quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

TEATRO NA ESCOLA XXXII

 

LÍNGUA PRIMEIRA

COCO – Adaptação do filme Coco da Disney / Pixar. Interpretação: alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo (12.º 13) da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa. Encenação: Gonçalo Barata. Captação de imagem e edição de vídeo: São Ludovino. Apresentação pública de 28/1/2020.

Coco (Disney / Pixar, 2017), realização de Lee Unkrich e Adrian Molina, ganhou o Óscar de Melhor Filme de Animação.

     Outro filme levado ao palco, outra descida ao mundo dos que já partiram, outra aventura, outra ousadia que podia correr mal, mas correu bem, muito bem. A acção do filme decorre em múltiplos espaços fictícios, transpostos para três espaços cénicos fundamentais: o átrio do Auditório, o palco propriamente dito (divido em vários espaços destinados a cenas específicas) e as escadas da plateia. O espectador começa por acompanhar a performance ainda antes de entrar no Auditório e de se sentar. Entra, ao som de música popular mexicana, como quem entra no pátio de uma casa em festa: a comemoração anual do Dia dos Mortos em que se recordam os entes queridos que já partiram. No átrio do Auditório, o público toma contacto com Miguel, o miúdo que protagoniza a acção, e com os antecedentes da acção principal (flashback) e também o destino final de algumas personagens (Ernesto de la Cruz, a grande estrela, morre esmagado por um sino gigante enquanto recebe os aplausos do público). Serve este episódio de aviso: cuidado com a forma como “agarras o momento”. Às vezes “agarrar o momento” significa perder tudo, incluindo a própria vida. 


Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

     Coco não é apenas uma história sobre a força e a permanência dos verdadeiros afectos, é também uma história sobre o preço da fama, sobre os métodos para a alcançar e as suas consequências. São estes dois fios condutores (a fama e o modo como se conquista) que se entretecem no desenrolar da acção unidos por um fundo comum, a música, a memória e o amor. Foi a música que separou a família, foi através da música que Ernesto de la Cruz quis “agarrar o seu momento” e conquistar a fama, é a música que traz a alegria às pessoas simples da aldeia de Miguel ― usam-na para conviver, festejar e até para lembrar os entes queridos ― e é a música que conduz Miguel ao mundo dos seus antepassados para resgatar a verdade e fazer vencer o amor.

    Ernesto de la Cruz revela ser um ídolo com pés de barro que não tem talento nem honra, um indivíduo egoísta e ambicioso que não olha a meios para atingir os seus fins, a fama. Mata o verdadeiro autor das canções (Hector, pai da Mama Coco) que lhe deram celebridade e goza a fama sem quaisquer remorsos. A verdade por trás da fama de Ernesto de la Cruz deixa a nu o jogo de aparências e a credulidade do público. Não há fama sem público. É o reconhecimento de milhares que permite que alguém seja colocado num pedestal. A imagem e o marketing são as ferramentas fundamentais, hoje mais que nunca. A comunicação rápida e fácil espalha e consagra o talento, mas também a falta dele. Nessa teia de imagens e sons, o espectador-ouvinte pode ser cúmplice da farsa ou ajudar a desmontá-la. Os espectadores / ouvintes de Ernesto de la Cruz eram igualmente crédulos e manipuláveis.

     O absurdo desta fama infundada reside sobretudo no facto de, mesmo após a morte, Ernesto de la Cruz continuar a ser uma estrela; continuou a brilhar e a ser idolatrado enquanto a verdade não foi revelada. É Miguel, o miúdo que ama verdadeiramente a música e é talentoso, que tem nas veias o sangue do seu trisavô, Hector, que desmascara Ernesto e mostra que “agarrar o momento” exige mais do que uma imagem esplendorosa e fútil.  

     Miguel faz a sua viagem ao mundo dos mortos para resgatar o trisavô do esquecimento, mas também para devolver a música à sua família, de onde tinha sido banida após a partida daquele em busca da fama. Em vez da fama, Hector encontrou a traição e a morte.


Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

     É também através da música e das canções que Miguel consegue provar à Mama Coco que nunca fora esquecida e que, sem, saber, também lembrava: “Lembra-te de mim”. Quando Miguel começa a cantar esta canção, composta para ela pelo seu pai Hector, a Mama Coco acompanha-o espontaneamente como se nunca tivesse deixado de a cantar; a memória da sua infância regressa e traz-lhe de volta o amor e a alegria.

      A música preserva a memória, lembra e faz lembrar. A memória ajuda a construir a fama; a fama morre com o esquecimento. A memória faz parte do amor e da vida; só quem lembra permanentemente ama deveras. Uma das cenas mais perturbadoras é, por isto mesmo, aquela em que percebemos que ser esquecido é não ser amado e vice-versa. O velho músico, que entrega a guitarra a Miguel, volta a morrer uma segunda vez, morre verdadeiramente, quando foi esquecido por aqueles que o conheceram em vida. O trisavô de Miguel também está prestes a morrer definitivamente quando Miguel o encontra porque a velhinha Mama Coco está prestes a esquecê-lo completamente. É a música e a fabulosa viagem de Miguel que traz de volta a memória, o amor e a música.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

