada pela Real Academia da História:

     «(…) e à ſua viſta deo conta o Conde de Barcellos de todo este facto com as circunstancias, que nelle houve, e para tirar algum escrupulo, que podesse haver nesta materia, leo a Bulla da Santidade de Joaõ XXII. dada em Avinhão aos 18. de Fevereiro do nono anno do ſeu Pontificado, que he o de 1325. pela qual o dispenfava para contrahir matrimonio com parenta sua, ainda que fosse no grao mais chegado. A copia da dita BulIa tirada da Chronica del Rey D. Pedro, que escreveo Ruy de Pina no cap. 26. he a que se segue:

     Joanne Biſpo servo dos servos de Deos. Ao muito amado filho Infante D. Pedro primogenito do muito amado em Christo nosso filho muy caro Rey de Portugal, e do Algarve Affonso saude, e apostolica bençaõ. Se o rigor dos Santos Canones poem defeza, e interdito sobre a copula do matrimonial ajuntamento, querendo que se não faça entre aquelles que por algum devido de parentesco são conjuntos para guarda da publica honestidade: aquelle porém, que he às vezes Bispo De Roma, de poderio absoluto (em lugar de Deos)  dispensando pode por especial graça poer temperança sobre tal rigor. E porém Nós demovido acerca de tua Pessoa com especial favor; com algumas rezoens, de que adiante esperamos paz, e folgança com esses Reynos: querendo condescender a tuas preces, e del Rey D. Affonso teu Padre, que por tuas preces por ti a Nós humildosamente suplicou para cazares com qualquer nobre mulher devota à Santa Igreja de Roma, ainda que por linha transversa de huma parte no segundo grão, e de outra no terceiro sejais dividos, e parentes. E isto ainda mesmo que por rezão de outras linhas colaterais seja embargo de parentesco, ou cunhadío antre vós no quarto grão licitamente por matrimonio vos podeis ajuntar. Nós por apostolica authoridade de especial graça todo tiramos, e removemos, e dispensamos contigo, e com aquella, com quem assim cazares de nosso apostolico poderio, que a geração, que de vós ambos nacer, seja lidima sem outro impedimento. Porém nenhum homem seja ouzado presumtuosamente contra esta nossa dispensação hir. Doutra guisa certo seja na ira, e sanha do todo poderoso Deos, e dos Bemaventurados S. Pedro, e S. Paulo Apostolos encorrer. Dada em Avinhão aos doze das Calendas de Março do nosso pontificado anno nono

(in Catalogo chronologico, historico, genealogico, e critico, das rainhas de Portugal, e seus filhos, D. José Barbosa, Academia Real da História Portuguesa, Na Officina de José António da Silva, Lisboa, 1727, págs. 311-312)

     Note-se a disparidade nas datas: “18 de Fevereiro de 1325” ou “doze das Calendas de Março”?

     Por acaso ou não, esta bula é datada “aos doze das calendas de Março”, pormenor bem divertido, já que a expressão “ficar para as calendas gregas” remete para algo que nunca existirá, uma promessa não cumprida ou impossível de cumprir. Os Romanos tinham no seu calendário as “calendas” (étimo que originou a palavra calendário) e os “idos”, mas não os Gregos. Para estes não havia calendas; as calendas eram um tempo que nunca chegaria a existir… O ano nono do pontificado de João XXII foi o ano de 1325 (quando D. Pedro tinha 5 anos); o ano nono do pontificado de Inocêncio VI foi o ano de 1361 (sensivelmente na mesma altura em que D. Pedro faz a declaração de Cantanhede). Inocêncio VI recusou o pedido de dispensa que D. Pedro terá de facto feito. Seja como for, a bula apresentada por D. Pedro em Cantanhede responde a um pedido de facto feito por D. Afonso IV para casar D. Pedro, com D.ª Branca (depois repudiada) ou com D.ª Constança, mas não certamente com D.ª Inês.

Casamento Clandestino de D. Pedro e D. Inês - desenho de Charles-Abraham Chasselat, 
gravado por J. Duthé.