     Pôr de pé um espectáculo com uma produção tão complexa foi um grande desafio para o encenador, Gonçalo Barata, e para os jovens intérpretes, finalistas do Curso Profissional de Artes do Espectáculo. Foi necessária uma coordenação perfeita entre todos para ordenar tantas cenas, entradas e saídas, mudanças de espaço e de cenário, a música e o silêncio, a luz e a penumbra. O espectador foi arrancado da sua habitual passividade de receptor e teve de mover-se, de voltar a cabeça, de procurar a origem da voz ou da luz, de antecipar o que viria a seguir. É uma performance que se vê melhor à segunda vez; da primeira vez, o inesperado foi mesmo inesperado e escapou a alguns, incluindo a mim. Inesperado, dinâmico e muito exigente do ponto de vista da coordenação, este espectáculo merecia de facto ser visto mais vezes, dentro e fora da escola. Uma grande vénia para todos os construtores deste espectáculo meticulosamente inesperado. 

Coco - Encenação de Gonçalo Barata

COCO - Rehearsal & Breaks - phot. & video by São Ludovino


     A história que se segue (Língua Primeira) inspira-se na Mama Coco, mas mais ainda na sabedoria misteriosa dos velhos, sobretudo quando observada pelos olhos de uma criança.  

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LÍNGUA PRIMEIRA  

       No livro de receitas, o único livro que possuíra em toda a sua vida, a avó anotava tudo o que considerava importante: como fazer pão de milho, como tricotar um casaco, como cozer um sapato, as melhores histórias e adivinhas, as palavras bonitas ou sábias que ouvira aqui ou ali, um Verão em que não choveu um único dia, o florescer da laranjeira no quintal, os primeiros passos e as primeiras palavras dos filhos e netos. E tantas, tantas outras coisas comuns e extraordinárias que preenchem os dias.

     Certo dia, quando dormitava na cadeira de baloiço, colocada à sombra numa das extremidades do alpendre, o neto mais novo veio sorrateiramente e pegou no livro de receitas da avó. Claro que não era um livro impresso, era um caderno com folhas lisas que a avó preenchera ao longo de muitas décadas. Aquele livro era para Ruiz um grande mistério. A avó nunca se separava dele, não deixava que ninguém o lesse e usava-o sempre nos momentos importantes. Houve tempos em que chegou a pensar que a avó era uma espécie de feiticeira que anotava ali todos os segredos de magia. Porque ela fazia mesmo magia. Ele já vira muitas vezes com os seus próprios olhos.

     Naquele Verão em que não choveu, a avó andava muito apreensiva, sempre a olhar para o céu e a proferir palavras que mais ninguém entendia. Um dia, quando o mês de Setembro ia já a meio, a avó levantou-se a meio da noite e foi para o pátio acompanhada pelo seu livro de receitas. Ruiz também andava inquieto e acordava muitas vezes de noite. Ia à janela, via o céu limpo e as estrelas a cintilar. Por instantes ficava maravilhado e calmo. Mas logo que se deitava, a inquietação voltava. Com aquele céu sempre limpo nunca iria chover. Será que não voltava a chover nunca mais? Era uma ideia assustadora. Por isso dormia a sono solto na esperança de ouvir lá fora a canção da chuva.

     Naquela noite não ouviu o cair da chuva mas os passos da avó que fizeram ranger as tábuas do alpendre quando desceu para o pátio. Sem fazer barulho, ele levantou-se e foi pôr-se à janela, muito discretamente escondido atrás da cortina de renda que a avó fizera. Lá estava ela, toda iluminada pela Lua, de braços abertos, com o livro de receitas numa das mãos, a olhar para o céu. De vez em quando, apertava contra o peito o caderno de capa gasta e proferia baixinho uma oração, uma fórmula mágica, uma canção, uma história, um poema ou sabe-se lá o quê. Esteve assim várias horas, enquanto a Lua continuava a descer para Oeste até tocar as montanhas distantes. Enquanto este ritual durou, a Lua foi mudando de cor; de azul passou a amarela, depois a rosa até ficar quase vermelha e parecer um pequeno sol perdido na noite.

     Quando terminou, a avó parecia exausta mas muito calma. Voltou para dentro e foi deitar-se. Ruiz ficara completamente sem sono e decidiu ir ele para o pátio. Sentou-se numa pedra junto à laranjeira e assim ficou a perscrutar o céu enquanto a Lua se escondia pouco a pouco atrás das montanhas. O luar ia-se entrelaçando com a primeira luz da manhã anunciando um novo dia. E que dia espantoso! 

     Antes de os primeiros raios de Sol desenharem a sua sombra no chão, Ruiz viu um enorme bando de pássaros aproximar-se. Vieram pousar nas árvores em redor do pátio. Alguns decidiram instalar-se na laranjeira e chilrear numa conversa animada. Nada de extraordinário. Todos os dias acordava com o chilrear dos pássaros no pátio. Nunca apontara uma fisga a um pássaro, não porque a avó ficaria muito magoada, mas porque lhe parecia uma enorme maldade matar seres que assim de forma tão harmoniosa o acordavam para um novo dia. O que foi diferente nessa manhã é que ele estava ali, entre os pássaros, e não deitado na sua cama.