LENDA & HISTÓRIA I

 Pedro & Inês

ENTRE A LENDA & A HISTÓRIA

     Os amores de D. Pedro I e de D.ª Inês de Castro ficaram gravados na memória popular e na Literatura como símbolo do amor eterno, um amor maior do que a vida e a morte. É pelo menos essa a perspectiva adoptada na lenda e na maioria das obras literárias. A História, por seu lado, revela factos que em muito contradizem a Lenda e a Literatura. Na lenda popular e nas páginas literárias, tanto Pedro como Inês surgem como seres imaculados, vítimas da perfídia alheia, incapazes de qualquer maldade, conduzidos apenas pelo amor. Um amor que se torna maior também porque é proibido, condenado pela autoridade paterna de D. Afonso IV (pai de D. Pedro) e por todos os que colocavam a segurança e a preservação da nação acima de todas as coisas.

     Poucos são os autores que escreveram sobre os amores reais de Pedro e Inês, sobre as pessoas de carne e osso, sobre a psicologia oculta sob os actos individuais ou que nomeiam e elucidam as motivações políticas que se escondem por trás do assassinato de D.ª Inês de Castro. Isso significaria destruir uma das mais belas e imortais histórias de amor. Quem ler as crónicas históricas e algumas monografias e biografias de D. Pedro e de D.ª Inês pode até ficar baralhado. Como é que D. Pedro, homem de carácter doentio, propenso à violência desmedida, obcecado com a punição dos “pecados da carne”, hipocritamente moralista, pode ser considerado um símbolo de um amor maior? Causa um arrepio pensar que a aceitação tácita ou até a apologia de tal carácter e forma de actuar parece corresponder a um paradigma de algo doentio na identidade nacional e na forma como se abordam e toleram certos “crimes passionais” como se fossem naturais e justificáveis. E chega a ser estranha a forma como alguns autores, incluindo historiadores, tentam conciliar lenda e história. É difícil, para não dizer absurdo, descrever num parágrafo algumas das atrocidades mais perversas cometidas por D. Pedro e, mais adiante, descrevê-lo como um ser “bom, generoso e justo”. A pessoa que sentia um prazer mórbido em torturar e executar homens e mulheres é a mesma que era, de facto, muito generosa com os seus fiéis servidores, cúmplices e mancebas. D. Pedro tem, de facto, facetas muito contraditórias que seriam até consideradas incompatíveis num ser são e equilibrado. Só um ser psicótico pode ser dividido desta forma e sempre com a noção de que se trata de facto de um caso patológico. Uma face tenta branquear ou ocultar a outra. No entanto, não há seres bons entre as dez e o meio-dia e maus durante o resto do dia; todas as acções vêm da mesma mente, do mesmo eu, consciente e responsabilizável. A Lenda, a Literatura e até a História têm usado uma dualidade de critérios éticos, talvez até de forma inconsciente, criando monstros onde eles não existem e ocultando monstros onde eles existem de facto. Cruzar a Lenda, a Literatura e a História ajuda a evitar estes extremos e a destrinçar interpretações subjectivas e interesses políticos e pessoais dos factos (aqueles que se conhecem).

Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'.

     Embora considere a verdade como o valor máximo em todos os domínios da vida, eu própria (como professora) sempre falei com alguma contenção sobre esses factos ocultos ou habitualmente relegados para um plano muito secundário. A história de amor, tal como a Literatura a apresenta, é em si mesma um valor e um símbolo. Quem souber distinguir a História da Lenda, poderá ler / ouvir os factos e continuar a tomar a lenda como símbolo e inspiração. Mas normalmente, os mais jovens não estão preparados para fazer esta distinção e chegam a sentir-se enganados pela bela Lenda e pela Literatura. Ou então ficam muito zangados com o mensageiro que lhes trouxe a verdade ou lhes mostrou outra face da moeda.

     Tanto D. Pedro I como D.ª Inês de Castro estão longe de ser dois seres puros e imaculados. Os amores de Pedro e Inês são adúlteros e destrutivos desde o início, facto muito comum na época e tacitamente aceite por muitos, mas apenas no que toca ao adultério masculino, sobretudo nos estratos sociais mais elevados. A traição e a poligamia eram toleradas e até consideradas naturais no homem mas inaceitáveis nas mulheres. D. Pedro, que foi um rei adúltero desde que casou com D. Constança, foi também o rei que puniu de forma mais raivosa e violenta o adultério (cf. Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes). D. Pedro tinha no sangue a mesma propensão para a infidelidade que o seu avô, D. Dinis que ― a par do seu bisavô, D. Afonso III, e de D. João V ― foi daqueles que teve maior número de barregãs e de filhos naturais (bastardos).

     Note-se que os filhos naturais ou bastardos da realeza e da nobreza tinham, regra geral, um destino muito diferente dos enjeitados colocados na Roda dos Expostos. Os primeiros eram tão ou mais favorecidos do que os filhos legítimos, causando revolta, conflitos e guerras (como aconteceu com D. Afonso IV e D. Dinis por este favorecer desmedidamente Afonso Sanches, filho bastardo e predilecto, em detrimento do filho legítimo, D. Afonso IV, embora essa não tenha sido a única causa do conflito). As crianças “enjeitadas”, que tanto podiam ser filhos dos poderosos, dos humildes ou de membros do clero, regra geral, eram colocadas na Roda dos Expostos e recolhidos por orfanatos e instituições religiosas. Raras vezes estes “enjeitados” eram criados e protegidos por alguém rico e poderoso, excepto quando o “enjeitado” não era afinal filho de pais anónimos e pobres, mas de algum(a) notável que fingia uma enorme generosidade no acto de adoptar um(a) filho(a) que afinal era seu.

     O adultério de D. Pedro com D.ª Inês era condenado pela corte e pela maioria dos nobres por representar uma ameaça para a independência e estabilidade do reino, não por razões morais. Mas era bem aceite por uma parte considerável do povo, pelo menos até ao momento em que a ambição desmedida dos irmãos Castro se tornou mais notória. Esta simpatia popular resulta de características e comportamentos paradoxais de D. Pedro: por um lado, D. Pedro era um folgazão que adorava festas, danças, música e grandes caçadas; por outro lado, era um justiceiro sanguinário que tanto punia o plebeu como o poderoso.

     Esta combinação de barbárie e “justiça” férrea com a folia parecia agradar a uma parte do povo daquele tempo. Hoje, até poderíamos pensar naqueles políticos demagogos e populistas que mantêm o povo submisso e contente com umas migalhas de pão e circo, usando a retórica fácil para manipular e agradar, mesmo que a corrupção grasse por toda a parte e essa base popular se mantenha paupérrima e sem esperança à vista. Mas havia também uma parte do povo que não apreciava a relação perigosa entre D. Pedro e uma dama que consideravam leviana, ambiciosa e maquiavélica. Esta opinião negativa ficou plasmada em adágios populares que mencionam explicitamente o nome de D.ª Inês, como há outros de semelhante teor sobre D.ª Leonor Teles (mulher de D. Fernando, filho de D. Pedro I): «Inês! Às três o Diabo fez e Inês é morta!»… Como se a morte de Inês fosse a consequência natural do seu pacto com o diabo. (cf. O Grande Livro dos Provérbios, José Pedro Machado).

Escena de la obra de teatro de la CNTC/ Teatro de Almada, 'Reinar después de morir'.
 

 SERES POUCO IMACULADOS

      D.ª Inês Pires de Castro (1325-1355), dama galega, filha bastarda de D. Pedro Fernandes de Castro (mordomo-mor do rei Afonso XI de Castela) era parente e uma das aias de D.ª Constança Manuel (a legítima esposa de D. Pedro, filha de D. João Manuel, tutor do mesmo Afonso XI de Castela).

     Afonso XI viria a ser cunhado de D. Pedro I, já que casou com a sua irmã mais velha, D.ª Maria de Portugal, a Formosíssima Maria, 1313-1357, rainha de Castela, também maltratada e repudiada pelo marido em prol de uma das concubinas, Leonor de Gusmão. Antes de repudiar D.ª Maria de Portugal, Afonso XI já tinha repudiado D.ª Constança Manuel (que viria a ser mulher de D. Pedro) e D. Pedro já repudiara D.ª Branca de Castela, 1319-1375. Afonso XI também já tinha quebrado um contrato matrimonial com D. Branca e assassinou o tio desta, João de Haro, o Torto, que deveria ter-se tornado seu marido. Além disso, apropriou-se dos muitos bens de D.ª Branca e distribuiu-os pelos seus filhos bastardos, tidos com Leonor de Gusmão. Após a morte de Afonso XI, D. Maria de Portugal manda matar Leonor de Gusmão, não por motivos passionais mas por motivos políticos; os bastardos de Afonso XI e de Leonor de Gusmão tentavam usurpar a coroa, e conseguiram, quando Henrique de Trastâmara mata D. Pedro I de Castela, filho de D. Maria de Portugal e legítimo herdeiro do trono castelhano.