     Os pássaros desceram dos ramos e vieram chilrear nos beirais, nos peitoris das janelas, no alpendre, no chão mesmo aos seus pés. Não tinham medo, pareciam sorrir e cantavam suavemente. Por fim levantaram todos, voaram em redor da sua cabeça e voltaram a desaparecer atrás das copas das árvores mais altas. Absorvido pela dança dos pássaros, não viu o exacto instante em que o Sol surgia por trás das montanhas. Vinha envolto numa auréola branca e azulada. Quando olhou, sentiu vontade de gritar mas a voz não saía. Nuvens, eram nuvens que nasciam com o Sol. Em breve a ténue auréola foi-se adensando como uma longa cabeleira que se estendia pelo céu.

     Sem conseguir esperar mais, correu para casa aos gritos. «Nuvens, nuvens! As nuvens voltaram! Vieram com o Sol da alvorada!» Em breve todos estavam a pé e seguiam-no até ao pátio. Ainda tiveram tempo de ver o grande olho luminoso piscar entre a longa cabeleira. Depois, o Sol desapareceu por completo e todo o céu era um tecto promissor. A primeira gota tocou os lábios de Ruiz. Saboreou-a como um delicioso néctar. A avó abriu os braços de par em par e pronunciou mais uma daquelas melopeias que ninguém entendia. Estampado na cara tinha o mais belo sorriso que lhe vira.

     Desde esse dia, Ruiz passou a olhar a avó como um ser que não era inteiramente deste mundo. «Foi ela!» pensou, «Foi ela que trouxe as nuvens, trouxe a chuva! A terra vai ficar fértil de novo, vamos ter flores e uma horta cheia de legumes!»

     Passaram três anos desde esse dia e desde então Ruiz tinha um objectivo mais importante do que todos os outros: ler o livro de receitas da avó. Qual seria a receita para fazer chover?

     Hoje a avó dormia serenamente no alpendre e o caderno estava logo ali em cima do parapeito da janela. Chamava-o: «Vem, vem ler-me, se fores capaz. Vem descobrir os meus segredos…» 

     Antes de o abrir, respirou profundamente, preparando-se para a grande aventura e revelação. Na folha de rosto havia uns desenhos estranhos, pareciam plantas-animais ou talvez fosse o contrário. As folhas e as flores tinham olhos e boca e os animais tinham pernas de ramos e cabelos de algas e conchas. Também havia estrelas e palavras soltas que não conseguia decifrar, excepto o título escrito no centro: Livro de Receitas. Preparou-se então para a primeira página. De novo respirou profundamente e voltou a página. Mais desenhos e frases escritas naquela linguagem que não entendia. Não sabia que a avó desenhava, desenhava de uma forma belamente imperfeita. Não sabia o que significavam aqueles desenhos, apenas lhe pareciam belos e cheios de vida. Havia árvores cobertas de sóis e luas, pássaros com asas de gotas, flores entrelaçadas com figuras humanas, o vento inclinando a erva, uma casa feita de conchas e folhas, um caminho seguindo para o mar…

     Continuou a voltar as páginas e o espanto prosseguia até que eram já as páginas que se voltavam sozinhas e ele estava lá dentro, rolando pela erva fresca, sentindo o vento nos cabelos, molhando os pés à beira mar, chilreando nos ramos de uma árvore, atravessando montanhas, tocando as nuvens, caminhando entre as estrelas.

     Assim esteve muito tempo. O Sol descia suavemente atrás das montanhas e as sombras alongavam-se e tocavam-se numa saudação cordial. Sem dar por isso, o caderno descaiu-lhe sobre os joelhos e olhou o chão. Ao lado da sua sombra adivinhou a sombra da avó. Estava de pé atrás dele. Não tinha um ar zangado nem ralhou com ele. Apenas estendeu a mão e ele devolveu-lhe o caderno.

     ― O que aprendeste hoje de novo, Ruiz? Todos os dias aprendemos coisas novas. Hoje eu aprendi que chegou o momento de te revelar algumas páginas deste caderno. Agora que já viste o que há lá dentro, o que aprendeste, o que compreendeste do que viste? ― Perguntou a avó com toda a serenidade.

     ― Bem, não sei bem o que aprendi porque não percebi quase nada mas sei que gostei muito e que gostava de compreender. Que língua é essa em que escreves e falas às vezes? ― Inquiriu Ruiz.

     ― É a minha verdadeira língua, a primeira que aprendi logo que comecei a falar. Todas as crianças aprenderam essa língua. Só mais tarde, fomos obrigados a aprender esta língua que todos falam… uma língua de esquecimento, uma língua fronteira que nos separou das origens. Falávamos com as árvores e elas entendiam, falávamos com os pássaros e eles chilreavam de volta, falávamos com as nuvens e o vento e eles dançavam e cantavam em nosso redor… Mesmo calados, falávamos com o Sol e a Lua e eles respondiam com um brilho que dos olhos passava à alma e lá ficava a fazer-nos crescer.

     ― Avó, tu pareces tão sábia… quando crescer, quero ser como tu…

     ― Deseja antes ser simples como eu… Essa será a melhor maneira de seres sábio!

     ― Mas, diz-me, avó, o que se passou naquela madrugada daquele Verão quente e seco quando tudo parecia estar a morrer… Tu trouxeste as nuvens, sei bem que foste tu… Fizeste chover e tudo voltou a brilhar…

     ― Enganas-te. Não fui eu que fiz chover. Eu só falei com as estrelas e o esquecimento. É preciso falar sempre com o esquecimento. Se falares com ele, torna-se memória que nada esquece e tudo abarca. As estrelas nunca esquecem, sabes. Quando quiseres devolver a vida a alguma coisa tens de falar com as estrelas. Elas lembram-se de tudo e de todos… Mesmo que tu te esqueças, elas vão lembrar-se. Eu nunca deixei de falar com as estrelas… por isso me lembro ainda da minha língua primeira.

     ― Mas como podem ouvir-te as estrelas e compreender a tua língua… Tu vieste das estrelas? Foi lá que aprendeste essa língua?

     ― As estrelas não estão sós, sabes. Estão povoadas de muitos seres, seres que estiveram aqui, ali, além… Um dia, também tu hás-de caminhar pelas estrelas… Será daqui a muito, muito tempo e eu estarei lá para te receber. Caminharemos por um grande livro que contém toda a história do mundo escrita em muitas línguas e tu vais compreendê-las todas… Foram eles, os que moram agora nas estrelas que trouxeram as nuvens do mar até aqui…

     ― Mas onde é que eles estão que não os vejo?

     ― Há muito mais do que aquilo que podes ver… Não podes ver o vento, mas ele pode segredar-te muitas coisas ao ouvido… Não podes ver as nuvens que estão para lá das montanhas, mas elas estão agora mesmo a refrescar outras terras, não podes ver o Sol quando adormece mas está acordado do outro lado do mundo, não podes ver a vida quando cais no sono, mas continuas vivo e tudo continua a existir…

     ― Que bonitas que são aquelas nuvens avó! Foram também eles que as trouxeram?

     ― Foi a Mãe Natureza, é ela o elo entre todas as coisas… As estrelas são tão naturais como as gotas de água, como o teu espanto de criança ou os meus cabelos brancos…

     ― Avó, promete-me que nunca te vais esquecer dessa língua que te faz falar com tudo…

     ― Prometo! Ela não me deixaria esquecer mesmo que eu quisesse… É a língua do amor que une todas as coisas belas e essenciais… e eu nunca deixei de amar…

São Ludovino, 21/4/2020

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Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.

Coco - Rehearsal & Breaks, photography by São Ludovino.


Encenação / Staging

Gonçalo Barata

Elenco / Cast

Adriana Loureiro
Ana Martins
Beatriz Carvalho
Cátia Castanheira
Diana Sardinha
Diogo Pereira
Filipa Lopes
Iris Sena
Joana Jorge
João Duarte
Maria Mendes
Mariana Correia
Nádia Antunes
Rafaela Alves
Raquel Simões
Samira Baldé
Sandro Dias
Sara Carvalho
Sofia Pedrosa
Tatiana Cavalheiro

Adaptação do filme Coco da Disney / Pixar

Adaptation of the Disney / Pixar Movie Coco

Gonçalo Costa
Bruno Santos
Catarina Castanhas
Constança Neves
Diogo Campos
Gil Gualota
Joana Ribeiro
José Gomes
Júlio Pinheiro
Maria Silva
Raquel Bragança
Sophia Monteiro
Tiago Sousa

Fotografia & Vídeo / Photography & Video

São Ludovino



TEATRO NA ESCOLA XXXI

 O DOM DA SINGULARIDADE

O Estranho Mundo de Jack / The Nightmare Before Christmas de Tim Burton (excerto). Interpretado pelos alunos de Artes do Espectáculo da Escola Secundária D. Pedro V (11.º 13). Encenação de Gonçalo Barata. Captação de imagem e montagem de vídeo: São Ludovino. Lisboa, 10 de Dezembro de 2019.

     Esta adaptação do texto e filme de Tim Burton apresentava, à partida, inúmeras dificuldades. Os múltiplos lugares ficam reduzidos a um único espaço, o palco. O espaço estreita-se e dificulta o movimento. A escuridão e a luz tornam-se mais presentes e recaem fisicamente sobre o próprio espectador. O grande plano ou o plano geral é ditado pelo movimento dos actores e pelo confronto com o próprio público que se sente olhado olhos nos olhos. Em alguns momentos é o público ― ingénuos mortais ― que é observado pelos rostos fantasmagóricos das almas penadas que avançam em movimentos cadenciados até à fronteira final. 

O Estranho Mundo de Jack - Tim Burton, photography by São Ludovino.

      Embora apenas um fragmento tenha sido encenado, a gestão do espaço foi um problema, resolvido com a utilização da luz e da sombra como fronteira. Foi também a utilização da luz que permitiu a construção da sequência de cenas; as saídas de cena foram geralmente feitas sob a escuridão e as entradas sob focos de luz de menor ou maior intensidade.

     As personagens não estão vivas mas são uma metáfora da vida; também na vida a luz e a escuridão coabitam. Tal como os vivos, estas personagens têm sentimentos, emoções, sonhos, conflitos, contradições.

     Jack é o mais vivo de todos, é ele que quer mudar o mundo imutável dos mortos (metáfora dos vivos). Quer, planeia, executa um plano que visa devolver àquele mundo lúgubre e sinistro um pouco de alegria, de justiça, de claridade, de transformação simplesmente (levar o Pai Natal à terra dos mortos, ser ele próprio o Pai Natal que gera alegria). Neste paralelismo entre os felizes (vivos) e os infelizes (mortos) está configurada a analogia social e psicológica, entre os grupos dos vivos. Entre os vivos, só alguns têm acesso à alegria, à dignidade, à vida autêntica, a serem verdadeiramente humanos. Outros, embora vivos, é como se já estivessem parcialmente mortos, nunca chegam a viver verdadeiramente.