D. Pedro I (o Justiceiro) por José Lopes Júnior (1790-1863), Lisboa, 1841.

     Consta que, desde o início, D. Pedro se terá apaixonado por D.ª Inês e terá desde logo estabelecido uma relação amorosa com ela. Ainda assim, aceita casar com D.ª Constança, respeitando o contrato matrimonial previamente estabelecido por seu pai, D. Afonso IV. D. Pedro, um homem tão determinado e aguerrido noutras situações, não teve coragem para recusar o casamento com D.ª Constança, tal como já tinha recusado casar com D.ª Branca de Castela (recusa partilhada por D. Afonso IV), por esta ser considerada “imbecil” e frágil. Justificação curiosa que soa falsa, pois logo em seguida D.ª Branca foi nomeada senhora do Mosteiro de Santa María la Real de Las Huelgas, em Burgos, instituição que dirigiu até à sua morte. Este mosteiro era o mais importante de Castela na Idade Média; estava reservado às donzelas e senhoras nobres e possuía uma das melhores bibliotecas da época, que continha até obras proibidas pelo índice expurgatório.

     D.ª Constança Manuel (1316-1345), que já passara também pela humilhação de ser repudiada por Afonso XI de Castela, após dois anos de casamento, humilhação e clausura, não tinha qualquer escolha. As decisões respeitantes ao matrimónio eram tomadas pelos pais quando as crianças eram ainda de tenra idade. Não foi exactamente o caso de D.ª Constança, neste segundo casamento, quando já tinha cerca de 23 anos (D. Pedro, 1320-1367, tinha apenas 19 anos e D.ª Inês tinha 15 ou 16). Mas foi o caso do próprio D. Afonso IV (1291-1357) que casou com D.ª Beatriz de Castela (1293-1359) em 1309, quando tinha apenas 18 anos e o contrato matrimonial já estava estabelecido desde os seus seis anos de idade.

     Como era hábito, após a assinatura do contrato matrimonial, a futura mulher, D.ª Beatriz, veio para Portugal com apenas 4 anos (tinha D. Afonso 6) e foi criada pelos futuros sogros, sobretudo por D.ª Isabel de Aragão (mulher de D. Dinis). Assim, D. Afonso IV e D.ª Beatriz cresceram juntos desde a mais tenra idade. O casamento durou até à morte (48 anos de vida comum) e, que se saiba, D. Afonso IV (além de D. Sancho II e do Cardeal D. Henrique) foi o único rei de Portugal que não teve uma única “barregã” ou “manceba” (amante). Por que será que ainda ninguém se lembrou ainda de escrever uma obra sobre este verdadeiro e eterno amor? Talvez porque não fez correr sangue, não foi violento, não destruiu a vida de ninguém e não constitui um motivo literário atractivo como, regra geral, acontece com as tragédias.

D. Beatriz de Castela, mulher de D. Affonso IV por Roque Gameiro.


D. Afonso IV por Roque Gameiro.

     D.ª Constança Manuel, mulher já sofrida e desgastada, tinha uma saúde muito débil, agravada com o sofrimento permanente que lhe causava a pública infidelidade de D. Pedro. Após o casamento, só durou mais cinco anos; morreu cerca de duas semanas após dar à luz o futuro rei D. Fernando (1345). Antes, já fora mãe de D.ª Maria (de Aragão) que casou com D. Fernando de Aragão e do infante Luís de Portugal, que morreu uma semana após o nascimento.

     Cerca de um ano após a morte de D.ª Constança, D. Afonso IV ainda tentou casar D. Pedro de novo com uma ou outra dama da corte portuguesa, aragonesa ou castelhana, mas D. Pedro recusou, alegando não ter feito ainda o luto da sua mulher (D. Constança) o que soava a pretexto falso uma vez que mantinha uma relação amorosa com D.ª Inês desde que esta chegara com D.ª Constança.