O Estranho Mundo de Jack - Tim Burton, photography by São Ludovino.

      Nesta perspectiva, Jack não é apenas um rebelde individualista, é um revolucionário com consciência social e empatia colectiva que tenta mudar o estado de coisas a que muitos estão submetidos. Para o conseguir, tem de interferir no mundo dos vivos e roubar-lhes um pouco da fantasia que faz a sua felicidade; raptar o Pai Natal e tomar o seu lugar. E se a felicidade plena de todos é inatingível, pelo menos é possível gerar a felicidade de alguns, aquela felicidade que provém da fantasia, das crenças e das emoções. Partilhar a fantasia é, pois, uma forma de gerar felicidade.

     Ao primeiro olhar, este texto / filme /peça tem muito pouco de natalício, parece mesmo um assassinato desse espírito já que o Pai Natal, um dos símbolos convencionais do Natal (comercial), é raptado e substituído por Jack, alguém que já não está vivo. Até o título original – A Nightmare Before Christmas – parece o oposto do espírito de paz, amor e alegria do Natal. A tradução portuguesa do título – O Estranho Mundo de Jack – aproxima-se mais do verdadeiro espírito do texto e do Natal. O mundo de Jack é estranho porque a sua condição de “morto” lhe retirou toda a liberdade, incluindo a liberdade de sonhar, sentir e ser feliz, tal como acontece com milhões de vivos pelos mais diversos motivos.

     O “pesadelo” antes do Natal é o rapto do Pai Natal do mundo dos vivos, não é a revelação da infelicidade dos que vivem no mundo das sombras. O rapto é um pesadelo para os vivos, não para os “mortos”. Estes vivem uma espécie de pesadelo constante a que acabaram por se habituar. O rapto do Pai Natal é também um acto contra a indiferença dos que reduzem o Natal (a vida) à sua dimensão material / comercial e vivem completamente alheados das dificuldades dos que nem sequer conseguem acreditar no Pai Natal. Não podem fantasiar e sonhar, porque a sua condição não lhes permite ser humanos a esse ponto, são apenas semi-humanos. Se não é possível ter tudo o que os outros têm, Jack reivindica pelo menos o direito a sonhar. E os sonhos podem muito bem mudar o mundo, só é preciso agir, ousar raptar o Pai Natal e dar-lhe uma dimensão mais humana.

     O cenário quase completamente negro contribui para tornar quase invisíveis a maioria das personagens, também elas vestidas de negro. Esta invisibilidade condiz com a indiferença a que são votados. Mas mesmo no meio do negrume, as luzes acendem-se, a fantasia entra, o coração desperta e aqueles que pouco antes estavam “mortos” começam a viver.

O Estranho Mundo de Jack - Tim Burton, photography by São Ludovino.

     Encenador e intérpretes estão de parabéns! Uma vénia para todos. No final, ninguém saiu com pesadelos, apenas mais disposto a ver o mundo e os outros com outros olhos, a fantasiar e a partilhar a fantasia.


O Estranho Mundo de Jack - Encenação de Gonçalo Barata

     A história que se segue, embora pareça ter pouco a ver com O Estranho Mundo de Jack, foi inspirada nele e busca o mesmo tipo de redenção. Todos têm direito à felicidade, estes, aqueles, os outros, os que nem sequer conseguem imaginar o que é ou pode ser a felicidade.       

 

O DOM DA SINGULARIDADE

      Com um empenho desmedido a criança construía o seu puzzle. Olhava para dentro, olhava para fora, olhava em redor, olhava para longe e fazia mais uma peça. Cuidadosamente, tentava encaixá-la no extenso painel de visões e pensamentos. Aqui e além, aparecia ele próprio, tão distinto de todos os outros e ainda assim, o mais invisível. Tão invisível que às vezes não se encontrava naquele mapa desenhado pelo seu próprio pensamento.

     Às vezes sentava-se a olhar para os continentes, as ilhas, as penínsulas, os lagos, os rios, mares e oceanos que já existiam e para as manchas vazias onde ainda nada existia. Será que algum dia ia terminar aquele imenso exercício de cartografia? Será que era mesmo invisível? Isso, tudo isso, ele ainda não sabia.

     Olhava os seres que povoavam o seu puzzle e via ou pensava ver cada um com toda a nitidez. Conhecia sobretudo os animais, as plantas, as rochas e os elementos da Natureza. Os outros, que de algum modo se assemelhavam a ele, pareciam-lhe deveras estranhos, muito mais estranhos do que ele.

     Os outros tinham hábitos e rotinas. Riam ou choravam sempre à mesma hora. Vestiam roupas idênticas e caminhavam com passos meticulosamente iguais. Até as suas casas e jardins eram tão iguais que pareciam apenas uma imagem multiplicada num jogo de espelhos. Eram tão semelhantes em tudo que às vezes lhe parecia que deveria ser um apenas com muitas sombras, tão densas que pareciam gente feita de basalto ou lama de algum pântano.

     Tanta semelhança contrastava com tudo o resto que via e sentia em redor. O vento nunca soprava duas vezes da mesma maneira e até cada raio de sol lhe parecia diferente de todos os outros. Pelo menos aquecia e brilhava de maneira diferente. O mapa-puzzle que continuava a preencher, pedaço a pedaço, também era bem diverso em tudo o que continha. Só aqueles pontos que caminhavam para cá e para lá eram semelhantes. Talvez fosse por isso que não conseguia completar o mapa e tantos buracos persistiam. Se tudo fosse idêntico, não havia formas, nem seres, nem identidade, nem alma. Era preciso procurar a diferença… ou então criá-la e dar-lhe vida.

     Começou por um jardim ao acaso. Podia ser um qualquer, pouco importava. Fez enxertos nas árvores e novas folhas bens diferentes nasceram. Plantou flores novas nos canteiros monótonos e descoloridos e as borboletas e abelhas apareceram vindas do nada. Espalhou grilos na erva, regou-a cuidadosamente e o chão reverdecido começou a ondular alegremente. Assobiou uma canção de rouxinol e dezenas de aves vieram pousar nas árvores, nos telhados e peitoris até que o ar se encheu de sons novos e todo o jardim sorria.

     Passou então para a casa. Ainda bem que estavam todos a dormir. Dormiam e acordavam todos ao mesmo tempo. Pintou as paredes quase negras de branco e azul. Acentuou o vermelho perdido dos beirais. Limpou o pó e envernizou a madeira das portas e janelas. Escavou um pequeno lago, revestiu-o de pedras, encheu-o de água límpida, acrescentou alguns nenúfares e meia dúzia de peixes vermelhos. Consertou o banco de jardim, sentou-se a contemplar a obra feita e deu um suspiro de contentamento.

     Pensou voltar a casa e descansar um pouco antes de continuar mas mudou logo de ideias. Tinha de continuar, tinha de tornar diferentes todas as casas e jardins, tudo tinha de ter um ser próprio e uma alma única. E assim fez. Trabalhou durante a noite inteira.

     Ao amanhecer, estava tão exausto que pensou estar a ter visões. Tudo estava tão belo e diferente. Pensou em bater a uma porta mas desistiu. Talvez fosse melhor não revelar já a autoria de toda aquela transformação. Podia até dar-se o caso de não agradar a alguns ou a ninguém. Por isso, rumou a casa sem fazer ruído. Atrás de si foi apagando as pegadas, coisa que os outros nunca deixavam no chão, apenas manchas poeirentas.

     Antes de se deitar para descansar um pouco, ainda passou pelo seu mapa. Sob a luz baixa pareceu-lhe tão diferente do que deixara antes de sair. Levou para junto dele um candeeiro. Estava mesmo diferente, muito maior, mais colorido e quase completo. Milhentos buracos tinham desaparecido e as manchas negras eram agora rochas, montanhas, florestas, aldeias e vilas soalheiras. Havia ainda zonas nebulosas. O desconhecido… pensou. E os pontos negros que até há pouco estavam imóveis começavam a mover-se, de forma semelhante mas não absolutamente idêntica.

     Poucos minutos depois, um ruído de vozes, coisa inédita por aquelas paragens, elevou-se no ar e entrou-lhe pelas janelas. Vinha misturado com o canto dos pássaros, o perpassar da brisa e a respiração profunda das árvores novas.

     Espreitou discretamente pela janela. Todos os vizinhos tinham no rosto uma expressão de espanto, mas não pareciam muito contrariados. O mais próximo aproximou-se de uma árvore e tocou a medo as folhas novas. O outro ao lado colheu uma flor e examinou-a como coisa nunca vista. Um outro tirou o chapéu e deixou a brisa despenteá-lo. Uma criança aproximou-se do lago e, pela primeira vez, viu alguém sorrir. E era tão fácil sorrir. Bastava ver como era bela cada coisa que existia. Não havia duas coisas iguais no seu mapa. E agora naquela rua tudo estava vivo porque tudo era único e irrepetível.

     Quando saiu para a rua já o sol ia alto e tudo resplandecia. Passou rente à cancela do jardim em frente e viu outra criança, aquela que sorrira para os peixes, bem diferente dele. E, no entanto, nunca encontrara ninguém tão idêntico a ele. Pelo menos foi isso que sentiu quando a menina se aproximou da cancela e perguntou.

     − Já viste peixes tão vivos e felizes como os deste lago?

    − Já! − Respondeu ele. −Vi-os ontem à noite e não foi num sonho.  

 

São Ludovino, 1/3/2020

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Encenação / Stage Direction

Gonçalo Barata

Elenco / Cast

* Beatriz Fachina
* Bernardo Ferreira
* Carolina Gomes
* Carolina Miguel
* Carolina Teodoro
* Constança Cruz
* Elói Pina
* Florbela Figueiredo
* Gabriela Rubio
* Gonçalo Alves
* Joana Costa
* Joana Abreu
* Joana Sousa
* Maria Pinheiro
* Maria Pratas
* Mariana Silva
* Marta Mateus
* Nelma Barreto
* Neuza Velez
* Patrícia Barbosa
* Rodrigo Lencastre
* Rodrigo Marques
* Sandra Sofia
* Yannick Gomes

Fotografia & Vídeo / Photography & Video

São Ludovino




DIA DE MAR, SOL & NUVENS

 O que vêem as aves

(Os textos que se seguem foram escritos antes de ser declarada a pandemia de Covid19. Não me parece que tenham perdido o sentido. Pelo contrário, a dádiva da vida parece ainda mais preciosa, como é ainda maior o dever de “honrarmos o privilégio de estarmos vivos” e os que já partiram.)