     Este carácter evasivo e dissimulado contrasta com a determinação que assumiu posteriormente quando travou uma guerra civil de puro ódio destrutivo contra o pai (D. Afonso IV), os nobres e o povo que se lhe opôs ou quando assistiu à tortura e execução perversa dos supostos assassinos de Inês (Álvaro Gonçalves e Pero Coelho) enquanto comia deliciado (cf. Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes). Torturou-os, mandou arrancar-lhes o coração enquanto vivos, queimou-os depois e, não satisfeito com a barbárie, ainda terá dado umas dentadas em cada coração ensanguentado. Para o coração de Pero (ou Pedro) Coelho terá até pedido sal e cebola… Tais actos evocam a imagem de uma espécie de Hannibal Lecter medievo coroado (O Silêncio dos Inocentes, Jonathan Demme, 1991), só que o nosso monarca, em vez de ser julgado um psicótico sádico e amoral, é venerado e tornou-se símbolo nacional da justiça e de um amor maior do que a própria vida…

     Incomoda a imagem extremamente positiva que a maioria dos cronistas e escritores dão de D. Pedro, incomoda a forma como os actos mais bárbaros são justificados e até elogiados, incomoda a forma como D. Afonso IV é denegrido, incomoda a forma como o estatuto ou a linhagem do sangue se sobrepõe aos actos. Mas esta foi apenas uma das execuções sanguinárias a que assistiu ou executou com as próprias mãos, sempre possuído por um furor sádico, vingativo e insaciável. A este rol de crueldades chamaram muitos “justiça” e a lenda que se construiu é cúmplice desta terrível visão da Justiça. Não foi em vão que lhe atribuíram o cognome de Cru ou Cruel (e também o de Justiceiro), mas quando se conhecem os factos, incomoda profundamente que se atribua uma conotação positiva a tais epítetos. Houve até alguém (William Thomas Beckford, 1760 – 1844) que lhe chamou “Pedro, o Justo”!

D. Afonso IV.

     Embora D. Pedro se tenha comprometido com o seu pai, D. Afonso IV, através da assinatura da Paz de Canaveses (5 de Agosto de 1355), a perdoar e não perseguir os que tinham estado envolvidos no assassinato de D.ª Inês, logo que o rei morreu, D. Pedro dedicou-se inteiramente a uma vingança cega e cruel. Estabeleceu com D. Pedro I de Castela um pacto vergonhoso que previa a troca dos conselheiros de D. Afonso IV, que se tinham refugiado em Castela, a conselho do próprio rei que conhecia bem o íntimo violento do filho, por quatro fidalgos castelhanos que se tinham exilado em Portugal para escapar à sanha vingativa do outro Pedro, o Cruel, sobrinho de D. Pedro I de Portugal. Diogo Lopes Pacheco conseguiu escapar, mas os outros dois foram capturados, torturados e executados de forma hedionda. Mais uma vez, D. Pedro colocou acima de tudo o seu egoísmo e a sede de sangue e vingança. A violência de D. Pedro foi ainda exacerbada pela dignidade dos conselheiros capturados que se mantiveram em silêncio e de cabeça erguida, apesar da idade já avançada e de terem passado cinco dias sem comer. Esse amor incondicional a Portugal, D. Pedro não o compreendia. O seu amor ao reino prendia-se mais com o prazer de ser adorado por uma parte do povo e de impor a sua vontade por todos os meios.

     Os dois conselheiros de D. Afonso IV que foram presos, Álvaro Gonçalves (que fora meirinho-mor) e Pero Coelho (que fora aio e tutor do próprio D. Pedro), apesar das torturas horríveis a que foram sujeitos, nunca confessaram ser os autores do assassínio e compreende-se porquê: porque queriam acima de tudo preservar a soberania nacional; porque queriam salvaguardar a honra do rei D. Afonso IV, a quem tinham sido sempre fiéis; e porque não foram certamente eles os executores materiais do assassínio. Essa tarefa era sempre deixada a pessoas de “baixa condição”, um carrasco ou algoz oriundo do povo. D. Pedro foi, provavelmente, o único rei português que torturou e executou com as próprias mãos.

     D. Pedro dedicava-se a uma “justiça” preventiva que infundia terror e, contraditoriamente, adoração. Tanto lhe importava o crime deveras cometido como a possibilidade de vir a ser cometido. Pelo terror impunha a ordem e consolidava o poder, tal como qualquer déspota. A este propósito, diz Fernão Lopes:

     «E quando lhe diziam que punha mui grandes penas por mui pequenos excessos, dava resposta dizendo assim, que a pena que os homens mais receavam era a morte, e que se por esta se não cavidassem de mal fazer, que às outras davam passada, e que boa cousa era enforcar um ou dois, pelos outros todos serem castigados, e que assim o entendia por serviço de Deus e prol de seu povo.» (in Crónica de D. Pedro I, Fernão Lopes)

D. Inês de Castro - retrato por Frank Stone, 1800-1859.