     Não há nem pode haver dois dias iguais. Nada é estático e imutável, nem as próprias rochas. O fluir dos dias faz parte da dádiva da vida. Quem ama a vida não se cansa dos dias. Pode cansar-se das pessoas, da estupidez, da maldade, da injustiça ou até dos dias frios, cinzentos e chuvosos, mas não se cansa do fluir dos dias. Ninguém sabe o que cada dia trará. Mas quando se respira com a alma a própria vida e se olham as coisas mais simples como maravilhas, que de facto são, então não há dia que não traga sempre algo de bom, belo e único. É assim que mesmo os dias mais comuns se tornam fantásticos dias intermináveis. Não é preciso fazer nada, basta sentir o maravilhoso pulsar da vida.

    Da terra, tocam-se as nuvens e o azul do céu, acompanha-se o voo das aves, a dança do mar, a viagem do Sol e da Lua, até que o olhar se funde em tudo e o próprio solo se eleva em sintonia com o espírito. A verdadeira empatia inclui todos os seres e todas as coisas belas e olhar com a alma é morar em tudo e em todos os lugares.   


Infinite Beauty I, photography by São Ludovino.

Warm at Home IV, photography by São Ludovino.

Warm at Home I, photography by São Ludovino.

Warm at Home V, photography by São Ludovino.

Warm at Home II, photography by São Ludovino.

Old Alliance - Sun & Clouds V, photography by São Ludovino.

A Way of Being Alive II, photography by São Ludovino.

Rain is coming V, photography by São Ludovino.

Expanding Time & Space, photography by São Ludovino.

Space expanding, photography by São Ludovino.

Printed in Life VIII, photography by São Ludovino.

More precious than gold I, photography by São Ludovino.

Moonsea Rising I, photography by São Ludovino.

Shine on You Crazy Dust I, photography by São Ludovino.

Printed in Life XV, photography by São Ludovino.


Printed in Life XIV, photography by São Ludovino.

Sleeping Mountains by the Sea I, photography by São Ludovino.

Making Space III, photography by São Ludovino.

Shallow & Golden IV, photography by São Ludovino.

Contradicting Gravity I, photography by São Ludovino.

Those who stay II, photography by São Ludovino.

The Soft Path I, photography by São Ludovino.

Interwork II, photography by São Ludovino.

Growing quietly I, photography by São Ludovino.

Slow revelation I, photography by São Ludovino.


Dia de Mar, Sol & Nuvens - palavras, fotografia & vídeo de São Ludovino


       Estas são as palavras (Dia de Mar, Sol e Nuvens) que acompanham a narrativa (verbal e visual) de um dia comum diferente de todos os outros. As palavras até podiam ser outras porque há tantos dias dentro de cada dia. Há tantas formas de olhar e sentir. Sentir é mesmo o oxigénio da alma.

DIA DE MAR, SOL E NUVENS


Ali, onde acaba o Rio e começa o Mar,
Ali, não há hora marcada para chegar.
 
Mas acaba mesmo, o Rio?
Ali, onde ninguém sabe
O que é Rio e o que é Mar?

O Rio não acaba nunca.
Não pára de chegar
E partir mar fora.

O Mar fica logo ali,
Ao alcance dos passos,
Ao alcance do olhar.

O Mar bebe o Rio,
Golo a golo dissolve-o no seu seio.
Até serem apenas um,
Até o sal se unir ao doce fluir
Da nascente que o Mar nunca viu.
E toda a água ter o sabor da distância
E da proximidade em cada gota
Na pele e nos olhos
De quem vem e não passa
De quem passa e fica.

E o Mar fica tonto
Só lhe apetece dançar
E ir a todos os lugares.

E assim, ondulando, anda pela praia
Marcando na areia os passos
Da eterna dança de ser Mar.

Nesta margem como na outra
Mora o mesmo Rio e o mesmo Mar.

Hoje, o nosso Mar fica nesta margem
E traz com ele todas as margens.

Imóveis, seguimos velozes
Rumo ao Mar.

Tantos mundos paralelos, oblíquos
Cruzados, imprevistos
Coincidentes e incoincidentes.

Num só segundo, o olhar funde-os
E separa-os.
E ninguém dá por isso
Porque logo ali, olhando ao longe o Mar
Todos os mundos se unem
Como se houvesse um único olhar.

Aqui ainda é mais Rio do que Mar...
O primeiro sal quase sem ondas...

Ah, o Mar completo
Com o Rio lá dentro!

Entre nuvens e sol
O Tempo brinca e faz de conta que pára
Ou então finge que é o Mar e o Céu.
Anda de cá para lá, suavemente
Como se nem estivesse ali
Como se cada um fosse senhor do Tempo...
Ou pelo menos do seu tempo...
E alguns são mesmo...
Ou não estariam tão felizes!

Segundo após segundo
O Tempo tudo muda
Do outro lado do mundo e aqui.

Um perdeu a maré
Outro perdeu o sorriso íntimo
Aquele reencontrou os passos perdidos
E aquele ali, envolto na poeira de longos dias,
Encontra finalmente a água e a árvore
dos eternos caminhantes.

Entre o Sol e a Terra
Biombos de nuvens desdobram-se
Em redor do horizonte.
Unem-se em cúpula branca
Sobre as cabeças alheias à penumbra
Ao arrepio na pele, a si mesmas.

Alguns continuam a caminhar
Como se o Sol ainda estivesse lá
Como se a areia ainda estivesse quente
Como se o dia fosse deveras interminável.
E está! O Sol está sempre lá!

Cada areia lembra o calor de cada dia.
Além das nuvens, o Sol espreita
E espera pacientemente.

Por isso, os senhores do seu tempo
não abandonam o mar
Cruzam-se, cada um no seu tempo,
Com o tempo dos outros
Com o tempo de tudo.

Mesmo que as nuvens não partam de novo
antes do anoitecer
Os dias intermináveis não acabam!

Houve tantos!
Haverá sempre outros
Enquanto houver Sol atrás das nuvens
Enquanto houver senhores do seu tempo.

Algo tristes, as nuvens descem sobre a Terra
Querem ser vistas e amadas como o Sol
Querem mostrar com a sua sombra excessiva
Que o dia também pode ser belo e interminável
Quando elas cobrem o Céu
E se espelham na Água e na Alma.

E a seu modo, têm razão
Ou a praia estaria deserta
E tudo ficaria imóvel e mudo
Excepto o Mar
E a Alma dos senhores do seu tempo…

No ar paira um sentimento de absoluta união
Talvez porque tudo é menos nítido
E, por isso mesmo, mais presente.
Os olhos recolhem ao interior da Alma
E aí encontram todos os sentidos. 
Num só segundo vêem como novo
O Mar, o vento, o íntimo de todas as coisas.

E estes olhos, acabados de nascer
Trazem de volta o dia interminável
Exactamente no mesmo ponto
Onde pouco antes parecia ter desaparecido.

Agora tudo está além e aqui ao mesmo tempo. 
Os olhos vêem as nuvens e são nuvens
Vêem o Mar e são Mar
Fecham-se por um instante
E são o Tempo e o Universo.

Ficam felizes as nuvens com o novo olhar
Estendem os braços como quem quer abraçar.
Como se quisessem reconstruir o Mundo
Desde o primeiro instante da Criação.

Estes olhos entram nos altos castelos brancos
Que sem pressa descem sobre o Mar
Que sobem indefinidos e serenos
Do vasto coração do horizonte
E sem qualquer dúvida ou hesitação
Reconhecem a primeira casa
Erguida nos confins do Tempo.

Aos olhos comuns pode parecer
Que o Verão fugiu, repentinamente,
Para outro lugar...

Quão enganados estão!
A beleza de existir não partiu
O que é belo e real não parte nunca
Faz parte do dia interminável
Que é caminhar pelo Mundo
E amar a vida…

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Meio mundo regressa da praia
e vai directamente para o NOS Alive. 

É lá que estão as estrelas, os dinossauros,
as revelações e a euforia. 

Mas há quem esteja cansado
e só queira regressar a casa em sossego
e ouvir os sons do Mundo pelo caminho. 

Entre os sons do Mundo
Vêm vozes embrulhadas em toalhas de praia
Risos corais e hipopianos
O palmear de chinelos ao ritmo da tarde que anoitece
Vêm interjeições sonoras e frases curtas
Entrecortadas por exclamações e gírias urbanas
Vem o resfolegar do comboio que chega e parte
A respiração tranquila das árvores
A recompensa diária do Sol que, devagar, muito devagar,
Se deita para lá do recorte escondido do horizonte. 

E enquanto eles rumam ao Nos Alive
Nós rumamos a casa.

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E pelo caminho
Outras histórias acontecem
Passam e ficam
Iluminam-se, escondem-se
Seguem o seu próprio rumo...

Desconhecida janela
Parada na noite
Permanece na história que fica. 

Quem passa mal te vê
Nem grades, nem rosas, nem luz
Segue caminho nos rendilhados
De outra história. 

Palácios pousados no tempo
Adormecem nas pálpebras da penumbra
Frontões e escadarias sussurram nos pátios
Farrapos de luz e memórias. 

E onde os telhados baixos espreitam a rua
Portas e janelas conversam
De portadas fechadas
Deixam-se mirar e ficar
Além do toque e do olhar. 

Nos jardins, as estátuas veneram as árvores resilientes
Sentem sob os pés de mármore
As raízes vivas, querem viver também
Ter folhas e flores, ir com as estações
Ser obra de outro cinzel. 

Lá ao fundo, junto ao rio que passa
A torre de outras memórias
Lembra o princípio e o fim
Prisioneiros e mareantes
Os sete mares e a rosa-dos-ventos. 

Outras edificações vieram e ficaram
Entre o olhar e o rio
Outras artes, outras linhas
Escondem o antigo horizonte. 

A espada do ímpio e do crente
É uma e a mesma
Só o nome que evoca é diferente. 

Inerte e hirta
Implora perdão e uma prece. 

Nada se ouve
Só a noite que cai
Reconfortante e benigna.
Enlaça o dia interminável
E com ele adormece
Coroando o céu de estrelas
E histórias futuras…

São Ludovino, 31/7/2019